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Proc. nº 641/97
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
M... recorreu contenciosamente do despacho de 25 de Setembro de 1991 do Ministro da Saúde que, em decisão de recurso hierárquico, lhe aplicou a pena disciplinar de inactividade por 1 ano.
O Supremo Tribunal Administrativo (STA), Primeira Secção, Segunda Subsecção, por acórdão de 13 de Outubro de 1993, negou provimento ao recurso.
Interposto pela interessada recurso para o Pleno da Secção, este, por acórdão de 1 de Outubro de 1997, negou igualmente provimento ao recurso jurisdicional.
Inconformada, recorreu a mesma para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirmando ter suscitado nas suas alegações de recurso para o Pleno 'sem êxito, a inconstitucionalidade originária do artigo
1º, nºs. 1 e 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, quer por vício de procedimento
[não respeito do artigo 57º, nº 2, alínea a), da Constituição, na versão para aqui relevante], quer por ofensa ao artigo 168º, nº 2, da Constituição (enquanto não respeita por inteiro a gama dos requisitos constitucionalmente exigidos a uma 'lei de autorização'), o que, derivada ou reflexamente, inquina o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, editado ao seu abrigo (e que aprovou, como sua parte integrante, o 'Estatuto Disciplinar'), e, pois, a 'invalidade' do acto com que se não conforma e que aquele 'Estatuto Disciplinar' busca o seu fundamento'.
Recebido o recurso, a recorrente apresentou as respectivas alegações em tempo oportuno, que assim concluiu:
'1.- O regime disciplinar faz parte integrante da noção de ‘legislação do trabalho’, e de harmonia com o artº 57º, nº 2, a), da Constituição (na versão que para aqui releva) constitui ‘direito’ das associações sindicais participar na elaboração da legislação do trabalho.
2.- As leis de autorização legislativa inserem-se no conceito de legislação do trabalho.
3.- Na elaboração da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, não foi permitida/assegurada a participação das associações sindicais representativas dos trabalhadores dela destinatários.
4.- Deste modo, por vício de procedimento, a Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, está ferida de inconstitucionalidade formal, originária, e, assim, resultou afectado, de modo constitucionalmente irremissível, o procedimento legislativo que produziu o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro (que aprovou, como sua parte integrante, o Estatuto Disciplinar).
5.- É certo que as associações sindicais que representam trabalhadores da Administração Pública participaram na elaboração do projecto que esteve na
‘base’ do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
6.- Porém, na nossa arquitectura constitucional toda a decisão legislativa (que, aqui, passa por um procedimento complexo, em dois graus) tem que ser participada activamente pelas organizações sindicais, e, pois, a cada passo da concretização da norma haverá que corresponder um momento participativo (ou, se assim melhor se preferir, dupla audição, a ser realizada directa e autonomamente perante cada um dos órgãos autores da norma).
7.- O artº 1º, nº 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, ao dispor como o faz não satisfaz o ‘conteúdo mínimo exigível’ a uma lei de autorização: apresenta carácter extremamente vago, impreciso, genérico e indeterminado; por direitas linhas, limita-se a dispor sobre o ‘leque de matérias’ relativamente às quais fica o Governo autorizado a legislar, sem condicionar o sentido normativo em que tal autorização deva ser exercida.
8.- Deste modo, o artº 1º, nº 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, porque colidente com o artº 168º, nº 2, da C.R.P., tal como iluminado pela jurisprudência constitucional, enferma de inconstitucionalidade material, originária, que, derivada ou reflexamente, inquina o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro (que aprovou, como sua parte integrante, o Estatuto Disciplinar).
9.- Assim, e salvo o merecido respeito, o douto acórdão recorrido quando não considerou verificadas as assacadas inconstitucionalidades não fez bom julgamento.
10.- De resto, este Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, é mesmo diploma global e globalizante - e se a actuação do legislador delegado poderá não ser censurável enquanto editou diploma global e globalizante o certo é que, a ver da Recorrente, tal implica observação global do regime instituído, sob perspectiva de inconstitucionalidade derivada ou reflexa (é que não é possível cindir o novo compêndio nos normativos editados ao abrigo da lei de autorização daqueles outros que serão, eventualmente, reedição de normação anterior).'
A entidade recorrida alegou igualmente, concluindo, por seu turno:
'a) Não se verifica a 1ª inconstitucionalidade apontada à lei de autorização - não audiência prévia das associações sindicais nos termos do artº 57º da CRP, na versão do tempo, - porque o seu conteúdo não limitou a liberdade de regulação do legsialdor autorizado em qualquer ponto que pudesse afectar os interesses da classe profissional em apreço; b) Essa circunstância tornava supérflua a audiência tanto mais que ela ocorreu, com outra e maior utilidade, na elaboração do diploma autorizado; c) Não se verifica a 2ª inconstitucionalidade – vaguidade, imprecisão e generalidade das expressões aí contidas - porque isso mesmo é pressuposto da liberdade do legislador delegado que deve respeitar um conteúdo mínimo de referência; d) Ora, esse conteúdo mínimo encontra-se na autorização que aponta a alteração do diploma vigente nos segmentos aí salientados, alterações aliás controladas pela audiência das associações interessadas na elaboração do diploma secundário.'
II
1.1. - A recorrente sustenta que as normas da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, que concedeu autorização legislativa ao Governo em matéria do direito de negociação dos trabalhadores da Administração Pública e quanto ao regime disciplinar da função pública, na medida a que se referem a este regime são inconstitucionais, vício que inquina, derivada ou reflexamente, o próprio decreto-lei autorizado que é, por isso, organicamente inconstitucional.
São essas normas as dos nºs. 1 e 3 do artigo 1º da mencionada lei, que assim dispõem:
'Artigo 1º Objecto, sentido e extensão
1.- O Governo é autorizado a legislar: a) ............................ b) Em matéria de regime disciplinar da função pública.
2.- ...........................
3.- O regime a instituir nos termos da alínea b) do nº 1 visa introduzir alterações ao Decreto-Lei nº 191-D/79, de 28 de Junho, por forma a redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar.'
1.2. - Lê-se, no acórdão de 1 de Outubro de 1997:
'[...] a questão que se coloca [dando como assente que as associações sindicais não foram ouvidas no processo de elaboração da lei de autorização legislativa em causa, e, também, que este tipo de lei se integra no conceito de ‘legislação do trabalho’] é a de saber se, não se eximindo em abstracto a Lei nº 10/83 nas vestes de lei de autorização legislativa, à aludida participação daquelas associações na sua génese, concretamente, atenta a densidade e a direcção do seu conteúdo conformador da legislação subsequente, essa participação não seria, no caso, dispensável.'
E, a este respeito, ponderou-se:
'Entendeu o acórdão recorrido [ou seja, o de Secção, de 12 de Outubro de 1993], com fundamento sólido, que a referida intervenção não era devida porque a lei de autorização em causa não continha qualquer norma que directamente dispusesse, conformando ou inovando, sobre o regime geral ou especial da função pública, mais rigorosamente, sobre o estatuto disciplinar dos respectivos trabalhadores. O momento adequado para esse direito de participação ser exercido com utilidade seria o da elaboração da lei autorizada onde poderão ser operantes as contribuições oferecidas pelas mencionadas associações para o aperfeiçoamento da legislação a adoptar.'
E, mais adiante:
'A exigência constitucional [...] quando incide sobre leis de autorização legislativa, tem como pressuposto que o diploma visado, no exercício dos seus poderes de conformação da legislação autorizada, tenha limitado a liberdade de regulação do legislador secundário em algum ponto relevante para os interesses da classe profissional em apreço [...].'
Debruçando-se sobre o concreto caso, mais se acrescentou:
'[...] facilmente se constata que a lei de autorização na sua análise não apresentou as características que demandariam a intervenção das associações sindicais. Na verdade, a pré-determinação material nela contida não tem o nível de concretização suficiente para, por si - isto é, abstraindo do diploma subsequente - poder afirmar-se que, através dos seus comandos, foram de algum modo atingidos os interesses da classe profissional dos destinatários últimos do programa normativo. Através das expressões legais ‘redefinir os factos ilícitos’, ‘definir novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar’, ‘corrigir a dosimetria das penas’, ‘ultrapassar dificuldades de execução’ ou ‘integrar lacunas do Estatuto Disciplinar’ vai apenas enunciado o sentido do diploma de regulação subsequente, não se estabelece qualquer disciplina que, de algum modo, toque direitos ou interesses atendíveis dos trabalhadores da função pública. Para tanto seria necessário descer um grau mais na escala da densificação possível das directivas colocadas ao segundo legislador ou que essas linhas de orientação apontassem já num sentido adverso a tais direitos ou interesses, o que manifestamente não sucede. Pelo que se subscreve a conclusão a que chegou o acórdão recorrido quanto ao carácter supérfluo que teria a discutida audição prévia e, por conseguinte, quanto à inexistência da primeira das arguidas inconstitucionalidades. E, da mesma forma, improcede a segunda inconstitucionalidade que o recorrente vê no art. 3º nº 1 da citada lei e que consistiria na vacuidade, imprecisão e generalidade das expressões nele contidas. Pois o carácter indeterminado das fórmulas utilizadas na descrição do programa normativo é necessariamente imposto pela liberdade de actuação que a lei de autorização terá que conceder ao legislador delegado. Ponto é que lhe forneça um conteúdo mínimo de referência a que arrime a sua actividade reguladora. E esse conteúdo mínimo preceptivo - que, em conjugação com as considerações precedentes não importa qualquer lesão directa dos direitos ou interesses dos destinatários da legislação ulterior - é justamente aquele que, com clareza suficiente, se exprime nos diferentes enunciados da norma (alteração do diploma em apreço nos segmentos ali precisamente apontados).'
2. - As questões de constitucionalidade postas, neste recurso,
à consideração do Tribunal Constitucional, não são novas, podendo enunciar-se do seguinte modo:
a)- a questão da inconstitucionalidade procedimental da Lei nº 10/83, por se presumir não ter havido audição das associações sindicais quanto à matéria de regime disciplinar da função pública, matéria que constitui legislação de trabalho, com violação do disposto no artigo 57º, nº 2, alínea a), da Constituição da República (CR), na versão em vigor ao tempo da edição da lei, ou seja, a resultante da primeira revisão constitucional, de 1982;
b)- a questão da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo
1º da mesma Lei nº 10/83, por violação do nº 2 do artigo 168º da CR (falta de sentido preciso da autorização legislativa);
c)- a questão de inconstitucionalidade derivada ou reflexa de todo o diploma autorizado, o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
Ora, sobre qualquer destas questões já se pronunciou o Tribunal Constitucional como decorre do acórdão nº 257/97, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1998.
Nesse aresto os fundamentos de impugnação foram idênticos aos ora aduzidos, com os quais se concorda pelo que para os mesmos se remete, reiterando a jurisprudência então firmada (de que igualmente já se fez eco no acórdão com o nº 380/98, inédito).
III
Em face do exposto, e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida