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Processo n.º 700/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e B., Lda, foi interposto recurso, em 09 de julho de 2013 (fls. 16 e 17), a título obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alíneas a) e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de decisão proferida pelo Juiz de Direito do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, em 01 de julho de 2013 (fls. 3 a 10), por alegada desaplicação da norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 17º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), quando interpretado no sentido de que “nos processos de insolvência que têm a sua génese na emissão do parecer do Administrador Judicial Provisório, frustrada seja a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, não há lugar à citação do devedor para, querendo, deduzir oposição”, com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na sua modalidade de direito à defesa, tal como consagrados nos n.ºs 1 e 5 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. Notificado para o efeito, o Ministério Público produziu as seguintes alegações, cujas conclusões foram as seguintes:
«1. Questão prévia: inadmissibilidade do recurso
1.1. Nos termos do artigo 17.º-G, n.º 4, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o administrador judicial provisório (AJP) requereu a declaração de insolvência de “B., Ld.ª”, uma vez que não fora aprovado pela maioria de credores o plano apresentado para a revitalização da devedora.
1.2. Na decisão que proferiu, a senhora juíza do Tribunal Judicial de Guimarães, colocou a questão da (in)observância do contraditório.
Ou seja, em síntese, remetendo aquele n.º 4 do artigo 17.º-G, para o artigo 28.º, ambos do CIRE, no processo de insolvência que tinha a sua génese no parecer final do AJP proferido no âmbito de um plano especial de revitalização (PER), não haveria lugar a citação do devedor, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 29.º do CIRE “tudo se passando como se de uma apresentação à insolvência se tratasse”.
Analisando conjugadamente, o teor dos preceitos relevantes do CIRE e as consequências que daí adviriam para o devedor, com a ausência de citação, o Senhor Juiz conclui:
“Ante aquilo que vem de dizer-se, dever-se-á fazer uma interpretação abrogante da referência ao artigo. 28.º CIRE no artigo 17-G, nº 4, do mesmo diploma legal.”
Seguidamente diz-se na decisão:
“Ainda que assim se não entenda, a interpretação da norma extraída da conjugação do art.. 17.º-G/3 e 4 CIRE, segundo a qual o devedor nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do Exmo. Sr. AJP nos termos e para os efeitos do disposto no art. 17.º-G/4 CIRE não é citado para, querendo, deduzir oposição talqualmente prevê o art. 29.º CIRE, é inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva previstos no art. 20.º/1 e 5 CRP.” (sublinhado nosso)
Fundamenta-se, de imediato, esse juízo de inconstitucionalidade e finaliza-se dizendo:
“Com tal, e porque como acima se expôs, entendo que não obstante a referência legal ao artigo 28º do CIRE constante do artigo 17º-G, nº 4, do CIRE, a situação em apreço não poderá ser equiparada a uma situação de apresentação à insolvência desaplico (…)”
Conclui afirmando que desaplica por inconstitucionalidade a norma extraída do artigo 17º-G, nºs 3 e 4, na interpretação já atrás referida e transcrita.
1.3. Ora, neste contexto não poderá dizer-se que estamos perante uma recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade que constitua a ratio decidendi da decisão.
A senhora juíza sustenta e aplica uma determinada interpretação: que deve ser feita na interpretação abrogante do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE e que assim sendo a devedora deve ser citada, nos termos do artigo 29.º do CIRE.
Aliás, tendo sido cumprida a decisão, a devedora já foi devidamente citada (fls. 11 a 15)
A questão da inconstitucionalidade surge, assim, como uma obiter dictum.
A interpretação normativa que a senhora juíza identifica e reputa de inconstitucional não é a perfilhada e aplicada por ele na decisão, como de forma fundamentada e criteriosa demonstra.
Estando, pois, presente uma “falsa recusa” de aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade, não deverá conhecer-se do objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Lopes do Rego, “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 66).
1.4. Aliás, vendo a questão noutra perspetiva e de uma forma mais global, conjugando o afirmado na decisão quando se interpreta o direito ordinário, com o que dela consta quando se analisa a questão do ponto de vista da constitucionalidade, parece-nos que a decisão “não é uma recusa de aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade” mas “antes uma decisão de aplicação da norma em sentido conforme com a Constituição” (Acórdão n.º 42/2013).
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. A Lei n.º 16/2012, de 20 de abril aditou ao Título I do CIRE um capítulo II designado “Processo especial de revitalização”.
Segundo o artigo 17.º-A, n.º1, este processo destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
O processo pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne condições necessárias para a sua recuperação (n.º 2).
No artigo 17.º-B, encontramos a “noção de situação económica difícil” e que é a seguinte:
“Para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir crédito”.
Nos artigos seguintes, especificando-se as formalidades exigidas, a tramitação subsequente, os efeitos da apresentação da declaração que em que se manifesta a vontade do devedor - a que se refere o artigo 17.º-C -, regulando-se no artigo 17.º-F a situação em que o plano de recuperação é aprovado, distinguindo-se diversas situações.
O artigo 17.º-G trata da “conclusão do processo negocial sem a aprovação do plano de recuperação”.
O preceito tem a seguinte redação:
“1 - Caso o devedor ou a maioria dos credores prevista no n.º 3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 17.º-D, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível, por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius.
2 - Nos casos em que o devedor ainda não se encontre em situação de insolvência, o encerramento do processo especial de revitalização acarreta a extinção de todos os seus efeitos.
3 - Estando, porém, o devedor já em situação de insolvência, o encerramento do processo regulado no presente capítulo acarreta a insolvência do devedor, devendo a mesma ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, contados a partir da receção pelo tribunal da comunicação mencionada no n.º 1.
4 - Compete ao administrador judicial provisório na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a informação de que disponha, após ouvir o devedor e os credores, emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial de revitalização apenso ao processo de insolvência.
(…)”
2.2. Feita esta breve incursão pelo regime legal, vejamos agora mais concretamente a questão que vem colocada.
A não aprovação do plano leva a que o AJP requeira a insolvência do devedor, se entender que aquele se encontra numa situação de insolvência.
Equiparar o pedido de insolvência do administrador, àquele que parte da iniciativa do devedor, poderá trazer consequências processuais de alguma forma anómalas.
Desde logo porque a “situação de insolvência” (artigo 3.º do CIRE) e a situação económica difícil ou de insolvência iminente (artigo 17.º-A e 17.º-B) não são realidade coincidentes.
O devedor que, por sua vontade inicia o processo de revitalização acaba por ser declarado insolvente se o plano de recuperação não for aprovado.
O artigo 28.º estabelece que a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial.
Ora, se o devedor inicia um processo especial de revitalização e não apresenta um pedido de insolvência, não poderá um pedido de insolvência que parta do AJP significar que o devedor reconhece a sua situação de insolvência, poderá mesmo, ser contraditório.
2.3. É certo que antes de emitir o seu parecer, o administrador ouve o devedor. Se este se pronunciar favoravelmente à declaração de insolvência, já temos uma manifestação de vontade do devedor. Nestes casos, na aplicação do disposto no artigo 28.º do CIRE, poderá ver-se alguma coerência.
A situação, porém, altera-se radicalmente se o devedor entender, quando ouvido, que não está em situação de insolvência.
Aplicar o regime que está previsto para “a presentação à insolvência por parte do devedor” aos casos em que o devedor não se apresenta a esta, opondo-se até, eventualmente, à declaração de insolvência, não nos parece razoável e levará a situações anómalas das quais, a douta decisão recorrida, nos dá alguns exemplos.
É certo que o processo especial de revitalização é apenso ao processo de insolvência, podendo o juiz analisá-lo.
Mas poderá utilizar o afirmado pelo devedor que serviu para habilitar o AJP a emitir o parecer?
Mas, mesmo que possa, na segunda situação atrás referida, poderá o Juiz deixar de declarar a insolvência tal como exige o artigo 28.º do CIRE?
Ou antes, não sendo clara a vontade do devedor quanto a ser declarada a sua insolvência, deverá citá-lo, para o contraditório poder ser exercido antes de ser proferida a sentença?
2.4. Ainda quanto à audição do devedor prévia à emissão de parecer pelo administrador, o Senhor Juiz levanta outra questão que nos parece pertinente.
Efetivamente, o artigo 24.º do CIRE diz-nos quais os documentos que o devedor deve juntar com a petição quando seja o requerente de insolvência.
Entre eles está o documento comprovativo dos poderes dos administradores que o representem e cópia da acta que documente a deliberação da iniciativa do pedido por parte do respetivo órgão social de administração, se aplicável (n.º 2, alínea a)).
Ora, segundo o artigo 17.º-C do CIRE, o devedor munido de declaração a que se referem os n.ºs 1 e 2, deve “remeter ao tribunal cópia dos documentos elencados no n.º 1 do artigo 24.º”.
Ou seja, não é exigível aquele documento a que se refere o n.º 2, alínea a).
Desta forma, poderia vir a ser declarada a insolvência de um devedor, como se a iniciativa do pedido lhe pertencesse, mas sem deliberação nesse sentido do órgão social competente.
2.5. Tratar processualmente o pedido de insolvência formulado pelo AJP como se a iniciativa pertencesse ao devedor acarreta ainda outras consequências.
Embora o exemplo que vamos dar a seguir não se aplique à situação dos autos porque o devedor é uma pessoa coletiva, parece-nos ser relevante referi-lo.
Se o devedor for uma pessoa individual pode pedir a exoneração do passivo restante no requerimento de apresentação à insolvência.
Se a iniciativa não partir do devedor, este tem 10 dias para o fazer, posteriores à citação. Neste caso, deve contar do ato da citação a indicação da possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante (artigo 236.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE).
Parecendo-nos que a introdução do processo especial de revitalização não afasta a possibilidade de o devedor pedir a exoneração do passivo restante, não partindo dele o pedido e não sendo citado, quando poderá fazê-lo?
Note-se, por outro lado, que nada no processo especial de revitalização aponta no sentido de que, mesmo quando é previamente ouvido, nos termos do n.º 4, do artigo 17.º-G, o devedor seja alertado para a possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante, tal como é exigido para a citação.
2.6. Pelo exposto, parece-nos de se concluir que aplicar, ainda que com as devidas adaptações o regime previsto para “ a apresentação à insolvência por parte do devedor” (artigo 28.º do CIRE), às situações em que quem requer a insolvência do devedor é o AJP, nos termos do n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE, gera disfunções processuais que alteram o equilíbrio razoável que deve existir entre meios processuais ao dispor das partes, dessa forma saindo violado o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição).
É certo que quando o devedor recorre ao processo especial de revitalização sabe que ele pode terminar com o administrador a requerer a sua insolvência. No entanto, as consequências anómalas que advêm da circunstância de ser aplicado o mesmo regime a situações diferentes mantêm-se, sendo que elas são particularmente evidentes nos casos em que o devedor, quando ouvido nos termos do n.º 4, do artigo 17.º-G do CIRE, não se pronuncia favoravelmente em relação à declaração de insolvência.
Note-se que se o devedor for citado e deduzir oposição, não tem que apresentar todos os elementos exigidos pelo artigo 30º do CIRE, pois alguns deles já constam do PER. Estar-se-ia, no fundo, a aplicar o artigo 29º com as necessárias adaptações.
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1. Não tendo ocorrido uma efetiva desaplicação, por inconstitucionalidade, da norma do n.º 4, do artigo 17.º-G do CIRE, falta um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea a), do nº 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), pelo que não deverá dele conhecer-se.
2. Aplicar, ainda que com as necessárias adaptações, o regime previsto no artigo 28.º do CIRE às situações em que a insolvência é requerida pelo administrador judicial provisório, nos termos do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE, gera disfunções processuais que alteram o equilíbrio razoável que deve existir entre os meios processuais ao dispor das partes.
3. Assim – de uma forma mais evidente nos casos em que o devedor, quando foi ouvido nos termos do n.º 4, do artigo 17.º-G do CIRE, não se pronunciou favoravelmente quanto a ser declarado insolvente – a norma extraída da conjugação do artigo 17.º-G, nºs 3 e 4 do CIRE, segundo a qual o devedor nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do administrador judicial provisório nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º-G, nº 4, do CIRE não é citado para, querendo, deduzir oposição, é inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º, nº 4, da Constituição.
4. A conhecer-se do mérito, deve, pois, ser negado provimento ao recurso.» (fls. 24 a 33)
3. Devidamente notificados para o efeito, os recorridos deixaram expirar o prazo sem que viesse aos autos contra-alegar.
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Verifica-se que a decisão recorrida não constitui uma verdadeira desaplicação, pois apenas equaciona essa desaplicação a título meramente subsidiário. Com efeito, a primeira solução interpretativa acolhida pela decisão recorrida passou por aquilo que qualificou como uma “interpretação abrogante” :
«Ante aquilo que vem de dizer-se, dever-se-á fazer uma interpretação abrogante da referência ao artigo. 28.º CIRE no artigo 17-G, nº 4, do mesmo diploma legal.
Ainda que assim se não entenda, a interpretação da norma extraída da conjugação do art.. 17.º-G/3 e 4 CIRE, segundo a qual o devedor nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do Exmo. Sr. AJP nos termos e para os efeitos do disposto no art. 17.º-G/4 CIRE não é citado para, querendo, deduzir oposição talqualmente prevê o art. 29.º CIRE, é inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicionai efetiva previstos no art. 20.º/1 e 5 CRP.» (fls. 8)
Não cabe a este Tribunal avaliar se o que a decisão recorrida apelida de “interpretação abrogante” não corresponderá, antes, a uma interpretação conforme do referido preceito legal, com vista à sua adequação às vinculações jurídico-constitucionais que sobre si recaem, designadamente, em matéria de garantia do direito à tutela jurisdicional efetiva. Certo é, porém, que nem sequer pode afirmar-se que a decisão de desaplicação da norma, com fundamento em inconstitucionalidade, tenha constituído a “ratio decidendi” primacial do juízo proferido pelo tribunal recorrido. Pelo contrário, a decisão recorrida opta por aquilo que designou por “interpretação abrogante” – mas que eventualmente poderia antes ser qualificada como verdadeira “interpretação conforme” à Constituição –, precisamente com o intuito de evitar a alternativa de desaplicação da norma.
Na medida em que a ponderação da eventual desaplicação da norma só surge como fundamento subsidiário, entende-se não estar em causa uma efetiva decisão de desaplicação, tal como definida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pelo que se decide pelo não conhecimento do objeto do recurso.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se não conhecer do objeto do recurso
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 6 de Março de 2014.- Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.