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Procº nº 179/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia recorreu contenciosamente para o Supremo Tribunal Administrativo do despacho proferido pelo Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território em
31 de Julho de 89 e pelo qual foi determinado que, ao abrigo do disposto no artº
4º do Decreto- -Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, para amortização da dívida que aquela tinha para com a Electricidade de Portugal, E.P., fosse retido, de entre o mais, da verba do Fundo de Equilíbrio Financeiro a transferir para aquela Câmara e referente ao duodécimo do mês de Agosto do citado ano, o montante de Esc. 9.973.000$00.
2. Após ter sido provocada a intervenção principal da Electricidade de Portugal. E.P., seguiram os autos seus regulares termos, vindo em 5 de Fevereiro de 1992 a ser proferido, pelo Supremo Tribunal Administrativo, acórdão por intermédio do qual foi concedido provimento ao recurso, pois que se declarou nulo o despacho impugnado.
Para alcançar uma tal decisão, aquele Alto Tribunal recusou-se a aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 205º e 206º da Constituição, as normas dos números 1 e 3 do artº 4º do D.L. nº 103-B/89 - normas essas ao abrigo das quais foi, pelo despacho em crise, ordenada a retenção de determinado montante da verba correspondente ao duodécimo de Agosto a transferir a título de Fundo de Equilíbrio Financeiro para a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia -, e isso porque, no entendimento do aresto, por elas era permitido ao Governo reconhecer
à EDP 'o poder de autoritária e unilateralmente fixar o montante do seu crédito sobre os municípios pelo fornecimento de energia eléctrica, conferindo a tal decisão a força de título executivo ... sem que a dívida' estivesse 'reconhecida por sentença transitada em julgado', assim fazendo com que aquele órgão de soberania, ao dar 'a sua concordância ao cálculo efectuado' pela dita empresa pública, 'ignorando as objecções que as Câmaras' tivessem 'a fazer ao modo como a dívida foi fixada', surgisse, não como parte, mas sim como uma entidade que vai 'resolver conflitos de interesses', motivo pelo qual, no caso, 'o acto impugnado não visou assegurar o funcionamento do serviço público essencial que é o da distribuição da energia eléctrica', mas sim 'teve em vista que o Governo, agindo como órgão imparcial, definisse o direito do caso concreto', o que levava a considerar que ele, ao actuar com base em tais normas, não prosseguia 'a função administrativa', mas antes realizava 'função que é própria dos tribunais', o que tudo conduzia a que tal acto estivesse inquinado do vício de ursupação de poder.
3. Deste aresto recorreu para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, tendo o seu Ex.mo Representante junto deste órgão de administração de justiça apresentado alegação na qual concluiu por se dever conceder provimento ao recurso, e isso porque, por um lado, o Decreto-Lei nº
103-B/89, de 4 de Abril, não era organicamente inconstitucional e, por outro, as normas constantes dos números 1 e 3 do seu artº 4º, 'na parte em que permitem que o Ministro do Planeamento e da Administração do Território, com base em comunicação prévia da EDP sobre o quantitativo em dívida pelos municípios em 31 de Dezembro de 1988, proceda à retenção de 10% do duodécimo da participação no Fundo de Equilíbrio Financeiro dos municípios devedores não' violavam 'a reserva do poder judicial consagrada [nos] artigos 205º e 206º da Constituição, na versão anterior à 2ª revisão constitucional, correspondentes, na versão actual, aos nºs 1 e 2 do artigo 205º'.
Por seu turno, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, na alegação que produziu e na qual, a final, propugnou pela manutenção do decidido no aresto impugnado, apresentou as seguintes conclusões, que se transcrevem:-
'1. É matéria da competência da Assembleia da República a definição do 'estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais', matéria sobre a qual o Governo só pode legislar ao abrigo de autorização legislativa. (artº 168 nº.1 alínea R) da CRP).
2. As autorizações legislativas devem ser exercidas pelo Governo nos prazos assinalados pela lei de autorização sob pena de caducidade, devendo tais prazos contar-se desde a promulgação desta lei até à data de promulgação pelo Presidente da República do diploma versando as matérias autorizadas.
3. O D.L. 103-B/89, através do qual o Governo exerceu o direito de retenção autorizado pela Lei 114/88, aprovada em 15.12.8 e promulgada em 30.12.88, só foi promulgado em 4.4.89, ou seja, depois dos três meses previstos naquela Lei, pelo que caducou a autorização legislativa estando, em consequência, ferido de inconstitucionalidade orgânica, por invadir a esfera de competência da Assembleia da República.
Por outro lado, e caso assim se não entenda,
4. Tendo a Administração, ao abrigo dos nºs. 1 e 3 do artº 4º do D.L. 103-B/89, sido colocada na posição de definir o conflito de interesses concreto que opunha a Câmara Recorrida à EDP, decididindo qual a dívida daquela a esta empresa pública e determinando a sua execução coerciva, através da retenção das verbas do fundo de equilíbrio financeiro a transferir para o município, agiu no âmbito da função jurisdicional, violando as referidas normas o princípio constitucional da reserva dos Tribunais, consignado nos arts.
205º e 206º da C.R.P. estando, por essa via, ferido de inconstitucionalidade material.
5. Na verdade, corresponde à função jurisdicional a resolução de questões de direito ou conflitos de interesses entre pessoas bem como controvérsias sobre a verificação ou não, em concreto, de uma ofensa ou violação da ordem jurídica, tendo em atenção uma situação jurídica definida anteriormente, tal como é jurisdicional o conjunto dos actos tendentes à execução forçada e coerciva da prestação de um facto ou de uma coisa.
6. Ademais, se assim não fosse entendido, aquele previsão normativa do D.L. 103-B/89 violava o princípio da garantia de recurso aos Tribunais, insito do artº 268º nº. 4 da C.R.P. porquanto admitindo o recurso sobre a legalidade do acto ou despacho de retenção de verbas, impediria a reapreciação por um órgão jurisdicional dos critérios e soluções juridicas que estiveram na base do mesmo despacho, critérios esses que contendem com a fixação da dívida e respectiva apreciação das questões de facto e de direito que lhe estão subjacentes, traduzindo, por isso, uma limitação intolerável daquele princípio constitucional.'
II
1. Como se viu, o acórdão impugnado recusou a aplicação, por considerar feridas de inconstitucionalidade material, as normas constantes dos números 1 e 3 do artº 4º do D.L. nº 103-B/ /89.
Acontece que este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 260/98, publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 31 de Março de de 1998 (com a declaração de rectificação nº 9/ /98, publicada nos mesmos jornal oficial e Série de 13 de Abril de 1998 e ainda rectificado pelo Acórdão nº 335/98, nos ditos jornal oficial e série, de 29 de Maio do aludido ano), declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das aludidas normas.
Assim sendo, nada mais resta do que aplicar ao presente caso a declaração operada por meio do mencionado Acórdão.
III
Em face do exposto, em aplicação da declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão nº 260/98, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 24 de Junho de 1998 Bravo Serra Luis Nunes de Almeida Messias Bento Artur Mauricio Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Gilherme da Fonseca