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Procº nº 792/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A Câmara Municipal de Gondomar interpôs perante o Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho proferido em 31 de Julho de 1989 pelo Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território e através do qual, ao abrigo das disposições constantes do Decreto- -Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, determinou a retenção da quantia global de Esc. 13.262.000$00 do montante relativo ao mês de Agosto daquele ano de 1989 a transferir para a referida Câmara a título de comparticipação no Fundo de Equilíbrio Financeiro, com o fim de tal verba ser atribuída à Electricidade de Portugal, E.P., relativamente à qual a dita Câmara seria devedora.
2. Correndo os autos seus termos, de entre estes se inscrevendo a intervenção principal provocada da Electricidade de Portugal, E.P., foi, em 9 de Junho de 1992, proferido por aquele Supremo Tribunal acórdão em que se decidiu anular o impugnado acto.
Para tanto, em síntese, o aresto baseou-se em que:-
- o despacho recorrido fundamentou-se nos números 1 e 3 do artº 4º do D.L. nº 103-B/89;
- os poderes conferido por estas normas aos membros do Governo representam o exercício da função jurisdicional, pois que através deles o Governo, por intermédio dos Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, 'aceita a fixação autoritária e unilateral levada a efeito pelo ente público EDP do seu crédito para com outros entes públicos, na circunstância os Municípios, originado no fornecimento de energia eléctrica', reconhecendo, assim, à mencionada empresa pública, 'o direito de emitir um título executivo para obter a satisfação do seu crédito', pondo 'à sua disposição os meios necessários ao seu pagamento, retendo para o efeito verbas que constituem receitas do Município';
- assim sendo, as ditas normas postam o Governo, não na veste de prossecução de interesses, mas sim na veste de realização de conflitos de interesses, 'dado que aparece a dar a sua concordância à validade e ao montante dos créditos apurados pela sua tutelada EDP ... ignorando as objecções que [os Municípios] ... porventura tenham a formular à forma como se fixou a sua dívida'
- a função jurisdicional encontra-se reservada constitucionalmente aos tribunais, conforme o que se consagra nos artigos 205º e
206º da Lei Fundamental;
- no caso, 'a decisão Ministerial questionada não procura a solução mais adequada para assegurar o funcionamento regular e contínuo de um serviço público essencial, o da distribuição da energia eléctrica' antes se pretendendo 'que o Governo actue como terceiro imparcial para resolver um conflito, dizendo o que é o direito', pedindo-se-lhe 'que declare a existência de uma dívida e ordene, pela via da retenção de verbas, a respectiva cobrança, para reposição da paz jurídica';
- daí que as norma ínsitas nos números 1 e 3 do artº 4º do D.L. nº 103-B/89 sejam violadoras dos citados artigos 205º e 206º da C.R.P. - versão da revisão de 1982 - o que conduz à sua não aplicação pelos tribunais;
- perante uma tal recusa de aplicação no caso, o acto recorrido carece de base legal, incorrendo, por isso, no vício de violação de lei.
3. Deste acórdão, por dever de ofício, recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, aqui tendo o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto apresentado alegação em que concluiu dever conceder-se provimento ao recurso, pois que não só o Decreto-Lei nº 103-B/89 não é organicamente inconstitucional, como as 'normas dos números 1 e 3 do seu artº
4º, na parte em que permitem aos Ministros das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, com base em comunicação prévia da EDP sobre o quantitativo em dívida pelos municípios em 31 de Dezembro de 1988, proceda à retenção de 10% do duodécimo da participação no Fundo de Equilíbrio Financeiro dos municípios devedores, não violam a reserva do poder judicial consagrada nos artigos 205º e 206º da Constituição, na versão anterior à 2ª revisão constitucional, correspondentes, na versão actual, aos nºs 1 e 2 do artigo
205º'.
De sua banda, a Câmara Municipal de Gondomar rematou a sua alegação, concluindo do seguinte modo:-
'1. É matéria da competência da Assembleia da República a definição do 'estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais', matéria sobre a qual o Governo só pode legislar ao abrigo de autorização legislativa. (artº 168º nº. 1 alínea R) da CRP).
2. As autorizações legislativas devem ser exercidas pelo Governo nos prazos assinalados pela lei de autorização sob pena de caducidade, devendo tais prazos contar-se desde a promulgação desta lei até à data de promulgação pelo Presidente da República do diploma versando as matérias autorizadas.
3. O D.L. 103-B/89, através do qual o Governo exerceu o direito de retenção autorizado pela Lei 114/89, aprovada em 15.12. 88 e promulgada em
30.12.88, só foi promulgado em 4.4.89, ou seja, depois dos três meses previstos naquela Lei, pelo que caducou a autorização legislativa estando, em consequên- cia, ferido de inconstitucionalidade orgânica, por invadir a esfera de competência da Assem- bleia da República.
Por outro lado, e caso assim se não entenda,
4. Tendo a Administração, ao abrigo dos nºs. 1 e 3 do artº 4º do D.L.
103-B/89, sido colocada na posição de definir o conflito de interesses concreto que opunha a Câmara Recor- rida à EDP, decidindo qual a dívida daquela a esta empresa pública e determinando e sua execução coreciva, através da retenção das verbas do fundo de equilíbrio financeiro a transferir para o município, agiu no
âmbito da função jurisdicional, violando as referidas normas o princípio da reserva dos Tribunais, consignado nos arts. 205º e 206º da C.R.P. estando, por essa via ferido de inconstitu- cionalidade material.
5. Na verdade, corresponde à função jurisdicional a resolução de questões de direito ou conflitos de interesses entre pessoas bem como controvérsias sobre a verificação ou não, em concreto, de uma ofensa ou violação da ordem juridica, tendo em atenção uma situação juridica definida anteriormente, tal como é jurisdicional o conjunto de actos tendentes à execução forçada e coerciva da prestação de um facto ou uma coisa.
6. Ademais, se assim não fosse entendido, aquela previsão normativa do D.L. 103-B/89 violava o princípio da garantia de recurso aos Tribunais, insito do artº 268º nº. 4 da C.R.P. porquanto admitindo o recurso sobre a legali- dade do acto ou despacho de retenção de verbas, impediria a reapreciação por um órgão jurisdicional dos critérios e soluções juridicas que estiveram na base do mesmo despacho, critérios esses que contendem com a fixação da dívida e respectiva apreciação das questões de facto e de direito que lhe estão subjacentes, traduzindo, por isso, uma limitação intolerável daquele princípio constitucional.
Deve, assim, e com o suprimento de Vª. Exas., manter-se o doutamente julgado, declarando-se a inconstitucionalidade material das norma contidas nos nºs. 1 e 3 do artº 4º do D.L. 103-B/89, caso se entenda não ocorrer a inconstitucionalidade orgânica do mesmo diploma'. II
1. Como se viu, o acórdão impugnado recusou a aplicação, por considerar feridas de inconstitucionalidade material, as normas constantes dos números 1 e 3 do artº 4º do D.L. nº 103-B/89.
Acontece que este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 260/98, publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 31 de Março de de 1998 (com a declaração de rectificação nº 9/ /98, publicada nos mesmos jornal oficial e Série de 13 de Abril de 1998 e ainda rectificado pelo Acórdão nº 335/98, ditos jornal oficial e série, de 29 de Maio do aludido ano), declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das aludidas normas.
Assim sendo, nada mais resta do que aplicar ao presente caso a declaração operada por meio do mencionado Acórdão.
III
Em face do exposto, em aplicação da declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão nº 260/98, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 17 de Junho de 1998 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa