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Processo n.º 267/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... e seu marido, MB..., vêm reclamar do despacho do Conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Março de 2000, 'para que seja apreciada e decidida a nulidade e inconstitucionalidade do acórdão da Relação de Lisboa, de
2 de Junho de 1998, por força do artigo 20º da Constituição e demais legislação'. O despacho reclamado não admitiu o recurso, que eles interpuseram para este Tribunal, 'quer do acórdão de 2 de Junho de 1998, do Tribunal da Relação de Lisboa, quer consequentemente de todos os doutos acórdãos, designadamente os acórdãos de 18 de Fevereiro de 1999 e de 3 de Fevereiro de 2000, do Supremo Tribunal de Justiça'.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal emitiu parecer no sentido de que 'é manifesta a improcedência da presente reclamação, já que os reclamantes não suscitaram, durante o processo, de forma idónea e adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas que pudesse constituir base ou suporte de recurso de fiscalização concreta que pretenderam interpor. Note-se que nem sequer o lograram fazer no âmbito da presente reclamação, encerrando o respectivo requerimento com a formulação de um
‘pedido’ de ‘declaração de nulidade e inconstitucionalidade’ do acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação – o que é bem sintomático de que não têm presente a dimensão necessariamente ‘normativa’ inquestionavelmente associada aos recursos de fiscalização concreta'.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Começa por sublinhar-se que, na reclamação do despacho que indefere o requerimento de interposição do recurso, o Tribunal só pode decidir se no caso se verificam os respectivos pressupostos: caso esses pressupostos se verifiquem, defere a reclamação e manda admitir o recurso; não se verificando eles, é a reclamação indeferida (cf. artigos 76º, n.º 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional e artigo 689º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 69º daquela lei). Vale isto por dizer que, contrariamente ao que vem pedido, o Tribunal não pode aqui decidir se o acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Junho de 1998, enferma de 'nulidade e inconstitucionalidade'.
Mas, sendo esse o pedido dos reclamantes – um pedido de que o Tribunal não pode sequer conhecer – um julgamento rigoroso da reclamação conduziria a não se tomar conhecimento dela.
4. Mas, admitindo que os reclamantes, embora expressando-se do modo apontado, o que pretendem é que o Tribunal mande admitir o recurso por eles interposto, ainda assim, a sua pretensão não pode ser deferida.
É o que vai ver-se.
Referiu-se atrás que os reclamantes interpuseram recurso 'quer do acórdão de 2 de Junho de 1998, do Tribunal da Relação de Lisboa, quer consequentemente de todos os doutos acórdãos, designadamente os acórdãos de 18 de Fevereiro de 1999 e de 3 de Fevereiro de 2000, do Supremo Tribunal de Justiça'. No entanto, face ao teor do pedido formulado na reclamação, fica-se na dúvida sobre se pretenderam restringi-lo ao indicado aresto da 2ª instância.
Pois bem: se a pretensão dos reclamantes for a de que este Tribunal mande admitir o recurso que interpuseram, compreendendo no seu objecto o acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Junho de 1998 (ou restringindo mesmo tal objecto a esse aresto), nessa parte, está tal pretensão votada ao fracasso: desde logo, porque, tendo eles impugnado essa decisão perante o Supremo Tribunal de Justiça, só o acórdão que este último Tribunal proferiu no recurso (ou seja, o acórdão de
18 de Fevereiro de 1999) pode, eventualmente, ser impugnado perante o Tribunal Constitucional. Não já o acórdão da Relação. E mais: do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça só poderá recorrer-se para o Tribunal Constitucional, caso se verifiquem os pressupostos do recurso interposto: é que, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Fevereiro de 1999, consumiu o referido acórdão da Relação, sendo ele que passou a constituir o direito do caso. Este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Fevereiro de 1999 – esclarece-se - negou provimento à revista interposta pelos autores do acórdão da Relação, de 4 de Novembro de 1997 (este, por sua vez, tinha negado provimento à apelação, interposta pelos herdeiros de ABDUL GAFAR NOORMAMED VALY OSSMAN, da sentença do Juiz do Tribunal Judicial de Oeiras, que julgara improcedente a acção de despejo proposta por este contra os ora reclamantes e outros réus, com fundamento na falta de pagamento de rendas), mas, simultaneamente, negou provimento ao agravo interposto pelos réus (ora reclamantes) de um outro acórdão da mesma Relação (justamente, do indicado acórdão de 2 de Junho de 1998), que, no incidente respectivo (o incidente regulado no artigo 58º do Regime do Arrendamento Urbano), requerido pelo autor, decretou o despejo imediato dos réus, com fundamento em que estes, na pendência da acção, deixaram de pagar as rendas devidas.
Se, porventura, os reclamantes pretendem que este Tribunal admita o recurso que interpuseram, tendo por objecto também aquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Fevereiro de 1999, a sua pretensão continua a não poder ser atendida. Na verdade, esse recurso - que só podia ser o da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional - só seria admissível se, durante o processo (ou seja: antes de aquele aresto ser proferido), os reclamantes tivessem suscitado a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica que o mesmo tivesse aplicado como sua ratio decidendi, ou se fosse caso de os dispensar do cumprimento desse ónus. Tal não acontece, porém. Eles não suscitaram, tempestivamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. E tão-pouco se está perante situação que justifique a dispensa do cumprimento desse ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade, durante o processo: de facto, houve possibilidade de o cumprir antes de proferido o referido aresto. Os reclamantes, com efeito, só no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal vieram, pela primeira vez, falar de inconstitucionalidade. Esse requerimento apresentaram-no depois de lhes ser notificado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Fevereiro de 2000, que desatendeu sete
'reclamações por nulidade de sentença'. Estas reclamações apresentaram-nas eles, depois de o mesmo Supremo Tribunal ter tirado o acórdão de 21 de Outubro de
1999, desatendendo reclamações apresentadas contra o acórdão de 18 de Fevereiro de 1999 atrás citado.
Abre-se aqui um parêntesis para deixar constância de que, entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo seu acórdão de 18 de Novembro de 1999, já tinha mandado que, nos termos do artigo 720º do Código de Processo Civil, os autos de recurso baixassem, para execução do julgado, ficando traslado para julgamento, em separado, daquele incidente de arguição de nulidade de sentença. Foi, por isso, no traslado que o recurso foi interposto, sendo também aí que foi processada a presente reclamação.
Fechado o parêntesis, recorda-se aquilo que, no concernente à questão de inconstitucionalidade, os reclamantes disseram no referido requerimento de interposição de recurso. Foi o seguinte: As interpretações e as decisões conferidas a este incidente [refere-se ao incidente de despejo imediato a que atrás se aludiu] e que foram objecto de recurso e reclamações consubstanciam uma violação dos direitos fundamentais de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e do princípio da igualdade [consagrado] no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Os recorrentes não compreendem nem muito menos podem aceitar a decisão inconstitucional do despejo, no caso dos autos, quer na sequência processual quer no acórdão de 2 de Junho de 1998, pela inconstitucionalidade das interpretações dos preceitos citados e constantes do processo e das sucessivas decisões de denegação de justiça, constantes nos recursos e acórdãos. A inconstitucionalidade patente de denegação de justiça [...].
Como decorre da transcrição acabada de fazer, os reclamantes – que, insiste-se, durante o processo, não suscitaram a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica que a decisão (ou decisões) recorrida(s) tenha(m) aplicado como sua ratio decidendi –, quando invocaram a existência de vício de inconstitucionalidade, não colocaram, propriamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa. Ao menos, não a colocaram de forma clara e perceptível, pois falaram em 'decisões' que 'consubstanciam uma violação dos direitos fundamentais de acesso ao direito e aos tribunais', em 'decisão inconstitucional do despejo', em 'sucessivas decisões de denegação de justiça' e em 'inconstitucionalidade patente de denegação de justiça' – o que, naturalmente, inculca a ideia de que imputam o vício de violação da Constituição
às decisões judiciais consideradas em si mesmas, e não a normas jurídicas que estas tenham aplicado. Ora, como é sabido, não havendo entre nós recurso de amparo, este Tribunal só pode apreciar questões de inconstitucionalidade normativa, e não a inconstitucionalidade das próprias decisões judiciais, consideradas em si mesmas. Mais um motivo, pois, a obstar à admissão do recurso.
É certo que, no dito requerimento, também se fala em 'interpretações' que
'consubstanciam uma violação dos direitos fundamentais de acesso ao direito e aos tribunais' e em 'inconstitucionalidade das interpretações dos preceitos citados e constantes do processo e das sucessivas decisões '. Só que – para além, repete-se, de já estar ultrapassado o momento de o fazer - esse não é, sequer, um modo processualmente adequado de colocar uma questão de inconstitucionalidade normativa, pois não se identificam as interpretações que infringem a Constituição, nem, ao menos, os preceitos legais que as suportam. Utiliza-se, antes, uma fórmula passe-partout que, para o efeito aqui em vista, nada diz de útil. Registe-se, a finalizar, que o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
3 de Fevereiro de 2000, nem sequer aplicou qualquer norma jurídica atinente à matéria do despejo imediato. Limitou-se a decidir que 'as reclamações [...] não se enquadram nos artigos 668º e 716º do Código de Processo Civil'. Por conseguinte, só estes preceitos legais ele aplicou. De tal aresto, também por essa razão, não cabe recurso.
5. Conclusão: Por tudo quanto se disse, não podendo o recurso ser admitido, tem a reclamação que ser indeferida.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação;
(b). condenar os reclamantes nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Maio de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida