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Processo n.º 813/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A ASSOCIAÇÃO EMPRESARIAL DE P... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (de 14 de Maio de 1998), que negou provimento ao recurso jurisdicional por si interposto da sentença do Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto (de 30 de Outubro de 1997). Esta sentença tinha rejeitado o recurso contencioso que aquela associação empresarial interpusera do despacho do GESTOR DO PROGRAMA PESSOA (FUNDO SOCIAL EUROPEU), de 16 de Outubro de 1997. E rejeitara-o, com fundamento em que, estando o acto impugnado sujeito a recurso tutelar necessário para o Ministro do Emprego e Segurança Social, era ele contenciosamente irrecorrível, pois que carecia de definitividade vertical; e, por isso, era manifesta a ilegalidade da interposição do recurso.
O acto impugnado (scilicet, o mencionado despacho de 16 de Outubro de 1997) tinha aprovado o pagamento de saldo relativo ao pedido de financiamento que a recorrente apresentara no âmbito do Programa Operacional 1 (Medida 94.220 P1) financiado pelo Fundo Social Europeu no Quadro de Apoio à Formação Profissional. Pretende a recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 177º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, interpretado 'no sentido de que a previsão do recurso tutelar pode constar de qualquer disposição normativa, mesmo que de carácter não legislativo' e da que se contém no artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/95, de 6 de Julho, já que, em seu entender, ambas as normas violam a alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
1. A única interpretação conforme à Constituição do n.º 2 do artigo 177º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) é a de que a expressão lei nele contida se refere exclusivamente à lei em sentido formal, isto é, a diplomas de carácter legislativo.
2. Com efeito, estabelece a Constituição uma reserva de lei em matéria de garantias dos administrados [ cf. alínea s) do n.º 1 do artigo 168º] .
3. Ora, justamente por causa da polissemia dos sentidos do termo lei, o processo hermenêutico não se pode esgotar no apuramento do sentido literal de lei constante do n.º 2 do artigo 177º do CPA.
4. Um dos elementos fundamentais que é preciso tomar em consideração neste contexto é o princípio da interpretação conforme à Constituição.
5. Assim sendo, tendo em conta que a Constituição estabelece uma reserva de lei em matéria de garantia dos administrados [ cf. alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da CRP] , é evidente que a única interpretação conforme à Constituição do disposto no n.º 2 do artigo 177º do CPA é a de que a exigência de um recurso tutelar de actos administrativos tem de estar prevista em diploma de carácter legislativo.
6. O segmento normativo da alínea s) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição referente às 'garantias dos administrados' abrange não apenas as garantias enunciadas no artigo 268º, como também as garantias graciosas.
7. Em qualquer caso, a previsão expressa de um recurso tutelar necessário tem de constar de lei em sentido formal, pois essa é também matéria respeitante às garantias contenciosas.
8. A profunda ligação entre o recurso contencioso de anulação e eventuais recursos graciosos de carácter necessário fazem destes últimos, se não uma restrição, um limite ou, ao menos, um condicionamento daquele.
9. Ora, o âmbito da reserva de lei em matéria de garantias dos administrados abrange não só os direitos e garantias na sua integridade, isto é, a sua substância própria ou o seu conteúdo essencial, mas também as restrições, os limites ou os condicionamentos que sobre eles podem incidir.
10. A instituição de um recurso tutelar necessário, impedindo que o acto administrativo em causa possa desde logo ser objecto de impugnação contenciosa representa, como é evidente, um condicionamento legal do exercício do direito ao recurso contencioso.
11. Trata-se ainda, pois, de matéria que respeita às garantias contenciosas, mais concretamente à garantia do recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares (cf. n.º 4 do artigo 268º da Constituição).
12. À mesma conclusão se chega se se tiver em conta que o direito ao recurso é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias.
13. Com efeito, também em matéria de direitos, liberdades e garantias, a reserva de lei, resultante da reserva de competência legislativa [ cf. alínea b) do n.º
1 do artigo 168º da Constituição] , impõe que o estabelecimento de um condicionamento (se não se entender até que é uma restrição) seja objecto de lei em sentido formal.
14. Ao aplicar o n.º 2 do artigo 177º do CPA, interpretando-o no sentido de que a previsão de recurso tutelar necessário pode constar de uma qualquer disposição normativa, mesmo que de carácter regulamentar, o douto acórdão recorrido aplicou uma norma inconstitucional.
15. Com efeito, o n.º 2 do artigo 177º, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, ofende o princípio constitucional da reserva de lei quer em matéria de garantias dos administrados, quer em matéria de direitos, liberdades e garantias [ cf. alíneas s) e b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição] .
16. Por outro lado, importa ter presente que a reserva de lei implica, como se sabe, a proibição de regulamentos autónomos.
17. Ora, a instituição de um recurso tutelar necessário pelo artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, não é uma mera execução do Decreto-Lei n.º 99/94, de 19 de Abril.
18. Com efeito, foi o decreto regulamentar, e não o decreto-lei, que criou, inovatoriamente, o meio de impugnação graciosa aqui em causa.
19. Assim sendo, é também inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, igualmente por violação do princípio constitucional da reserva de lei quer em matéria de garantias dos administrados, quer em matéria de direitos, liberdades e garantias [ cf. alíneas s) e b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição] . Termos em que deve ser julgada inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 177º do CPA, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, e a norma do n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho. O recorrido apresentou a sua contra-alegação, na qual concluiu que deve negar-se provimento ao recurso.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Advertência: A recorrente, ao referir-se à reserva de lei parlamentar atinente às 'garantias dos administrados', indicou algumas vezes a alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição: fê-lo nas alegações para o Supremo Tribunal Administrativo (cf. as conclusões 5ª e 8ª) e repetiu-o no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal e na conclusão 5ª das alegações que aqui apresentou. Equivocadamente, porém. De facto, como este Tribunal tem sublinhado repetidamente (cf., a título de exemplo, o acórdão n.º 56/95 [ publicado no Diário da República, II série, de 28 de Abril de 1995)] , a regularidade formal dos actos normativos rege-se sempre pelas normas constitucionais que estiverem em vigor à data da respectiva formação e que lhes digam respeito. Por isso, questionando a recorrente a constitucionalidade do artigo 177º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro), e a do artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, a norma constitucional a ter em conta como parâmetro de referência ou de avaliação é a da alínea u) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (versão de 1989 e 1992), que corresponde à alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da versão de 1997: nela se prescreve que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre 'garantias dos administrados'. Dizer isto é assinalar também que a recorrente continua a equivocar-se quando, noutros passos da sua alegação, referencia a alínea s) do n.º 1 do artigo 168º como a norma constitucional que, em seu entender, foi violada.
4. As normas sub iudicio: As normas, cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada por este Tribunal, são, como se viu, a do n.º 2 do artigo 177º do Código do Procedimento Administrativo, interpretado 'no sentido de que a previsão de recurso tutelar necessário pode constar de uma qualquer disposição normativa, mesmo que de carácter regulamentar', e a do n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º
15/94, de 6 de Julho.
O artigo 177º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo prescreve como segue:
2. O recurso tutelar só existe nos casos expressamente previstos por lei e tem, salvo disposição em contrário, carácter facultativo.
De sua parte, o n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, preceitua assim:
1. Dos actos praticados por entidades gestoras de programas quadro no âmbito do disposto no presente diploma cabe recurso necessário para o Ministro do Emprego e Segurança Social.
O Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, foi editado ao abrigo do n.º 5 do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 99/94, de 19 de Abril - diploma, este último, que veio definir 'a estrutura orgânica relativa à gestão, acompanhamento, avaliação e controlo da execução do Quadro Comunitário de Apoio (QCA) para as intervenções estruturais comunitárias relativas a Portugal, que foi estabelecido pela Decisão da Comissão Europeia nº C(94) 376' (artigo 1º). De acordo com o que preceitua o seu artigo 23º, n.º 5, deste Decreto-Lei n.º
99/94, 'o regime jurídico de gestão e financiamento das intervenções operacionais no âmbito do Fundo Social Europeu é aprovado por decreto regulamentar'.
Foi com o objectivo de regular 'os apoios ao emprego e à formação profissional a conceder no âmbito da vertente Fundo Social Europeu (FSE) do Quadro Comunitário de Apoio, incluindo as iniciativas comunitárias, relativamente às acções que se iniciem a partir de Janeiro de 1994 e se prolonguem até 31 de Dezembro de 1999, estabelecendo os princípios a observar na sua gestão', que foi editado o citado Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho (cf. artigo 1º). De acordo com o que prescreve o artigo 4º, n.º 1, deste Decreto Regulamentar, 'a vertente FSE do Quadro Comunitário de Apoio, da responsabilidade do Ministério do Emprego e da Segurança Social, é executada, quanto à gestão, através de programas quadro de
âmbito nacional, sectorial ou regional'. A gestão dos programas quadro - dispõe o artigo 8º, n.º 1, do mesmo diploma regulamentar - pode ser atribuída: a). a entidade de direito público; b). aos parceiros sociais representados na Comissão Permanente de Concertação Social do Conselho Económico e Social; c). a outras entidades de reconhecido mérito e capacidade formativa. Os direitos das entidades gestoras são os definidos no artigo 10º. Os seus deveres estão enunciados no artigo 12º. A entidade promotora de acções de formação, que pretenda obter financiamentos para o efeito, deve apresentar o respectivo pedido
à entidade gestora (artigo 15º, n.º 1). Sendo concedido o financiamento, nos 60 dias subsequentes à conclusão da acção de formação, deve a entidade promotora prestar contas à entidade gestora e pedir o saldo correspondente (artigo 22º, n.º 1). A entidade gestora deve proferir decisão sobre o pedido de pagamento de saldo final, nos 60 dias subsequentes à data da recepção do mesmo (artigo 24º, n.º 1). Dos actos praticados pela entidade gestora (designadamente, do acto de aprovação de saldo final) cabe recurso para o Ministro do Emprego e da Segurança Social, como já se referiu (artigo 30º, n.º 1, transcrito acima).
5. As questões de constitucionalidade:
5.1. A recorrente sustenta, em síntese, que um recurso tutelar necessário só pode ser previsto por lei parlamentar ou por decreto-lei (quiçá, parlamentarmente autorizado), e não por um regulamento. E isto, de um lado, porque as garantias dos administrados, que se inscrevem na reserva legislativa parlamentar, incluem não apenas as garantias contenciosas, como também as garantias graciosas; e, de outro, porque a exigência de prévia interposição de recurso tutelar como condição de impugnação contenciosa de um acto administrativo, condiciona o direito ao recurso contencioso, que é, seguramente, uma garantia dos administrados e também um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Por isso - conclui a recorrente -, o artigo 177º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo, interpretado no sentido de que 'a previsão de recurso tutelar necessário pode constar de uma qualquer disposição normativa, mesmo que de carácter regulamentar', viola a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias [ artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição] e às garantias dos administrados [ alínea u) do n.º 1 do mesmo artigo 168º] . E essa mesma reserva parlamentar - acrescenta - é também violada pelo n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, que prevê que, dos actos praticados por entidades gestoras de programas quadro no
âmbito do disposto nesse diploma, seja, obrigatoriamente, interposto recurso para o Ministro do Emprego e Segurança Social.
5.2. O artigo 168º, n.º 1, alínea u), da Constituição [ redacção anterior à de
1997, correspondente, hoje, ao artigo 165º, n.º 1, alínea s)] reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a edição de legislação sobre as garantias dos administrados, que, como decorre do que preceitua o artigo 268º da Constituição, são os direitos fundamentais do cidadão enquanto administrado, a saber: a). o direito à informação sobre o andamento dos processos administrativos em que cada um seja interessado; b). o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos; c). o direito à notificação dos actos administrativos; d). o direito à fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos; e). o direito ao recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos; f). o direito à tutela judicial dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Acresce que o artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição [ redacção anterior
à Revisão de 1997, correspondente, hoje, ao artigo 165º, n.º 1, alínea b)] reserva também à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a edição de legislação sobre a matéria de direitos, liberdades e garantias. E esta reserva de competência legislativa - decorre do artigo 17º da Constituição - abrange não apenas os direitos, liberdades e garantias do título II da parte I da Constituição (direitos, liberdades e garantias de carácter pessoal; direitos, liberdades e garantias de participação política; e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores), como também os direitos fundamentais de natureza análoga, que é o que são os direitos e garantias dos administrados, que se deixaram enunciados. Abrange-os, ao menos, no seu núcleo essencial, ou seja, naquela dimensão em que tais direitos assumem a natureza de uma verdadeira garantia. Abrange, por isso, nessa medida, o direito ao recurso contencioso. No acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 6 de Novembro de 1991), com referência aos direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, escreveu-se o seguinte: Ora, entende o Tribunal que, de qualquer modo, cabem necessariamente na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17º e 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos
'direitos análogos', por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.
A reserva de competência legislativa da Assembleia da República compreende, por isso, toda a regulamentação atinente ao núcleo essencial do direito ao recurso contencioso, ou seja, da garantia dos particulares traduzida na faculdade de impugnarem perante os tribunais, com fundamento na sua ilegalidade, os actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa (artigo 18º da Constituição), há-de constar de lei parlamentar ou de decreto-lei parlamentarmente autorizado. Quanto ao regulamento, neste domínio, ele apenas pode versar pormenores de execução. Escreveu-se, a propósito, no acórdão n.º 74/84 deste Tribunal (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 4º, página 54), citando AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ ('Teoria dos Regulamentos', in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, página 17), o seguinte: A reserva de lei constitui [ ...] limite do poder regulamentar: a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva. Os únicos regulamentos que nas matérias reservadas à lei se admitem são os regulamentos de execução. O Executivo, neste domínio, só pode editar normas inovadoras sob a forma de decretos-lei, mediante autorização da Assembleia da República.
5.3. Importa, então, saber se a norma do artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, que condiciona a interposição do recurso contencioso à prévia apresentação de recurso tutelar, versa sobre o a dimensão garantística (o núcleo essencial) do direito dos administrados ao recurso contencioso.
É que, se a resposta for afirmativa, a norma desse artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho - que, recorda-se, prevê que, dos actos praticados por entidades gestoras de programas quadro no âmbito do disposto nesse diploma, seja, obrigatoriamente, interposto recurso para o Ministro do Emprego e Segurança Social - é inconstitucional. De facto, num tal caso, ela violará a reserva de competência legislativa constante das alíneas b) e u) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na redacção anterior à revisão de 1997.
A resposta à pergunta formulada é, no entanto, negativa, como vai ver-se.
No recurso tutelar, impugna-se um acto administrativo praticado por uma pessoa colectiva pública perante um órgão de outra pessoa colectiva pública que sobre aquela exerce poder de tutela ou de superintendência (cf. artigo 177º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo). Tal recurso só existe nos casos expressamente previstos na lei e, salvo disposição em contrário, tem carácter facultativo (cf. artigo 177º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo). Quando, porém, o recurso tutelar for obrigatório, só a decisão da entidade com poderes de tutela ou de superintendência pode ser objecto de impugnação contenciosa. Num tal caso, pois, a decisão desta última entidade torna-se necessária para abrir a via da impugnação contenciosa (cf. o n.º 5 do citado artigo 177º, conjugado com o artigo 167º do mesmo Código e com os artigos 25º, n.º 1, e 34º, n.º 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos).
O recurso tutelar necessário, na medida em que condiciona o acesso à via judiciária para impugnação dos actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, assume, assim, a natureza de um simples pressuposto processual. Por isso, a norma do artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, que impõe a apresentação de um recurso tutelar como condição prévia de acesso à via judiciária para impugnação de um acto administrativo, não versa sobre as garantias dos administrados, maxime sobre a garantia do direito ao recurso contencioso. Ela versa, sim, sobre processo - recte, sobre processo administrativo.
Ora, no tocante ao processo, as únicas matérias que se inscrevem na reserva de competência legislativa parlamentar são as seguintes:
(a). o processo no Tribunal Constitucional [ cf. artigo 167º, alínea c), na versão anterior à revisão de 1997, correspondente, hoje, ao artigo 164º, alínea c)] ;
(b). o processo criminal [ cf. artigo 168º, n.º 1, alínea c), na versão anterior
à revisão de 1997, correspondente, hoje, ao artigo 165º, n.º 1, alínea c)] ;
(c). e o regime geral do processo das infracções disciplinares e dos actos ilícitos de mera ordenação social [ cf. artigo 168º, n.º 1, alínea d), na versão anterior à revisão de 1997, correspondente, hoje, ao artigo 165º, n.º 1, alínea d)] .
Na reserva de competência legislativa da Assembleia da República não cabe, pois, o processo administrativo. Escreveu-se, a propósito, no acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Março de 1996):
[ ...] a matéria processual administrativa, no que não toque (e não é esse manifestamente o caso do artigo 65º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/84) as
'garantias dos administrados' [ artigo 168º, n.º 1, alíneas u) e t), na versão anterior] , não integra a reserva legislativa da Assembleia da República, contrariamente ao que sucede com o processo perante o Tribunal Constitucional [ que integra a reserva absoluta: artigo 167º, alínea c)] , o processo criminal e o processo disciplinar e relativo aos ilícitos de mera ordenação social [ que integra a reserva relativa: artigo 168º, n.º 1, alíneas c) e d)] .
A norma do artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, não invade, por isso, a reserva de competência legislativa da Assembleia da República: ela que não versa, de facto, sobre as garantias dos administrados - e, assim, sobre direitos de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, maxime, sobre o direito ao recurso contencioso.
5.4. Inconstitucional seria a norma que, com o estabelecimento de um pressuposto processual, tornasse impossível ou particularmente onerosa a impugnação contenciosa dos actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Sê-lo-ia, porque, num tal caso, violaria a garantia do direito ao recurso contencioso.
Esta é, porém, uma questão que, no caso, se não coloca, pois, como este Tribunal já teve ocasião de decidir, por diversas vezes, a exigência de prévia interposição de recurso hierárquico necessário não viola a garantia constitucional da accionabilidade dos actos administrativos viciados - é dizer, a garantia do direito ao recurso contencioso [ cf., a propósito, os acórdãos nºs
9/95, 603/95, 115/96, 499/96, 1143/96 (publicados no Diário da República, Ii série, de 23 de Março de 1995, 14 de Março de 1996, 6 de Maio de 1996, 3 de Julho de 1996 e 11 de Fevereiro de 1997), 24/96 e 159/96 (estes, por publicar)]
.
Bem se compreende, de resto, que assim seja.
É que, tal exigência servirá, por vezes, para economizar um recurso contencioso, funcionando, assim, como instrumento de racionalização do acesso à via judiciária: basta que, interposto recurso gracioso, o particular obtenha, ao nível da Administração, a reformulação da decisão que considera lesiva dos seus direitos ou interesses legítimos. E, quando não evite o recurso contencioso, a utilização desse meio administrativo não impede a impugnação dos actos administrativos viciados, nem a torna particularmente onerosa; impõe apenas um compasso de espera.
5.5. O facto de a exigência de recurso tutelar necessário ser feita por um regulamento (recte, pelo Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, artigo
30º, n.º 1) coloca, porém, uma outra questão de constitucionalidade, que é a de saber se a obrigatoriedade desse recurso não deveria, antes, constar de lei.
Na verdade, para além das matérias cuja regulamentação tem, toda ela, que constar de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada, nas quais o regulamento só pode versar pormenores de execução (cf. supra, 5.2), existem outras cuja disciplina inicial e primária também só por acto legislativo pode ser regulada. Nelas, o regulamento só pode conter normação secundária e subsequente. Fala-se, a este propósito, em reserva de lei material [ cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição, 1993, página 515)]
Pois bem: a matéria de processo, quando se não inscreve na reserva legislativa parlamentar (esse é, como vimos, o caso do processo administrativo), reclama, naturalmente, a intervenção do legislador. Seria, na verdade, inadmissível que uma matéria com a importância do processo administrativo, que desempenha uma função instrumental relativamente ao direito de acesso à via judiciária, com o qual tem, por isso, íntima conexão, pudesse ser disciplinada por um regulamento independente, que é um regulamento editado na sequência de um acto legislativo que, para cumprir a exigência constitucional da primariedade ou da precedência de lei, apenas define 'a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão' (cf. artigo 115º, n.º 7, da Constituição).
Ora, o artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, o que faz é fixar um pressuposto do recurso contencioso (essa é, como vimos, a natureza do recurso tutelar necessário), que, obviamente, condiciona o acesso aos tribunais administrativos, com o objectivo de impugnar os actos administrativos viciados que sejam lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.
O artigo 177º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, ao prescrever que 'o recurso tutelar só existe nos casos expressamente previstos por lei', apenas pode reenviar para um acto legislativo, e nunca para um regulamento, pois se trata de matéria em que a disciplina inicial e primária só pode caber à lei. Por isso, tal norma, quando interpretada, como foi, em termos de remeter para um regulamento, é inconstitucional, por violação do artigo 115º, n.º 5, da Constituição, na versão anterior à revisão de 1997 (corresponde, hoje, ao artigo
112º, n.º 6).
De sua parte, o n.º 1 do artigo 30º do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, ao preceituar que 'dos actos praticados por entidades gestoras de programas quadro no âmbito do disposto no presente diploma cabe recurso necessário para o Ministro do Emprego e Segurança Social', versando matéria sobre que só a lei pode dispor, é também inconstitucional, por violação do princípio da primariedade da lei, que se revela, designadamente, nos nºs 6 e 7 do artigo 115º e no artigo 202º, alínea c), e por violação também do artigo
201º, nº 1, alínea a), todos da Constituição, na versão anterior à revisão de
1997.
Este Tribunal já teve, de resto, ocasião de decidir que a 'disciplina inicial' de determinadas matérias só pode constar de diploma legislativo [cf. acórdão nº
184/89 (publicado no Diário da República, I série, de 9 de Março de 1989), que, entre o mais, declarou inconstitucional, por violação do princípio da precedência de lei, determinadas normas de um regulamento de aplicação do Regulamento FEDER].
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação do artigo 115º, n.º 5, da Constituição (versão anterior à revisão de 1997) - a norma do artigo 177º, n.º
2, do Código do Procedimento Administrativo, interpretada em termos de remeter para um regulamento;
(b). julgar inconstitucional - por violação do princípio da primariedade da lei, decorrente, designadamente, dos nºs 6 e 7 do citado artigo 115º e do artigo
202º, alínea c), e por violação também do artigo 201º, nº 1, alínea a), todos da Constituição - a norma do artigo 30º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho;
(c). conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformado em conformidade com o aqui decidido sobre a mesma.
Lisboa, 10 de Março de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Voto de vencida
Fora do âmbito da competência exclusiva da Assembleia da República, a edição de regulamentos independentes ou autónomos só deve considerar-se vedada, entre nós, nas matérias que a Constituição coloca expressamente sob reserva de lei (reserva de lei em sentido material, segundo a expressão mais corrente, embora não desprovida de ambiguidade).
Não tem, por outras palavras – salvo o devido respeito pela opinião que fez vencimento –, fundamento constitucional uma reserva de lei filiada na
'importância' dos assuntos, da qual se pudesse deduzir 'naturalmente' a necessidade de disciplina legislativa directa, com a consequente proibição de reenvio para normas de segundo grau. Na falta de reserva constitucional expressa, este reenvio normativo é sempre possível, desde que respeitadas as regras de competência e de forma estabelecidas nos nºs 7 e 8 do artigo 112º da Constituição.
No caso presente, uma vez adquirido que a matéria do processo administrativo – ou, mais especificamente, a da definição dos pressupostos do recurso contencioso – não integra a reserva de competência parlamentar, não pode, em meu entender, invocar-se a conexão de tal matéria com a garantia de recurso, apenas para afastar a possibilidade de intervenção regulamentar autónoma. Se a imposição de um recurso tutelar necessário não tem relevância suficiente, do ponto de vista da garantia de recurso contencioso, para justificar a reserva parlamentar, nada impede que o legislador confie tal tarefa
à competência regulamentar do Governo.
Não são raras, aliás, no nosso direito, as disposições regulamentares sobre recursos administrativos. Ao contrário da doutrina perfilhada pelo presente acórdão, não me parece que essas disposições, fora dos limites da reserva de competência da Assembleia da República, possam ser julgadas inconstitucionais. Luís Nunes de Almeida