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Proc.Nº 12/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1.- A... e sua mulher, M... requereram a avaliação fiscal extraordinária de uma fracção autónoma de sua propriedade que se encontra arrendada à firma I.S. - Investimentos e Seguros, Lda.
Este pedido veio a ser indeferido, por deliberação do Presidente da Comissão de Avaliação, tendo os requerentes interposto recurso desta deliberação para o Juiz de Direito do Tribunal de Comarca de Lisboa que, por decisão de 12 de Março de 1996, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida. Fundamentou-se esta decisão, em síntese, no seguinte raciocínio: (_) tendo os recorrentes em 1987, em plena vigência do D.L. 330/81, requerido e obtido uma avaliação fiscal extraordinária que fixou a renda do locado em 9.415$00, e tendo posteriormente procedido às actualizações anuais de acordo com os coeficientes de actualização, sendo a renda actualmente de
19.018$00, não podem os recorrentes (senhorios) obter nova avaliação fiscal extraordinária, bem andou, pois, o Sr. Presidente da Comissão de Avaliação, pese embora a errada fundamentação legal.
Pedida a aclaração desta decisão, foi a mesma indeferida e os reclamantes condenados como litigantes de má fé.
Não se conformando com esta decisão, os recorrentes, invocando os artigos 463º, nºs 1 e 3, 678º, 685º, nº1, 686º,nº1, e 687º, todos do Código do Processo Civil (adiante, CPC), interpuseram recurso de apelação, alegando logo a inconstitucionalidade da norma do artigo 15º do Decreto nº
37021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção do Decreto Regulamentar nº 1/86, de
2 de Janeiro, quando determina que da decisão final dos processos de avaliação fiscal não cabe recurso.
Sobre este requerimento, veio a recair um despacho do juiz do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa que, entendendo inexistirem as alegadas inconstitucionalidades, indeferiu o recurso, por o mesmo ser legalmente inadmissível.
Os recorrentes notificados deste despacho, apresentaram reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 688º do CPC, voltando a suscitar a inconstitucionalidade do artigo 15º, §
único, do Decreto nº 37021. No entendimento aí defendido pelos recorrentes, a norma em causa é formal, orgânica e materialmente inconstitucional: respeitando
à organização e competência dos tribunais insere-se na competência legislativa da Assembleia da República, pelo que a sua regulação através de diploma emitido apenas ao abrigo da competência própria do Governo, viola aquela reserva legislativa (artigo 168º, nº, alínea q), da Constituição); por outro lado, não admitindo o recurso das decisões finais nos processos de avaliação fiscal, a norma viola o direito de acesso aos tribunais (artigo 20º, da Constituição).
O Presidente da Relação, em 21 de Outubro de 1996, decidiu que a reclamação devia ser deferida, pois entendeu que a norma do §
único do artigo 15º do Decreto nº 37021 é inconstitucional orgânica e formalmente, tendo afastado a inconstitucionalidade material.
Tal decisão fundamentou-se na argumentação que seguidamente se sintetiza.
Nela se entendeu que parece correcto o entendimento de que os Decretos Regulamentares não são actos legislativos, embora estejam sujeitos à referenda do Presidente da República, por não estarem integrados no elenco do nº1 do artº 115º da Constituição da República Portuguesa. Trata-se, portanto, de actos administrativos abstractos e genéricos. São muito solenes é certo, mas são meros actos administrativos.
No caso do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, invoca-se como norma que atribuiu ao Governo os poderes regulamentares usados o disposto no artigo 47º da Lei nº 2030, de 20 de Junho de 1948.
De facto, segundo o nº1 deste artigo 47º, as normas reguladoras da avaliação dos prédios urbanos e dos respectivos recursos serão estabelecidas por decreto dos Ministérios da Justiça e das Finanças. E parece não haver dúvidas da constitucionalidade de tais normas regulamentares em face da Constituição Política de 1933.
Porém, salvo o devido respeito por opinião adversa, a atribuição feita neste nº 1 daquele artigo 47º, para além de se poder considerar já estar esgotada com o uso que lhe foi dado no citado Decreto nº 37 021 - artº
168º, nº3 da CRP - tinha-se tornado supervenientemente inconstitucional com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, por contender com o seu artigo 167º, onde se estabelecia serem da exclusiva competência da Assembleia da República Portuguesa legislar sobre direitos, liberdades e garantias (alínea c) e organização e competência dos Tribunais e do Ministério Público (alínea j).
Esta inconstitucionalidade superveniente manteve-se no texto constitucional emergente da 1ª Revisão Constitucional (de 1982).
A decisão considerou não se verificar o fundamento baseado na inconstitucionalidade material, considerando o § único do artigo 15º do Decreto nº 37021 ferido de inconstitucionalidade orgânica e material.
Face à recusa de aplicação de tal norma, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório de constitucionalidade para este Tribunal, onde apenas o Ministério Público produziu alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º - A norma constante do § único do artigo 15º do Decreto nº 37 o21, de 21 de Agosto de 1948, aditado pelo artigo 1º do Decreto Regulamentar nº
1/86, de 2 de Janeiro, ao considerar insusceptíveis de recurso as decisões proferidas, em 1ª instância, no âmbito do processo de avaliação fiscal extraordinária, não padece de inconstitucionalidade.
2º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
2. - A questão da inconstitucionalidade orgânica da norma do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021 foi tratada, como refere o Ministério Público nas suas alegações, por este Tribunal no Acórdão nº 270/95, de 30 de Maio de 1995 (in Diário da República, IIª Série, de 21 de Julho de
1995).
A posição aí expressa corresponde inteiramente à doutrina do Tribunal, pelo que para ela nos remetemos agora, através de uma síntese dos argumentos então explanados.
Segundo a decisão recorrida, o Decreto Regulamentar nº
1/86, que aditou o § único ao artigo 15º do Decreto nº 37021, é inconstitucional por regular matéria de competência dos Tribunais que é da exclusiva reserva legislativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, nos termos do que se dispõe no artigo 168º, nº1, alínea q), da Constituição.
Tem-se entendido que nesta alínea cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais, só não sendo abrangidas as modificações de competência judiciária, material ou territorial, com carácter meramente processual, sendo inquestionável que matérias de simples carácter processual, de natureza civil, não cabem na reserva legislativa parlamentar, na medida em que a matéria de processo civil não está no âmbito da competência reservada da Assembleia da República (cf., neste sentido, os Acórdãos 367/92, 805/93, 404/87,
132/88, in Diário da República, respectivamente, Iª série, de 17 de Dezembro de
1992 e de 4 de Janeiro de 1994, e 2ª série, de 21 de Dezembro de 1987 e de 8 de Setembro de 1988).
O Tribunal tem também entendido que as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual, não constituem matéria de reserva legislativa parlamentar, mesmo que delimitem, por via indirecta, matéria de reserva de competência, mas sejam em primeira linha normas de carácter processual, pois tal reserva só respeita a normas que fixem os «poderes» dos tribunais, questão central da organização da justiça, num Estado de direito democrático, e não a normas de outra natureza, que apenas regulem as condições de tramitação processual ou a própria tramitação.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal, na reserva parlamentar, inscreve-se, pelo menos, a questão da competência em razão da matéria, a qual se prende com a distribuição de matérias pelos diversos tribunais dispostos horizontalmente. As normas que regulam directamente a competência em razão da hierarquia ou funcional, limitam-se a determinar que cabe aos tribunais superiores «julgar recursos» (cf. artigos 71º, alínea a), e
72º, alínea a), do Código de Processo Civil, e 28º, nº3, alínea a), e 41º, nº1, alínea a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).
Assim, escreve-se no Acórdão nº 270/95, que vimos seguindo de perto, que:
'A subsequente determinação dos casos em que tem lugar recurso depende de normas que, em primeira linha, disciplinam requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos e não de normas de competência propriamente ditas, embora delas resulte, indirectamente, a delimitação dos casos de intervenção dos tribunais superiores. Ora essas normas definidoras de condições de admissibilidade de recursos são normas de indiscutível carácter processual e só num plano mediato se repercutem na delimitação de competência dos tribunais superiores - escapando, portanto, ao âmbito da reserva parlamentar.' (neste sentido, o Acórdão nº 330/91, in Diário da República, 2ª série de 15 de Novembro).
3. - Voltando ao caso em apreço e aplicando o que se vem afirmando, pode concluir-se que a norma do § único do artigo 15º do Decreto nº
37021, na redacção do Decreto Regulamentar nº 1/86, não versa sobre matéria relativa à competência dos tribunais, mas reporta-se a matéria de processo civil, que não se encontra incluída na reserva da Assembleia da República, pelo que não viola o artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, inexistindo a invocada inconstitucionalidade.
4. - Na decisão recorrida vem também invocada como fundamento a verificação da inconstitucionalidade formal do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, que introduziu na redacção do artigo 15º do Decreto nº
37021 o § único considerado violador das regras constitucionais.
Porém, também aqui, a decisão não pode subsistir.
Desde logo, a própria decisão recorrida não põe em dúvida a constitucionalidade de tais normas regulamentares em face da Constituição Política de 1933, mas entende que, uma vez feita a utilização da norma que conferia ao Governo poderes para a regulamentar, tais poderes não poderiam ser de novo usados, pelo que a invocação do nº 1 do artigo 47º da Lei nº 2030, de 20 de Junho de 1948 estava já esgotada, para além de que tal atribuição se tinha supervenientemente tornado inconstitucional pela vigência da Constituição de 1976, por contender com o artigo 167º.
Já se referiu que a norma do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, sendo uma norma de carácter processual e não integrando a reserva de competência da Assembleia da República, não é organicamente inconstitucional se for - como foi - emitida apenas pelo Governo. Mas, sê-lo-á por constar de decreto regulamentar?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Desde logo, como refere o Exmo. Procurador-Geral adjunto nas suas alegações, o exercício do poder regulamentar do Governo ao emitir tal norma está legitimamente fundado em lei habilitante, o que afasta a violação do preceituado no nº 7 do artigo 115º da Constituição.
O legislador regulamentar, ao invocar a norma do artigo
47º da Lei nº 2030 para legislar, não está a utilizar qualquer autorização legislativa que se tenha esgotado quando o legislador emitiu o Decreto nº 37021, que também se suportou naquela norma: está apenas a indicar a lei habilitante para legislar, o que podia fazer - como a própria decisão recorrida reconhece - ao abrigo da Constituição de 1933.
Por outro lado, tratando-se de uma inconstitucionalidade formal, ou seja, de um vício que incide sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e que apenas tem em conta a forma da sua exteriorização, e referindo-se tal vício a norma que não está abrangida na reserva parlamentar, basta para a sua inexistência que no diploma se invoque a lei habilitante.
Nestes termos, o presente recurso tem de proceder.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso, determinando que o despacho recorrido seja reformulado de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade da norma do § único do artigo
15º do Decreto nº 37021, de 21 de Agosto, na redacção do Decreto Regulamentar nº
1/86. de 2 de Janeiro.
Lisboa, 19 de Maio de 1998 Maria Fernanda Palma Artur Mauricio Alberto Tavares da Costa Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida