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Processo nº 35/98
2ª Secção Relator Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J... e mulher M..., com os sinais identificadores dos autos, vieram, 'nos termos do disposto no artigo 77º da Lei nº 28/82, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 85/89', reclamar para este Tribunal Constitucional 'do despacho que indeferiu a interposição do recurso, para esse alto tribunal, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que julgou improcedente o recurso que para ele, tribunal da Relação, fôra interposto da sentença proferida pelo Tribunal de Soure'.
No requerimento da reclamação começam os reclamantes por afirmar que a lei, reportando-se ao artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, de 15 de de Novembro, não diz que a questão de inconstitucionalidade 'deva ter sido suscitada nos articulados, em alegações ou em qualquer outra peça processual, o que dá a entender e é lógico que assim seja, que basta que o problema tenha sido posto à consideração de quem deva julgar nos tribunais comuns ou especiais, em qualquer das instâncias ou no tribunal de revista', e, por isso, não há 'que fazer distinção quanto ao modo, ao tempo ou ao lugar em que isso seja feito'. Depois, e no essencial, os reclamantes 'sustentam que a lei aplicável não distingue que a questão de inconstitucionalidade de qualquer norma aplicada em decisões judiciais seja suscitada nas alegações ou em qualquer outra peça processual, sendo certo, por outro lado, que as conclusões podem perfeitamente servir para alterar posições que venham de trás, sendo certo que estas têm um papel decisivo não só quanto ao âmbito do recurso que delimitam, como também no que concerne às razões que, em última análise, se tem como decisivas em favor da tese do recorrente', terminando do seguinte modo o seu discurso:
'De resto, se, como prescreve o nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil anterior, o recorrente pode restringir expressa ou tacitamente o objecto inicial do recurso, não se vê por que razão não possa também desenvolver nelas, conclusões, o seu raciocínio, em ordem a justificar e desenvolver as razões que conduzem ao resultado que preconiza. Por isso mesmo a jurisprudência se tem pronunciado no sentido de dar maior relevo às conclusões, atribuindo-lhe papel decisivo não só quanto ao âmbito do recurso mas também no que concerne às razões que, em última análise, se têm como decisivas, em favor da tese do recorrente'.
2. O Ministério Público, no seu Parecer, expressa o entendimento que 'a presente reclamação deverá ser julgada improcedente' , alinhando as seguintes razões:
'Não pode, a nosso ver, considerar-se suscitada, de forma idónea e adequada uma questão de inconstitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, sem a menor fundamentação e sem qualquer conexão com o conteúdo da alegação que produziu, que ‘a decisão sob censura’ fez de certos preceitos interpretação ou aplicação ‘inconstitucional’, que não curou sequer de especificar minimamente. Cumpre à parte que pretenda interpor recurso de fiscalização concreta, fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, o ónus de suscitar claramente ‘durante o processo’, isto é, antes da prolação da decisão recorrida, certa questão de inconstitucionalidade normativa, identificando e especificando, de forma inteligível, qual a norma ou interpretação normativa que reporta de inconstitucional. E tal ónus não pode naturalmente considerar-se preenchido com a simples e totalmente infundamentada afirmação de que certa interpretação ou aplicação normativa – que se não identifica minimamente – ofende certos preceitos ou princípios da Lei Fundamental'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir. Dos elementos que constam do processo pode extrair-se o seguinte quadro processual:
3.1. 'J... e mulher M... intentaram na Comarca de Soure, acção com processo ordinário para o que lhe atribuíram o valor de Esc. 2 000 001$00 contra A... e mulher MR... e MC..., pedindo que se declare sem efeito a denúncia do contrato de arrendamento rural para 1/11/1993, feita pelos RR. através de notificação extra-judicial de 15/10/1992 e com invocação do disposto no artº 20º nº 1 do Dec.-Lei nº 385/88 de 25/10, por ela representar abuso de direito «já que pode previamente dar-se por certo que nenhum deles quer explorar a terra dessa parcela, nem têm condições para o fazer»'.
3.2. Por despacho saneador - sentença da primeira instância, a acção foi julgada improcedente 'por ser inadmissível a oposição à denúncia e os factos alegados pelos AA não configurarem qualquer abuso de direito'.
3.3. Dessa sentença interpuseram os Autores, ora reclamantes, recurso de apelação, concluindo, resumidamente, nas alegações respectivas, deste modo:
'1. Os AA. apercebendo-se de que há o risco de procedência da acção de oposição
à denúncia inicial do contrato, nos termos do artº 19º da Lei de Arrendamento Rural, resolveram lançar mão do expediente previsto no artº 20º.
2. No entanto, eles não têm condições de fazerem essa exploração, nem verdadeira intenção de o fazerem.
3. O que representa um «abuso de direito».
4. A declaração de denúncia padece de um vício intrínseco da sua constituição, por representar um abuso e as sanções previstas nos nºs 3 e 5 do artº 20º citado, apenas se aplicam às declarações válidas, criadoras de obrigações legais que depois não se cumprem'.
3.4. A tal recurso foi negado provimento e confirmada a decisão recorrida, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Julho de 1996.
3.5. Deste acórdão vieram os reclamantes interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 85/89, de
7 de Setembro, por interpretação e aplicação inconstitucional dos artigos 334º do Código Civil, 18º e 20º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, 20º, nº
1, 205º, nº 2 e 207º, da Constituição da República Portuguesa', esclarecendo depois, a convite do Relator, que a 'fase processual em que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade foi na alegação de recurso para esse Tribunal Superior (Conclusão 11ª)'.
3.6. Esse recurso não foi admitido por despacho do Relator, de 13 de Dezembro de
1996, confirmado por acórdão de 18 de Fevereiro de 1997, podendo ler-se neste o seguinte:
' O recurso não foi, contudo, admitido pelo Relator, o qual ponderou que em parte alguma do texto da alegação os recorrentes haviam feito referência ao apontado vício, nele dizendo apenas que o Tribunal recorrido não atentara que o exercício do direito de denúncia representava no caso concreto dos autos, um clamoroso abuso de direito. E só numa das muitas conclusões apresentadas vieram eles declarar que o Tribunal
‘a quo’ fizera uma interpretação inconstitucional dos artºs 334º do C.Civil e
18º e 20º da L .A. R.. Daí ter entendido o Relator não ser relevante tal arguição e isto porque as conclusões da alegação do recurso não podem servir para veicular questões ou tratar de matérias que não hajam sido especificamente consideradas no respectivo texto. E logo, ser manifestamente infundado o recurso nos termos do artº 70º al. b), com referência ao artº 76º nº 2 da Lei nº 28/82 de 15/11'.
4. Está fora de questão que, contrariamente ao entendimento dos reclamantes, não
é de todo irrelevante o momento e o modo como é suscitada num processo uma questão de inconstitucionalidade normativa, pois tal suscitação tem de operar perante o tribunal que vai debruçar-se sobre essa questão, para se obter deste uma pronúncia, e daí abrindo-se, se for caso disso e se se verificarem os demais pressupostos processuais e os requisitos específicos, exigidos por lei, a via do recurso de constitucionalidade (cfr. o nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro). In casu, o momento e o modo localizavam-se nas alegações e respectivas conclusões do recurso de apelação interposto para o tribunal de relação, mas a verdade é que a pretensa suscitação de uma questão de inconstitucionalidade só pode extrair-se do seguinte passo dessa peça processual:
'Com a decisão sob censura fez-se aplicação e (ou) interpretação inconstitucional dos artigos 334º do Código Civil, 18º e 20º do Decreto-Lei nº
385/88, de 25 de Outubro, 205º, nº 2 e 207º, ambos da Constituição da República Portuguesa' (conclusão 11ª, sem correspondência, aliás, com o texto das alegações). Ora, independentemente de saber se da transcrita conclusão se pode retirar com clareza que há uma arguição de inconstitucionalidade reportada a uma norma infraconstitucional, in casu os preceitos aí identificados do Código Civil e do Decreto Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, ela não constitui um modo idóneo de fazer tal arguição, porquanto não passa de mera afirmação avulsa, sem se enunciar, nem identificar, qual a concreta interpretação daquelas normas que se tem por inconstitucional, e, além disso, desligada do teor das próprias alegações. Na verdade, sendo o tronco comum e essencial dessas alegações a figura do abuso do direito, prevista no artigo 334º do Código Civil, no sentido de que importaria apurar se os réus e senhorios se limitaram a exercer um direito que a lei lhes faculta e que prevalece sobre o interesse do arrendatário na manutenção do contrato de arrendamento rural, ainda que este seja fundamental para a sua subsistência económica, não se colhe do posicionamento dos reclamantes nenhuma argumentação sobre o sentido e interpretação daquele artigo nas instâncias (e daí também que o acórdão recorrido, versando substancialmente essa matéria, não tenha feito nenhuma análise na perspectiva constitucional). Com o que não merece censura o despacho reclamado.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condenam-se os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em dez unidades de conta. Lisboa, 3 de Junho de 1998 Guilherme da Fonseca Messias Bento Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa