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Proc. nº 617/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal da Comarca de Ovar, S... e mulher, R..., intentaram, em
1995, acção de despejo, com processo sumário, contra O... e marido, V..., pedindo a declaração de denúncia do contrato de arrendamento para habitação e comércio celebrado entre os autores e os réus e a condenação dos réus a entregar o arrendado aos autores, com efeitos a partir de 31 de Agosto de 1996, mediante o pagamento da indemnização legal.
Alegaram que são comproprietários do imóvel arrendado, pertencendo
1/4 aos autores e 3/4 à sogra e mãe dos autores, e que vivem nesse mesmo prédio; que em 1976, por contrato verbal, com a duração de um ano renovável, a mãe da autora deu de arrendamento aos réus, para habitação e comércio, uma parte do prédio, continuando a ocupar a restante parte do prédio, conjuntamente com a filha, agora autora, à data ainda menor; que há cerca de quatro anos, os réus construíram uma vivenda, onde instalaram a sua residência, tendo passado a utilizar como armazém, para fins exclusivamente comerciais, as divisões arrendadas.
Os autores invocaram como fundamento do pedido a necessidade do imóvel para habitação própria.
A acção foi julgada procedente. Tendo considerado aplicável o disposto nos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 71º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, o Tribunal do Círculo de Santa Maria da Feira declarou denunciado o contrato de arrendamento, condenando os réus a entregar aos autores imediatamente o imóvel locado e condenando os autores a pagar aos réus a importância de setenta mil escudos a título de indemnização.
2. Nas alegações produzidas nos recursos por si interpostos – recursos de agravo e de apelação –, O... e marido suscitaram a questão da inconstitucionalidade do artigo 71º do R.A.U., se aplicado com eficácia retroactiva a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor. Invocaram a decisão, com trânsito em julgado que, em 1993, julgara improcedente o pedido dos autores de denúncia para habitação própria do mesmo contrato de arrendamento. A aplicação ao caso dos autos do artigo 71º do R.A.U. ofenderia, em sua opinião, o caso julgado e violaria os artigos 207º e 208º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal da Relação do Porto reafirmou a aplicação ao caso dos autos do artigo 71º do R.A.U. (fls. 176v), julgou improcedente a excepção do caso julgado (fls. 177v) e afastou a acusação de inconstitucionalidade (fls.
178). Em consequência, declarou denunciado o contrato de arrendamento, condenando os apelados a pagar aos apelantes a importância de 70 000$00, a título de indemnização, e a importância de 250 000$00, a título de compensação, e condenando os apelantes a entregar aos apelados, no prazo de dois anos, o imóvel desocupado.
3. Inconformados, O... e marido vieram interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, pedindo a apreciação da 'inconstitucionalidade do artigo 71º do R.A.U., quando o mesmo é aplicado a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, produzindo eficácia retroactiva e quando o disposto nesse artigo colida com decisão transitada em julgado já proferida em anterior processo', por alegada violação dos artigos 207º e 208º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e do princípio do caso julgado.
Nas suas alegações, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'1ª – O artigo 1098º do Código Civil (antes da entrada em vigor do DL 321-B/90 de 15.10) estabelece como requisito para o exercício do direito de denúncia para habitação do senhorio que este não tivesse ainda usado dessa faculdade.
2ª – O art. 1098º do Código Civil foi revogado pelo referido DL 321-B/90 de
15.10.
3ª – O Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado por aquele mesmo diploma estabeleceu novos requisitos para o exercício do direito de denúncia do arrendamento por parte do senhorio. Esses requisitos são essencialmente os mesmos da lei anterior, deixando de ser requisito o senhorio não ter usado ainda dessa faculdade.
4ª – Os senhorios (aqui AA.), na vigência do art. 1098º do C.C., propuseram contra os arrendatários (aqui RR.) uma acção de despejo pedindo a denúncia do arrendamento para habitação própria. Essa acção foi julgada improcedente com trânsito em julgado.
5ª – Após a entrada em vigor do R.A.U. os mesmos senhorios propuseram contra os mesmos RR. outra acção fazendo o mesmo pedido de denúncia.
6ª – A nova lei ao revogar a anterior e estabelecer regime diverso nos termos em que o fez pôs em causa os efeitos do caso julgado proferido em processo transitado ao abrigo da lei anterior.
7ª – Nos termos da decisão anterior transitada o senhorio não podia propor outra acção; face à revogação dessa lei anterior e à lei nova o senhorio pode usar dessa faculdade as vezes que entender.
8ª – O disposto no art. 71º do Regime do Arrendamento Urbano na parte em que permite a faculdade de denúncia pelo senhorio mesmo que já tenha usado anteriormente dessa faculdade é inconstitucional quando o uso dessa faculdade contrarie decisão judicial anterior transitada em julgado cujo efeito era não permitir de novo o recurso a essa denúncia. E essa inconstitucionalidade é por violação do disposto nos arts. 207º e 208º, 2 hoje 204º e 205º, 2, da Constituição da República Portuguesa.'
Por sua vez, os recorridos sublinharam, em síntese, os seguintes aspectos:
'[...] ambas as acções foram intentadas já na vigência do D.L. 321-B/90: a primeira em 14 de Janeiro de 1992 e a segunda em 27 de Novembro de 1995 [...].
[...] não há caso julgado porque falta a identidade da causa de pedir. Não havendo caso julgado, não se pode julgar a sua violação.
[...] o que se quer dizer é que a proibição [constitucional] da retroactividade se põe exclusivamente em relação às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias e não em relação ao caso ora submetido à apreciação [do Tribunal Constitucional].'
4. A relatora ordenou então a notificação dos recorrentes, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, por considerar que o Tribunal Constitucional não devia tomar conhecimento do recurso, pelos seguintes fundamentos:
Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de uma norma (ou de uma determinada interpretação de uma norma);
– que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade. Os recorrentes submetem ao julgamento do Tribunal Constitucional a norma constante do artigo 71º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
É o seguinte o teor da norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada:
'Artigo 71º
(Denúncia para habitação)
1. O direito de denúncia para habitação do senhorio depende, em relação a ele, da verificação dos seguintes requisitos: a) Ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos, ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão; b) Não ter, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do país casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau.
2. O senhorio que tiver diversos prédios arrendados só pode denunciar o contrato relativamente àquele que, satisfazendo às necessidades de habitação própria e da família, esteja arrendado há menos tempo'. Os recorrentes pretendem todavia que o Tribunal aprecie a norma transcrita numa determinada dimensão normativa, pois entendem que tal norma é inconstitucional,
'quando se aplique a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, produzindo eficácia retroactiva, e quando colida com decisão transitada em julgado já proferida em anterior processo', por violação dos artigos 207º e
208º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e do princípio do caso julgado. Tendo em conta os pressupostos deste tipo de recurso, antes mencionados, conclui-se que não faz parte do objecto do presente recurso de constitucionalidade a norma do nº 2 do artigo 71º, já que tal norma não foi aplicada na decisão recorrida. Quanto à norma do nº 1 do artigo 71º, resulta agora claramente do teor das alegações apresentadas pelos recorrentes que eles apenas pretendem que a norma seja julgada inconstitucional:
'[...] na parte em que permite a faculdade de denúncia pelo senhorio mesmo que já tenha usado anteriormente dessa faculdade [...] quando o uso dessa faculdade contrarie decisão judicial anterior transitada em julgado cujo efeito era não permitir de novo o recurso a essa denúncia. E essa inconstitucionalidade é por violação do disposto nos artigos 207º e 208º,
2, hoje 204º e 205º, 2, da Constituição da República Portuguesa' (conclusão 8ª). Ora, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a excepção de caso julgado invocada pelos ora recorrentes. Há assim que concluir que não existe caso julgado anterior que possa ou deva invocar-se a propósito deste processo. Não foi atribuída à norma do nº 1 do artigo 71º do R.A.U., pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a interpretação referida pelos recorrentes e por eles considerada inconstitucional. Falta portanto um dos pressupostos processuais do tipo de recurso interposto – que a interpretação da norma questionada no processo tenha sido aplicada na decisão recorrida. Tal interpretação não pode por conseguinte ser apreciada pelo Tribunal Constitucional – sendo certo que não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa a propósito da improcedência da excepção de caso julgado.
5. Responderam os recorrentes, procurando sustentar ser 'diferente' a questão de constitucionalidade por eles suscitada, nos seguintes termos:
'[...] Os AA. propuseram uma acção contra os RR. (proc. 7/92 – 2ª Secção do 3º Juízo do Tribunal da Comarca de Ovar) pedindo a condenação destes 'a verem denunciado o contrato de arrendamento... e consequentemente condenados a fazer a entrega aos AA. da parte ocupada...'. o O fundamento deste pedido de denúncia do arrendamento era a necessidade dessa parte da casa para habitação própria dos AA. o Esta acção foi julgada improcedente com trânsito em julgado. o O contrato de arrendamento foi celebrado em 1976, conforme AA. e RR. estão de acordo. o Ao abrigo da lei em vigor na altura da celebração do contrato o senhorio podia denunciar o arrendamento desde que necessitasse do prédio para sua habitação, mas só podia usar dessa faculdade uma vez (artº 1098º do C. Civil). o Ora os AA., como senhorios, usaram dessa faculdade de denúncia do arrendamento para habitação própria uma vez através da acção nº 7/92. Nos termos da referida legislação invocada os senhorios não podiam propor nova acção a pedirem a denúncia do contrato para sua habitação própria. o Entretanto foi publicado e entrou em vigor o R.A.U. que eliminou das condições de admissibilidade da acção de despejo o requisito de 'não ter usado ainda desta faculdade'. o Face a isso os AA. propuseram a presente acção voltando a pedir a denúncia do contrato de arrendamento para habitação própria da mesma casa. Este é o enquadramento da questão que aliás teve apreciação da primeira e segunda instância.
[...] Quando os AA. celebraram o contrato de arrendamento em causa sabiam que o senhorio podia denunciar o contrato para sua habitação própria (desde que preenchidos os requisitos legais) mas que só podia usar dessa faculdade uma vez. O senhorio usou dessa faculdade uma vez, tendo a acção sido julgada improcedente com trânsito em julgado. Esta decisão não podia ser posta em causa. Ao entrar em vigor uma nova lei que permite a denúncia para habitação própria as vezes que o senhorio entender, está a ofender aquela decisão e aquele direito dos arrendatários.'
Concluíram no sentido de que deve tomar-se conhecimento do recurso.
6. Os recorridos, notificados para se pronunciarem sobre a questão, não responderam. II
7. A resposta dos recorrentes não abalou a exposição-parecer da relatora.
O recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto a apreciação da norma – ou de determinada interpretação da norma – concretamente aplicada na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelo recorrente durante o processo.
Nos presentes autos de recurso, os recorrentes suscitaram durante o processo a inconstitucionalidade do artigo 71º do R.A.U., nos seguintes termos:
' O disposto no art. 71º do Regime do Arrendamento Urbano na parte em que permite a faculdade de denúncia pelo senhorio mesmo que já tenha usado anteriormente dessa faculdade é inconstitucional quando o uso dessa faculdade contrarie decisão judicial anterior transitada em julgado cujo efeito era não permitir de novo o recurso a essa denúncia. E essa inconstitucionalidade é por violação do disposto nos arts. 207º e 208º, 2 hoje 204º e 205º, 2, da Constituição da República Portuguesa' (conclusão 8ª das alegações de recurso perante o Tribunal Constitucional).
Ora, é manifesto que, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto não atribuiu à norma impugnada o sentido que os recorrentes consideram inconstitucional.
Na resposta que agora apresentam, os recorrentes vêm porventura suscitar uma questão diferente (como eles próprios reconhecem a fls. 209v). Mas essa outra questão – a propósito da qual não estaria nunca em causa o confronto com os artigos 204º e 205º, nº 2, da Constituição, as normas consideradas violadas pelos recorrentes – não pode obviamente ser agora objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
8. Conclui-se assim que não está verificado no presente processo o pressuposto essencial para o conhecimento do recurso – a aplicação na decisão recorrida da norma impugnada, na dimensão normativa considerada inconstitucional pelos recorrentes.
III
9. Nestes termos, e pelo essencial dos fundamentos constantes do parecer da relatora, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 21 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa