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Processo n.º 165/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. W.I., SRL, nos autos de revista em que era recorrente a I. L., LDA, ao ser notificada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que concedeu
'a revista, ficando alterado o despacho do INPI, no sentido de ser admitido o registo da marca nacional da recorrente n.º 20.793 Ignis Portugal' - registo que o INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL, por despacho do DIRECTOR DO SERVIÇO DE MARCAS, tinha recusado, com fundamento na possibilidade da sua confusão com as marcas internacionais n.º 238.405 Ignis e R. 158.084 Ygnis, pertencente à recorrida -, veio arguir a nulidade de tal aresto, imputando-lhe o vício de excesso de pronúncia.
O vício de excesso de pronúncia, assacado ao acórdão, verificar-se-ia, no entender da reclamante, a dois títulos: de um lado, o aresto teria conhecido de matéria de facto, o que lhe está vedado; e, de outro, como a revista assumia, no caso, a natureza de recurso de anulação, ao Supremo Tribunal de Justiça competia tão-só 'o controle da legalidade do acto recorrido', não podendo 'julgar em jurisdição plena, sob pena de, ao conceder ou recusar os registos, estar a administrar, invadindo o âmbito das atribuições dos
órgãos executivos e violando a separação de poderes'.
Acrescentou a reclamante nesse requerimento que, no caso de o Supremo Tribunal de Justiça entender que o acórdão não estava ferido de nulidade, então, 'a interpretação do referido artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, no sentido da inexistência do excesso de pronúncia, contrariará frontalmente o princípio constitucional da separação de poderes'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Novembro de
1997, desatendeu a reclamação. Disse, a propósito, que o aresto reclamado tinha distinguido 'o que entendia ser matéria de facto e matéria de direito, precisamente para se debruçar unicamente sobre a última'. E, depois de referir que, em matéria de recursos, vigora o chamado princípio da substituição, segundo o qual 'o tribunal de recurso, se o acolher, substitui a decisão por aquela que lhe parecer legal, ou seja, que, em seu entender, o tribunal recorrido devia, na circunstância, ter proferido' (citação de CASTRO MENDES), acrescentou: 'ora, as disposições relativas aos recursos constantes do Código da Propriedade Industrial aplicável (Decreto-Lei n.º 30 679, de 24 de Agosto de 1940) nada preceituam em contrário com esse princípio, pelo que os tribunais judiciais, enquanto instâncias de recurso, devem julgar de acordo com o referido princípio; aliás o artigo 43º do actual Código da Propriedade Industrial preceitua expressamente que da decisão judicial haverá recurso nos termos gerais'.
Notificado este acórdão à W.I., SRL, veio ela interpor recurso do mesmo para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da respectiva lei orgânica, a fim de 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada, nos termos da qual o mesmo consente que, em sede de recurso de revista de decisão proferida em sede de recurso contencioso de despacho de órgão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial que nega o registo de uma marca, pode o tribunal ordenar que este substitua o despacho por outro que autorize o registo'.
O Conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 9 de Janeiro de 1998, indeferiu, porém, o respectivo requerimento, com fundamento em que o recurso interposto era manifestamente infundado.
2. É deste despacho de rejeição do recurso que foi apresentada a presente reclamação pela mesma W.I., SRL.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, no seu visto, pronunciou-se no sentido de que a reclamação deve ser indeferida, uma vez que o recurso deve ser qualificado como 'manifestamente infundado', pois 'carece ostensivamente de sentido a questão de constitucionalidade suscitada, enquanto reportada à norma que o recorrente especifica como integrando o objecto do recurso'.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. A reclamação só é de deferir, se o recurso interposto, que o despacho reclamado rejeitou, dever ser admitido. De contrário, tem ela que ser indeferida.
Pois bem: na medida em que os autos o permitam, o Tribunal deve conhecer de todos os pressupostos do recurso, e não apenas do fundamento invocado pelo despacho reclamado para o rejeitar.
É que, se a reclamação for deferida - e, assim, o despacho reclamado revogado -, a decisão do Tribunal faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (cf. artigo 77º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional).
Por isso, tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, este não deve limitar-se a averiguar se o mesmo é ou não manifestamente infundado. Sendo necessário, para que tal recurso deva ser admitido, que a recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma jurídica que pretende ver apreciada sub specie constitutionis (ou de determinada interpretação dela) e que a decisão recorrida tenha aplicado essa norma (ou esse sentido dela) no julgamento do caso de que emergiu o recurso, deve o Tribunal começar por averiguar se, no caso, se verificam estes pressupostos.
Vejamos, então: ao arguir a nulidade do acórdão que concedeu a revista, a ora reclamante questionou a constitucionalidade do artigo 668º, n.º
1, alínea d), do Código de Processo Civil, interpretado 'no sentido da inexistência de excesso de pronúncia', apesar de o acórdão a que imputava tal vício, ter, na sua opinião, conhecido de matéria de facto, o que lhe estava vedado; e ter entendido que era lícito ao Supremo Tribunal de Justiça 'julgar em jurisdição plena', não obstante a revista, em seu entender, assumir, no caso, a natureza de recurso de mera anulação.
Posteriormente, ao interpor o recurso de constitucionalidade, a reclamante disse pretender 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada, nos termos da qual o mesmo consente que, em sede de recurso de revista de decisão proferida em sede de recurso contencioso de despacho de órgão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial que nega o registo de uma marca, pode o tribunal ordenar que este substitua o despacho por outro que autorize o registo'.
Na reclamação, referindo-se ao artigo 203º do Código da Propriedade Industrial, disse a reclamante que 'se lhe afigura que a disposição para além dos poderes meramente anulatórios que, em seu entender, são os do tribunal - mesmo comum - quando sindica actos administrativos de concessão de registos de marca, configuram a prática de actos materialmente administrativos que prejudicam a separação de poderes constitucionalmente decretada'.
Ora, se, com a afirmação referida por último, a reclamante pretendeu alterar o objecto do recurso que quer ver admitido, passando a imputar a inconstitucionalidade ao artigo 203º do Código da Propriedade Industrial, em vez de, como fizera antes, ao artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, fez ela uma tentativa condenada ao fracasso, uma vez que esse objecto ficou definido no respectivo requerimento de interposição. A reclamação já não é momento processualmente adequado para definir o objecto do recurso.
Suposto, porém, que não é esse o alcance da referida afirmação, então, há-de convir-se que a norma que a reclamante pretende ver apreciada no recurso - norma que, segundo ela, o Supremo Tribunal de Justiça extraiu, por via interpretativa, do mencionado artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil -, enquanto reportada a este preceito legal, não foi aplicada pelo acórdão recorrido. Dizendo de outro modo: o artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil não foi aplicado pelo acórdão recorrido com a interpretação que a reclamante diz ser inconstitucional.
De facto, tal aresto, para concluir que o acórdão então reclamado não enfermava do vício de excesso de pronúncia, em virtude de, por um lado, apenas ter conhecido de direito - e não também de facto - e de, por outro, ser lícito ao Supremo Tribunal de Justiça substituir a decisão recorrida por aquela que lhe pareceu legal (ou seja, pela decisão que, em seu entender, a Relação devia, na circunstância, ter proferido), acrescentou: 'ora, as disposições relativas aos recursos constantes do Código da Propriedade Industrial aplicável (Decreto-Lei n.º 30 679, de 24 de Agosto de 1940) nada preceituam em contrário com esse princípio [refere-se ao denominado princípio da substituição], pelo que os tribunais judiciais, enquanto instâncias de recurso, devem julgar de acordo com o referido princípio; aliás o artigo 43º do actual Código da Propriedade Industrial preceitua expressamente que da decisão judicial haverá recurso nos termos gerais.'
Significa isto que, para definir os seus poderes de cognição - e são tais poderes que, em direitas contas, estavam em causa, pois se tratava de saber se a revista assume, no caso, a natureza de um recurso de anulação
(recurso de mera legalidade) ou se, ao invés, é ela um recurso de plena jurisdição - o Supremo Tribunal de Justiça não fez apelo ao mencionado artigo
668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Convocou, antes, as normas do Código da Propriedade Industrial de 1940, atinentes aos recursos dos
'despachos que concederem ou recusarem as patentes, depósitos ou registos'. Ou seja: para dirimir tal questão (a questão dos seus poderes de cognição), o Supremo Tribunal de Justiça interpretou - e aplicou - os artigos 203º a 210º do citado Código (maxime, o artigo 203º, segundo o qual, daqueles despachos,
'haverá recurso para o tribunal da comarca de Lisboa'; e o artigo 209º, que dispõe que 'da sentença poderão as partes apelar', acrescentando que 'do acórdão da Relação compete recurso para o Supremo Tribunal de Justiça'), conjugado com o artigo 792º do Código de Processo Civil.
Este é também, no fundo, o sentido da passagem que se transcreve do parecer do Ministério Público:
É, aliás, evidente que a questão de constitucionalidade colocada só poderia ter sentido enquanto reportada à norma constante do artigo 203º do Código da Propriedade Industrial, cuja constitucionalidade a ora reclamante poderia ter suscitado durante o processo, questionando-a, nomeadamente, enquanto comete aos tribunais cíveis a competência para julgarem, segundo as regras procedimentais do processo civil, os recursos interpostos de despachos de concessão de registos em sede de propriedade industrial. Não o tendo feito, em termos adequados e oportunos, é evidente que lhe não é possível proceder a uma espécie de 'novação' do possível objecto do recurso, reportando-o artificiosamente a uma norma processual civil referente à tipificação das nulidades das decisões judiciais.
Aliás, definindo o artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia - e não os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça -, não se vê como poderia tal preceito comportar uma interpretação como a que a reclamante diz dele ter feito o Supremo Tribunal de Justiça.
Ora - repetindo o que este Tribunal observou no acórdão n.º 367/94
(publicado no Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1994) - 'como toda a interpretação tem de ter 'na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso' (cf. artigo 9º, n.º 2, do Código Civil), ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do texto do preceito em causa'.
Decorre do que se disse que o acórdão recorrido, ao decidir que o aresto reclamado não enfermava de nulidade, por excesso de pronúncia, já que - argumentou - era lícito ao Supremo, no julgamento da revista, substituir a decisão recorrida por aquela que lhe pareceu legal (ou seja, pela decisão que, em seu entender, a Relação devia, na circunstância, ter proferido), não lançou mão do artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Não aplicou ele, por isso, a norma que a reclamante arguiu de inconstitucional e que pretende ver apreciada por este Tribunal ratione constitutionis.
Assim, pois, não se verifica o pressuposto da aplicação pela decisão recorrida da norma arguida de inconstitucional, durante o processo, pela reclamante.
Mas, então, não podendo o recurso ser admitido, por falhar um dos seus pressupostos, deve ser indeferida a reclamação apresentada contra o despacho que o rejeitou.
A reclamação tem, assim, que ser indeferida.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, com taxa de justiça que se fixa em dez unidades de conta.
Lisboa, 4 de Junho de 1998
Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida