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Processo nº 715/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. E..., Lªa, com sede em Lamego, veio apresentar reclamação, 'nos termos do nº 4 do artº 76º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro', do 'despacho de indeferimento que incidiu sobre o seu requerimento de interposição de recurso para esse Tribunal' (o Tribunal Constitucional), fundando o pedido de 'ser admitido o recurso' apenas nas seguintes razões:
- 'O recurso não foi admitido não pelo facto da reclamante só ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma aquando do requerimento de aclaração do acórdão, mas sim pelo facto de o Sr. Juiz Relator entender que a norma posta em crise não ser inconstitucional. Ora,
- 'No caso em apreço a figura da colisão de direitos, na forma em que é interpretada e aplicada a norma que a prevê no Código Civil (artº 335º) é inconstitucional, por injusta e desproporcional, ao anular o direito ao trabalho e a liberdade industrial.
- 'E é precisamente, a inconstitucionalidade da norma do artº 335º do C.C., com a interpretação que foi aplicada na decisão recorrida, que se pretende ver apreciada porquanto é violadora dos princípios constitucionais consagrados nos artºs 58º, 61º e 62º da C.R.P.'
2. O Ministério Público, no seu visto, entende que: 'A presente reclamação é, na nossa óptica, claramente improcedente já que, por um lado, entendemos que o douto acórdão proferido pelo STJ não pode, de nenhum modo, configurar como 'decisão surpresa', já que era claramente perceptível, ao longo do processo, que a dirimição do litígio teria provavelmente de passar pela invocação e aplicação das normas que regem acerca dos conflitos de direitos - cumprindo obviamente ao ora reclamante ter antecipado tal decisão e questionado, em termos jurídico-constitucionais, a provável solução que passasse pela prevalência dos direitos de personalidade lesados com a conduta da ora reclamente.
Acresce, por outro lado, que - como se refere no despacho que rejeitou o recurso de constitucionalidade interposto - este se configura como 'manifestamente infundado', nos termos e para os efeitos estabelecidos no artº 76º, nº 2, 'in fine' da Lei nº 28/82: não pode, na realidade, sustentar-se seriamente, dada a relevância que a Lei Fundamental outorga aos direitos de personalidade, à tutela do domicílio e habitação, à saúde e ao ambiente e qualidade de vida, que viole qualquer preceito ou princípio constitucional a decisão que, num caso com a configuração do dos autos, atribua prevalência a tais direitos e interesses, relativamente a um pretenso direito à 'liberdade industerial' realizado em termos de afrontar ilegitimamente os referidos interesses e bens jurídicos'.
Daí que 'deverá confirmar-se inteiramente a douta decisão que rejeitou, por inadmissível o recurso de fiscalização concreta interposto'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir.
Contra a reclamante foi intentada uma acção declarativa com processo ordinário na qual os Autores pediram que ela seja condenada:
'a) a suspender durante a noite e a partir das 23 horas toda a actividade da sua discoteca que seja causadora de ruídos e factor de perturbação do silêncio e sossego dos Autores e seus familiares; b) a indemnizar os Autores pelos prejuízos que lhe tem causado e dos que venha a causar durante a pendência do processo, os quais se liquidarão em execução de sentença'.
Essa acção declarativa terminou o seu curso no Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 5 de Junho de 1997, extraiu as seguintes conclusões:
'1) O Dec-Lei nº 251/87, de 2 de Junho (Regulamento Geral sobre o Ruído) não se destinou, nem se destina, a resolver conflitos que possam surgir entre o direito de propriedade do prédio (estabelecimento) onde se desenvolva actividade que produza ruído e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde, ao ambiente e à qualidade de vida.
2) Em caso de conflito entre os 'direitos, liberdades e garantias' não sujeitos a reserva da lei restritiva com outros direitos fundamentais (ex. direitos económicos, sociais e culturais), devem prevalecer aqueles.
3) No campo da lei ordinária, há um texto atinente a colisão de direitos - o art. 335º do Código Civil que, apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantem em vigor, tendo em conta o disposto no art. 293º, desta Constituição.
4) Na interpretação do art. 335º, a propósito da colisão ocorrer entre um direito de personalidade, e um outro direito que não de personalidade, deve prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais.
5) Para que haja responsabilidade civil por acto ilícito - art. 483º do Código Civil - necessário é que se verifiquem, além do mais, os pressupostos ilicitude e culpa'.
E, face a tais conclusões, entendeu aquele Supremo Tribunal de Justiça que 'terá de precisar-se que':
'1) na colisão entre os direitos de personalidade dos Autores (direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono) e o direito da Ré ao exercício de actividade que produza ruído, prevalece o dos Autores.
2) a prevalência dos direitos dos Autores determina que estes têm direito a que o Tribunal conceda, como concedeu, a pretensão de a Ré suspender a sua actividade de funcionamento da discoteca, durante a noite, a partir das 24 horas.
3) a Ré tem obrigação de indemnizar os Autores'.
Desse acórdão veio a reclamante pedir esclarecimento, invocando que
'a figura da colisão de direitos, na forma em que é interpretada e aplicada a norma que a prevê no Código Civil (artº 335º) é inconstitucional, por injusta e desproporcional ao anular o direito ao trabalho e à liberdade industrial, sendo certo que tal interpretação e aplicação é de todo imprevista e inesperada' (o pedido foi indeferido por acórdão de 5 de Junho de 1997).
Veio então a reclamante interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei 28/82 de
15/11 na redacção dada pelo Lei nº 85//89 de 7/9', com a alegação de que se trata de 'situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e inesperada feita pela decisão', e aduzindo as razões atrás transcritas no ponto
1. ('No caso em apreço (...); 'E é precisamente, a inconstitucionalidade
(...)').
Tal recurso não foi admitido por despacho do Relator, de 26 de Junho de 1997, confirmado por acórdão de 14 de Outubro de 1997, com o seguinte fundamento:
'E decidindo, dir-se-á que a recorrente só le
vantou a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 334º do Código Civil no requerimento de aclaração do acórdão de 13 de Março de 1997, sendo certo que não será por este motivo que não se admite o recurso, mas sim por a norma posta em causa não ser inconstitucional, ou seja, não violar quaisquer dos direitos fundamentais consagrados na mesma Constituição, nomeadamente os indicados pela recorrente'.
4. Antes de mais, tem de registar-se que a norma em causa do Código Civil só pode ser, no contexto argumentativo da reclamante, a do artigo 335º, que se reporta à colisão de direitos, sejam 'iguais ou da mesma espécie', sejam
'desiguais ou de espécie diferente', e que foi utilizada no acórdão recorrido, e nunca a norma do artigo 334º, prevenindo a figura do abuso do direito, que por lapso de escrita é referenciada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e no despacho reclamado (lapso a que alude a reclamante no requerimento da reclamação e que ela diz que 'agora se colmata').
Prosseguindo, há que ver se se verificam in casu os pressupostos processuais do recurso que se pretende fazer chegar a este Tribunal, pois só assim a reclamação poderá ser deferida. Caso contrário, deve ser indeferida.
Lê-se no recente acórdão do Tribunal Constitucio
nal nº 162/98:
'O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
- para além de pressupor que o recorrente tenha legitimidade - tem, entre outros, os seguintes pressupostos:
(a) ter o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que o Tribunal aprecie, sub specie constitutionis;
(b) ter a decisão recorrida aplicado essa norma. A inconstitucionalidade de uma norma legal suscita-se, durante o processo, quando tal se faz em termos e em tempo de a decisão recorrida a poder decidir - o que, em regra, exige que essa suscitação de faça de forma clara e perceptível, e antes de proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de inconstitucionalidade. Tal só assim não será, nalgum caso anómalo e de todo excepcional, em que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade, antes de proferida a decisão de que recorre. Nessa hipótese, não podendo a suscitação da inconstitucionalidade ter sido feita em momento processualmente adequado, é inexigível o cumprimento do respectivo
ónus por parte da recorrente - e, então, justamente com fundamento nessa situação de inexigibilidade, deve ele ser dispensado de o cumprir'.
Ora, verifica-se desde logo que a reclamante não suscitou de forma adequada perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade relativa à norma do artigo 335º, do Código Civil, quanto a saber, pelos menos, com que sentido interpretativo ela deveria ser aplicada de modo a estar conforme à Constituição (uma interpretação que, no entendimento da reclamante, expressa no pedido de aclaração, a contrário, seria
'inconstitucional por injusta e desproporcional ao anular o direito ao trabalho e à liberdade industrial').
Na verdade, posicionando-se a reclamante, como decorre da leitura do acórdão recorrido, perante o Supremo Tribunal de Justiça, em termos de questionar a prevalência de 'quaisquer disposições sobre a matéria contidas no Código Civil' e de discutir se 'até ao limite imposto por lei', se impõe 'um certo sacrifício dos direitos de personalidade', nenhuma referência se detecta a tal propósito acerca da (in)constitucionalidade do citado artigo 335º.
Nem era caso de dispensar tal ónus de suscitação, na linha de entendimento do Ministério Público, no seu Parecer,
uma vez que a interpretação e a aplicação da norma em causa feita no acórdão recorrido são a interpretação e a aplicação correntes no Supremo Tribunal de Justiça. Por isso, não pode dizer-se que o reclamante tenha sido surpreendido com a posição assumida no acórdão recorrido.
Dito isto, não interessa ponderar se o presente recurso de constitucionalidade seria ou não de qualificar como 'manifestamente infundado', talqualmente se entendeu no despacho reclamado e é assumido também no Parecer do Ministério Público, nos termos e para os efeitos previstos na parte final do nº
2 do artigo 76º da citada Lei nº 28/82.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a reclamante em custas, com a taxa de justiça fixada em oito unidades de conta.
Lx.5.5.98 Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa