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Processo n.º 1315/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso, em 27 de novembro de 2013 (fls. 61), a título obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alíneas c) e e), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de despacho proferido pelo Juiz de Direito da 2ª Secção do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, em 20 de novembro de 2013 (fls. 46 a 48), que desaplicou a norma extraída do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, com fundamento na violação dos artigos 13º, n.º 1, 20º, n.º 4, e 32º, n.º 1, todos da CRP.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, cujas conclusões foram as seguintes:
1. «O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, nos presentes autos, do douto despacho judicial neles proferido, no qual a Mm.ª Juiz «a quo» decidiu que:
“Face ao exposto, considerando que a arguida é apresentada para julgamento sob a forma de processo sumário pela prática de crime com pena máxima abstratamente aplicável superior a 5 (cinco) anos, entende-se ser de recusar a aplicação do artigo 381º, nº 1 do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, pela verificação da aludida inconstitucionalidade e, em consequência, determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público”.
2. Centrou-se, pois, o recurso do Ministério Público, na apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, na dimensão da sujeição a julgamento, por tribunal singular, de crimes cuja pena máxima de prisão, abstratamente aplicável, seja superior a cinco anos.
3. Sobre esta matéria, já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar, nos seus Acórdãos n.ºs 428/13 e 469/13, tendo julgado, em ambos, inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.
4. No Acórdão n.º 428/13, o Tribunal Constitucional decidiu, concretamente:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
5. No Acórdão n.º 469/13, decidiu o Tribunal Constitucional:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
6. Em ambos os casos, considerou o Tribunal Constitucional que a norma em causa nos presentes autos, a ínsita no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, é violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
7. As razões apontadas para alcançar tal conclusão prendem-se com a constatação de que:
“o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP)”.
8. A este argumento, acrescentaremos o anteriormente defendido pelo Ministério Público, no sentido de que a solução eleita pelo legislador, e plasmada no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, faz depender a atribuição da competência para o julgamento, no que concerne a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos, do facto incidental, e estranho ao objeto material do conhecimento do tribunal, da ocorrência de detenção em flagrante delito.
9. A par de tal verificação, inferimos que este facto, estranho à substância do litígio, acaba por determinar, que, de forma desigual e iníqua, factos da mesma natureza e gravidade, sejam julgados, distintamente, por um tribunal singular ou por um tribunal coletivo, conforme, respetivamente, o arguido tenha, ou não, sido detido em flagrante delito.
10. Resulta daqui que, após termos aceitado que o julgamento perante tribunal singular concede menores garantias de defesa ao arguido do que o julgamento perante tribunal coletivo, devemos concluir que a nova redação dada ao n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, ao permitir que um arguido - detido em flagrante delito pela prática de um crime ao qual seja, abstratamente, aplicável pena de prisão superior a cinco anos - seja julgado perante tribunal singular, não assegura a este arguido “todas as garantias de defesa”, uma vez que não lhe assegura o julgamento perante tribunal coletivo, o qual lhe seria assegurado caso não tivesse sido detido em flagrante delito.
11. Verifica-se, pois, igualmente, a inconstitucionalidade da norma sob escrutínio, por violação do princípio da igualdade nas garantias do processo criminal, resultante da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, resultante da transgressão da dimensão de proibição do arbítrio, na medida em que o legislador ordinário decidiu tratar desigualmente (com injustificada diminuição das garantias de defesa do arguido) situações que, substancialmente, se representam iguais.
12. Segundo qualquer das perspetivas enunciadas, deve a norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal ser, consequentemente, julgada inconstitucional.» (fls. 78 a 82)
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido deixou expirar o prazo sem que viesse aos autos contra-alegar.
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A questão ora em apreço tem sido alvo de acesa discussão, doutrinária e jurisprudencial, e reconduz-se a saber se a alteração da lei processual penal, provocada pela Reforma de 2013, que permite a sujeição a julgamento em processo sumário de arguidos da prática de crimes com pena superior a cinco anos de prisão se afigura consentânea com a Lei Fundamental. A este propósito, a 3ª Secção deste Tribunal já teve oportunidade de apreciar a questão, tendo aprovado os Acórdãos n.º 428/2013 e n.º 469/2013 (disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que concluíram pela inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 1 do artigo 381º do CPP, por violação das garantias de defesa e do condicionamento da celeridade processual a essas mesmas garantias (artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da CRP). A pedido do Ministério Público, nos termos do artigo 281º, n.º 3, da CRP, e do artigo 82º da LTC, o Plenário deste Tribunal já teve oportunidade de apreciar a questão, declarando a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquela norma jurídica, através do Acórdão n.º 174/2014 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Assim sendo, em estrito cumprimento do determinado pelo Acórdão n.º 174/2014, impõe-se apenas constatar que a decisão recorrida se limitou a desaplicar uma norma inconstitucional, que, no presente momento, já não vigora no ordenamento jurídico português, por via do artigo 282º, n.º 1, da CRP.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se, mediante mera aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, resultante do Acórdão n.º 174/2014, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 6 de março de 2014. – Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.