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Processo n.º 530/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. No Tribunal de Círculo e de Comarca de Santa Maria da Feira, o Ministério Público acusou V. T., J. T. e F. G. pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos artigos 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, alínea c), do Código Penal. No decorrer da audiência de julgamento, o mandatário dos arguidos declarou não prescindir da documentação da audiência, conforme o exarado na contestação de fls. 147 a 150 dos autos, na qual requerera 'nos termos do artigo 512º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil, a gravação da audiência final de julgamento ou, caso isso não seja possível, a documentação das declarações orais nos termos do artigo 363º e 364º do Código de Processo Penal'. Seguidamente foi proferido o seguinte despacho:
'As declarações prestadas oralmente nesta audiência de julgamento serão documentadas através de gravação áudio uma vez que o tribunal dispõe de meios para tanto. Desde já fica decidido que essas declarações fixadas em fita magnética não serão transcritas para a acta desta audiência de julgamento. Salvo o devido respeito por diferentes perspectivas da questão, tal transcrição não é imposta por qualquer norma do Código de Processo Penal (diploma ao qual pertencem os artigos sem indicação de origem). Impõe-se tomar posição pois é sabido que existe outro ponto de vista sustentando que o art° 101º daquele código impõe essa transcrição.
* Na verdade, o acórdão da Relação do Porto de 11.01.1998 considera que apesar de os depoimentos e declarações prestadas em audiência se encontrarem exarados na acta em súmula, impõe-se a transcrição da gravação da audiência se esta tiver ocorrido porquanto não há fundamento para que a documentação da prova não corresponda à transcrição certificada do que ficou gravado se tal não acontecer será violado o preceituado pelo art° 101º, n° 2 do Código de Processo Penal (CJ,
1998, 1°-232). No mesmo tomo da CJ a Relação de Coimbra no acórdão de 14.01.1998 também se manifesta no sentido do entendimento de que o artº 101º impõe a transcrição da gravação magnetofónica. Todavia, no caso aí em recurso, admite que a transcrição por súmula é suficiente, apesar de ter sido cometida irregularidade, visto que foi decidido por despacho que ‘a documentação far-se-á por gravação audio, acompanhada por transcrição em súmula, nos termos do disposto no artº 100°, n° 2 do citado diploma (CPP), inscrito na acta’ e tal decisão foi acatada ficando sanada a irregularidade. Parece ser unânime a aceitação de que a gravação magnetofónica ou audiovisual das declarações e depoimentos produzidos em audiência não dispensa a sua transcrição em escrita comum para o processo, no mais curto prazo que for possível e com as formalidades prescritas no n° 2 do artº 101°, do CPP (acs. RP, de 14.04.93., 21.04.93, citado por S. Santos, L. Henriques e B. Pinho em ‘Código de Processo Penal Anotado’, 1° Vol., 1996, pag.436, 2° Vol.2- pág. 361). Na doutrina, igualmente o Sr. Dr. Maia Gonçalves sustenta que ‘quando se utilizam meios diferentes da escrita comum para redigir o auto, ou se faz uso de gravação magnetofónica ou audio-visual, terá que ser feita a respectiva transcrição, em escrita comum, para o processo, no mais curto prazo que for possível, e com as formalidades prescritas no n° 2’ (‘Código de Processo Penal Anotado’, 7ª ed. 1996, pág. 218). O Tribunal da Relação de Lisboa adopta semelhante entendimento citando o referido acórdão de 21.04.93 da Relação do Porto e o Sr. Dr. Maia Gonçalves, acrescentando que ‘para além de se acautelar por essa via (a da transcrição), as hipóteses de alteração viciação ou desaparecimento desses meios, não seria viável ao tribunal de recurso, até por impossibilidade física, proceder sistematicamente à audição das gravações. Só haverá que lançar mão dessa audição quando se tornar necessário para dissipação de dúvidas, confrontar o relato transcrito com o registado na fita magnética’ (CJ, 1996,5°-157). Outro acórdão da Relação do Porto aborda a questão salientando que ‘não será de esperar, até por razões claras de operacionalidade, que o tribunal de recurso seja forçado à audição indiscriminada de tudo o que aconteceu no julgamento da primeira instância’. No entanto, esta decisão, apercebendo-se da falta de suporte na letra do n° 2 quanto aos ‘meios de gravação magnetofónica ou audio-visual’ admite a ‘extensão’ da transcrição mesmo nesses casos (ac. de 27.03.96: CJ, 1996, 2º-238).
* Aquele acórdão da Relação do Porto de 27.03.96 refere ainda a possibilidade de
‘recurso supletivo ao diploma adjectivo civil --- o Código de Processo --- aos recorrentes fosse imposto o ónus de fazerem chegar ao tribunal superior, devidamente transcritos, os pontos concretos da produção de prova que alicerçam a sua discordância com o decidido’ citando o artº 690º-A do CPC (Dec. Lei n°
329-A/95, de 12.12). Esta perspectiva não parece ter suficiente suporte, pois, como sustenta o acórdão STJ de 06.03.96, a propósito da ‘documentação’, deve ser afastada qualquer analogia com as correspectivas normas do CPC porquanto não existe qualquer lacuna no Código de Processo Penal que prevê expressamente a reprodução das declarações por meios técnicos bem como a transcrição do que delas resultar
(CJacSTJ, 1996, 2°-165). Na verdade, como se sumaria em recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04.11.98, (pº n° 787/98 da 13 secção criminal) na lei penal adjectiva sobreleva a regra da suficiência, no sentido de que o respectivo código procurou resolver todos os casos, ainda que de modo diverso das soluções encontradas para situações idênticas pelo processo civil (acórdão 193 em http://www.come.to/trp.pt). Ora, no caso em apreço, não parece que se verifique qualquer lacuna mas diversa opção legislativa atendendo às especificidades e princípios do processo penal e do processo civil. Impõe-se, por isso, procurar a solução da questão nos moldes previstos no âmbito do Código de Processo Penal.
* Salvo o devido respeito, por diferente leitura, parece que os referidos entendimentos do artº 101°, n° 2 se fundam apenas no elemento literal da norma e em razões de ‘operacionalidade’.
* Como escrevem os Sr.s Dr.s Simas Santos e Leal-Henriques e Borges de Pinho comentando o art° 101º ‘parece dever entender-se que no caso de gravações magnetofónicas ou audiovisuais não há que fazer, como é óbvio, transcrição alguma. De resto, o referido n° 2, não se refere a elas’ (‘Código de Processo Penal’, 1º vol., 1996).
* A resposta ao problema suscitado será procurada no apuramento do sentido a extrair da norma contida no art° 101º, n° 2 não apenas face ao elemento literal mas conjugada com os outros elementos da interpretação face aos demais artigos, atinentes à questão, existentes no Código de Processo Penal.
(...) Finalmente, é necessário ter presente o critério de interpretação em
‘conformidade à Constituição’. Por imposição deste postulado de hermenêutica, de entre as várias interpretações possíveis segundo os demais critérios sempre obtém preferência aquela que melhor concorde com os princípios da Constituição. Com efeito, a unidade do ordenamento impõe que cada preceito legal seja considerado não só no contexto do respectivo diploma, como sob o influxo dos princípios e preceitos constitucionais (por ex.: Vieira de Andrade, ‘Os Direitos Fundamentais...’, 1998, pág. 255, Karl Larenz, ‘Metodologia da Ciência do Direito’, Lisboa, 1989, p. 410 e ss; ac. Trib. Constitucional n° 254/92, de
02.07.92: DR-I, de 31.07.92; Jorge Miranda/Pedrosa Machado apresentam uma síntese com larga indicação de doutrina e jurisprudência em ‘Constitucionalidade da protecção penal do direitos de autor’: RPCC, ano 4°, t. 4° a págs. 492 e ss.).
(...) No que respeita aos princípios fundamentais da fase de julgamento devem salientar-se os princípios da imediação, da oralidade e da celeridade e economia processual. O princípio da imediação traduz-se essencialmente no contacto pessoal entre o julgador e os diversos meios de prova. Recorde-se a formulação do princípio da imediação de Figueiredo Dias: ‘a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão’. A prova válida para formar a convicção do juiz há-de ser produzida ou examinada em audiência (art° 355°). A oralidade permite a instrução, discussão e julgamento se façam seguidamente, com o menor intervalo possível (princípio da concentração), realizando-se assim o maior contacto entre o julgador e as provas (G. Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, 1994, p. 232). Como ensina o Sr. Prof. Domingues de Andrade, as provas serão apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas
(‘Noções Elementares de Processo Civil’, I, 1956, pág. 264). O Sr. Dr. José António Barreiros salienta, para além dos princípios da verdade material e da oralidade, ‘outro princípio que tem particularmente a ver com o desenrolar da audiência e com o modo de formação da convicção do julgador: o da imediação também conhecida como da prova imediata’. (‘O julgamento do novo Código de Processo Penal’, Jornadas de Direito Processual Penal - O novo CPP, CEJ, 1991, pág. 277).
(...) Por outro lado, a ponderação das consequências da interpretação através das regras da ‘interpretação sinépica’ (...) conduziria à não aceitação do invocado sentido para a norma em causa. Na verdade, o legislador que instituiu como princípio geral a documentação da audiência (art°s 363° e 364°, n° 1) e ao mesmo tempo tem anunciado um esforço de modernização dos tribunais certamente não pretendia que daí resultasse a perda de mais tempo na transcrição da gravação pelos funcionários e posterior certificação pelo juiz desprezando por completo os princípios da celeridade
(artºs 20º , n° 5 e 32°, n° 2, parte final da Constituição da República Portuguesa) e do máximo aproveitamento dos meios disponíveis. Como refere o ac. do STJ de 06.03.1996 (CJacSTJ, 1996,2°-165) ‘a redução a escrito das declarações ao ritmo do ditado do juiz e do bater das teclas do dactilógrafo se traduz na preterição do princípio da oralidade e envolvendo os prolongamentos processuais que o actual CPP imbuído do espirito de celeridade processual, quis afastar’. Todavia, naquela decisão não é equacionada a questão da transcrição nos casos de
‘gravação magnetofónica ou audiovisual de modo a substituir as formas escritas de reprodução’.
* Além disso, se o que está em causa é a reapreciação da prova produzida na audiência de julgamento, a transcrição para a acta da documentação magnetofónica empobrece, despreza e desvaloriza elementos probatórios não verbais essenciais para a formação da convicção e, desse modo, posterga os princípios básicos da imediação e da oralidade (cuja subsistência ainda é parcialmente possível perante o tribunal superior no caso de documentação magnetofónica ou audio-visual). Por outro lado, a formação da livre convicção do tribunal superior (art° 127°) será tanto mais conseguida quanto mais elementos probatórios recolhidos na audiência de julgamento lhe forem presentes na altura da reapreciação da prova. Assim se evitando, tanto quanto possível, os inconvenientes de um ‘juízo posterior, baseado numa análise parcelar e documental ou mediata de prova produzida noutro local’ (Damião da Cunha, ‘a estrutura dos recursos na proposta de revisão do CPP’, RPCC, ano 8 (1998), Fasc. 2°, pág. 264). Aliás, em termos práticos, tal corresponderia a negar a qualquer dos interessados na decisão uma tutela jurisdicional efectiva (artº 20º da Constituição) porquanto equivaleria a uma recusa de apreciação, neste caso pelo tribunal de recurso, de elementos probatórios não verbais produzidos na audiência de julgamento, existentes e disponíveis. A invocada interpretação conduziria ao afastar da ‘transparência’ do processo e da decisão de que fala Michele Tarufo (citado no acórdão do TC de 02.12.98: DR, II, de 05.03.99) e dessa forma sonegar ao tribunal superior elementos importantes do processo de formação da convicção do tribunal recorrido e dificultando ainda mais a concretização do direito ao recurso e a garantia de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto consagrados no n° 1 do art° 32° da Constituição ainda que se conceba esta garantia e aquele direito como tendo um
âmbito e uma dimensão reduzidos por comparação com a matéria de direito. Neste ponto de vista, segundo o princípio da interpretação conforme à Constituição também não pode ser considerado o sentido da norma que conduza à transcrição das declarações fixadas em fita magnética, sob pena de o mesmo ser contrario à Lei Fundamental por atacar as aludidas normas.
* Em resumo, a interpretação da norma contida no artº 101°, n.º 2, do Código de Processo Penal com o sentido de que a gravação magnetofónica ou audiovisual das declarações e depoimentos produzidos em audiência não dispensa a sua transcrição em escrita comum para o processo:
. não tem suporte no elemento literal;
. contraria a vontade histórica do legislador;
. é divergente do seu enquadramento sistemático;
. produz consequências inversas às pretendidas pelo legislador;
. vai ao arrepio dos princípios fundamentais de processo penal da imediação, da oralidade e da economia processual;
.viola os princípios constitucionais da celeridade, da tutela efectiva e do direito de recurso previstos nos art°s 20º, n° 5 e 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, nos termos dos artigos 18°, n° 1, 204°, 277º e n° 1 da Constituição da República Portuguesa, não aplico, por inconstitucional, a norma constante do n° 2 do art° 101° do Código de Processo Penal com o sentido de a mesma, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impor a transcrição da teor da respectiva gravação para a acta porquanto tal interpretação viola o disposto nos art°s 20°, n° 5 e
32°, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa o que, desde já, declaro.'
2. O Magistrado do Ministério Público em funções no tribunal a quo veio, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional:
'interpor o pertinente recurso do despacho proferido na audiência de julgamento que teve lugar no dia 2 de Junho de 1999, o qual, fundado na inconstitucionalidade material da norma constante do artº 101º n.º 2 do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a mesma, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impõe a transcrição do teor da respectiva gravação para a acta, determinou a não observância do disposto nesse preceito legal com tal interpretação.' Admitido o recurso, apresentou o Procurador-Geral Adjunto em exercício de funções neste Tribunal alegações, que concluiu do seguinte modo:
'1° – A interpretação normativa do n° 2 do artigo 101º do Código de Processo Penal, traduzida em considerar que – para permitir uma correcta e efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto tomada em 1ª instância – os depoimentos gravados no decurso da audiência devem ser oficiosamente transcritos, não viola o direito ao recurso (que visa, aliás, potenciar), nem afecta as garantias de defesa do arguido em processo penal.
2° – Os inconvenientes que, em termos de celeridade e eficácia, podem decorrer de tal transcrição oficiosa dos depoimentos gravados mediante sistema sonoro não radicam propriamente em tal regime jurídico, em si mesmo considerado, mas numa eventual e deficiente dotação, em meios humanos e materiais, dos tribunais para realizarem tal tarefa.
3° – Não podendo, deste modo, assacar-se a tal regime jurídico, emergente da interpretação normativa feita pela decisão recorrida, a violação de um preceito ou princípio constante da Lei Fundamental – e não se situando obviamente no
âmbito da fiscalização da constitucionalidade a apreciação da conveniência e da praticabilidade dos regimes instituídos pelo legislador infraconstitucional – deverá proceder o presente recurso.' Por parte dos recorridos, não foram apresentadas quaisquer alegações no prazo legal. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. Começa por salientar-se que não compete a este Tribunal sindicar o acerto e a correcção, em si mesmos, da interpretação do direito infra-constitucional realizada pelo tribunal a quo. Designadamente, não lhe compete apreciar se a interpretação reputada inconstitucional corresponde à melhor interpretação do artigo 101°, n° 2, do Código de Processo Penal, se 'contraria a vontade histórica do legislador' ou se é divergente do seu enquadramento sistemático – neste sentido, v., por exemplo, o Acórdão deste Tribunal n.º 381/99 (inédito), onde se lê:
'[...] no domínio da fiscalização concreta, o Tribunal não aprecia abstractamente a norma, pois cumpre-lhe descer ‘ao quadro da decisão recorrida’
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pág. 270), competindo-lhe surpreender a norma com ‘o sentido concreto que o tribunal recorrido lhe atribuiu’ (ibidem). A esta luz, adstrita à questão de constitucionalidade a que o Tribunal deverá ater-se (cfr. Mário de Brito, ‘Sobre as decisões interpretativas do Tribunal Constitucional’ in Revista do Ministério Público, nº 62, pág. 64), deve considerar-se a norma sindicanda no sentido em que foi interpretada'. De toda a forma, entende-se que, apesar de a decisão recorrida invocar em abono da solução a que chegou os diversos elementos de interpretação considerados pela tradicional hermenêutica da lei (literal, histórico, sistemático e teleológico), e, portanto, não se ficar pela consideração das razões de constitucionalidade, estas constituíram – pelo especial relevo e força que se lhes confere nessa decisão – ainda ratio decidendi para o tribunal a quo. Foi, justamente, por sustentar a violação do ' disposto nos art°s 20°, n° 5 e 32°, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa' que a decisão recorrida, invocando expressamente o artigo 204º da Lei Fundamental, recusou a aplicação 'do n° 2 do art° 101° do Código de Processo Penal com o sentido de a mesma, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impor a transcrição da teor da respectiva gravação para a acta.' Verificando-se, desta forma, os requisitos do recurso previsto na alínea a) do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, há que dele tomar conhecimento.
4. É a seguinte a redacção da norma cuja apreciação sub species constitutionis constitui objecto do presente recurso:
'Artigo 101.º
(Registo e transcrição)
2 – Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais curto possível. Antes da assinatura, a entidade que presidiu ao acto certifica-se da conformidade da transcrição.' Está em causa a interpretação desta norma no sentido de, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impor a transcrição da teor da respectiva gravação para a acta. Cumpre dizer, antes do mais, que não pode o Tribunal Constitucional decidir as questões de constitucionalidade que são trazidas à sua apreciação mediante uma avaliação dos custos e da correspondente maior ou menor praticabilidade da solução decorrente da interpretação normativa delineada na decisão recorrida. Por outras palavras: entende-se que a solução da questão de constitucionalidade posta agora perante este Tribunal não pode ser determinada directa e exclusivamente por considerações, mais ou menos apoiadas em elementos ou constatações de facto, sobre a eficácia prática da solução jurídica por que o legislador processual penal optou – segundo se entendeu decorrer da norma em questão –, ou sobre a existência ou não de meios técnicos e humanos para fazer face a situações ou 'pontos de estrangulamento' que se verifiquem nos tribunais. O juízo de conformidade material de uma norma com a Constituição não é, na verdade, a via adequada para fulminar o 'mau direito', entendido como direito menos eficiente ou adequado a determinadas finalidades, designadamente, por prejudicar princípios do processo penal como os da celeridade e da economia processual, não sendo o Tribunal Constitucional a instância adequada para efectuar tal ponderação – salvo, obviamente, na estrita medida em que algum ou alguns desses princípios de eficiência ou utilidade sejam directa ou indirectamente tutelados pela própria Lei Fundamental, que desta forma os eleva a parâmetro da solução legislativa.
5. A decisão recorrida fundamentou justamente o seu juízo de inconstitucionalidade no princípio da celeridade e eficiência da justiça criminal, ínsito ao n° 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa – que confere ao arguido em processo penal o direito a um julgamento rápido, no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa –, bem como no direito a uma tutela jurisdicional efectiva, tutelado no artigo 20º, n.º 5, da Constituição (segundo o qual 'para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos'). A celeridade processual é, patentemente, um valor constitucionalmente relevante, também na medida em que se integra, nos termos do n.º 4 do artigo 20º da Lei Fundamental, no direito de acesso aos tribunais, enquanto direito a um julgamento rápido, em prazo razoável. A perspectiva jurídico-constitucional relevante para apreciar a questão de constitucionalidade suscitada é, justamente, a que resulta da aferição da compatibilidade do regime decorrente do citado n° 2 do artigo 101° do Código de Processo Penal, na interpretação que dele fez, com as normas citadas. Na verdade, um regime que se traduz em fazer constar da própria acta a integral transcrição das declarações prestadas e gravadas durante a audiência não pode naturalmente colidir com o direito ao recurso, nem com o princípio constitucional das garantias de defesa do arguido (artigo 32º, n.º 1, da Constituição), pois representa antes um regime com um sentido claramente garantístico: tal transcrição em escrita comum dos depoimentos gravados tornará efectiva a possibilidade de ser exercido um segundo grau de jurisdição relativamente à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, colocando à disposição da Relação, não apenas a decisão, em si mesma (e a respectiva fundamentação substancial), mas também o suporte magnético de que consta a integral gravação das provas produzidas em audiência e a própria transcrição integral de tal gravação, constante da acta de julgamento e dotada de integrais garantias de genuinidade e fidedignidade. Pode ler-se no Acórdão n.º 161/92 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1992):
'[...] O que releva, para efeitos das garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32º da Lei Fundamental, é que o tribunal de recurso possa ter acesso a toda a prova produzida na audiência de julgamento na 1ª instância, de maneira a poder valorá-la em sede de reapreciação da decisão recorrida, ou seja, enquanto segundo juízo acerca da adequação da prova efectivamente produzida enquanto fundamento da condenação pronunciada.' Não pode, porém, estar em causa, na interpretação impugnada a ofensa das garantias de defesa do arguido, por se impossibilitar o contacto com elementos essenciais para a formação da convicção do tribunal, cuja fixação ainda se consegue levar perante o tribunal superior no caso de documentação magnetofónica ou audio-visual. É que a interpretação em questão, desaplicada pela decisão recorrida, não implica que as formas escritas de registo e transcrição substituam o envio da gravação magnetofónica ou audiovisual aos tribunais superiores, representando um empobrecimento dos elementos de prova fixados (um obstáculo à 'oralidade'). Apesar de tal substituição dos registos magnetofónicos ou audiovisuais vir tratada na decisão recorrida – que parece mesmo assentar também na violação dos princípios da imediação e da oralidade a conclusão no sentido da violação do direito do arguido a uma tutela jurisdicional efectiva (por se recusar a possibilidade de apreciação, pelo tribunal de recurso, de elementos probatórios não verbais produzidos na audiência de julgamento, existentes e disponíveis), afirmando mesmo que tal interpretação (com substituição das gravações pela sua transcrição) dificultaria a concretização do direito ao recurso e a garantia de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto –, a verdade é que a dimensão normativa cuja aplicação foi recusada corresponde apenas ao entendimento da norma em questão no sentido de 'nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impor a transcrição da teor da respectiva gravação para a acta' (itálico aditado). Não se trata, pois, de uma imposição de que a transcrição substitua o envio aos tribunais superiores do registo magnetofónico ou audiovisual da prova, mas apenas da interpretação segundo a qual tal norma impõe a sua transcrição.
6. Assim sendo, apesar de a decisão recorrida ter invocado uma multiplicidade de parâmetros para aferir da constitucionalidade da norma objecto do presente recurso, considera-se há apenas que apurar as consequências do eventual desfasamento de tal norma com as razões constitucionais da consagração do princípio da celeridade da justiça criminal. Ora, considerando o esclarecimento efectuado quanto ao alcance da imposição de transcrição (e independentemente de saber se tal sentido corresponde ao melhor sentido da norma, repete-se), deve considerar-se, antes do mais, que a gravação integral das audiências e da prova nelas produzida, quando as partes ou sujeitos processuais de tal não prescindam, por não renunciarem, desde logo, ao eventual recurso incidindo sobre a matéria de facto (o que neste caso aconteceu com o arguido), é pressuposta pela garantia de efectividade de um segundo grau de jurisdição, abrangendo a própria decisão sobre a matéria de facto, e, portanto, por uma garantia de defesa do arguido (sobre o problema do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, cfr. os Acórdãos n.ºs 253/92, 234/93, 322/93,
119/98, 573/98 e 680/98, publicados no Diário da República, II série, de 27 de Outubro de 1992, 2 de Junho de 1993, 29 de Outubro de 1993, 18 de Maio de 1998,
13 de Novembro de 1998 e de 5 de Março de 1999, respectivamente). Em conformidade, verificou-se – como salientou nas suas alegações o Ex.mº representante do Ministério Público em funções neste Tribunal – desde o início da consagração e vigência de tal regime, que o principal problema prático colocado pelo registo da prova não é propriamente a efectivação de tal registo em si mesmo considerado, perante o tribunal de 1ª instância – que, fundamentalmente, apenas exige meios técnicos operacionais e uma mais rigorosa disciplina e ordenamento da audiência –, mas a forma ou o modo de, no caso de ser interposto recurso versando sobre a apreciação da matéria de facto, facultar e fazer chegar os elementos resultantes da gravação à apreciação do tribunal ad quem.
É precisamente este o problema que se questiona no presente caso – a saber, o problema da eventual necessidade de transcrição dos depoimentos gravados, ao menos na parte em que tenham conexão com os pontos da matéria de facto coenvolvidos com o recurso. Bastará remeter os suportes magnéticos para a Relação, impondo o encargo de se proceder à respectiva audição, na medida do necessário para ajuizar da viabilidade e razoabilidade dos recursos? Ou, pelo contrário, será indispensável fornecer-lhes simultaneamente uma documentação, em escrito dactilografado, do teor de tais depoimentos gravados? E, neste caso, deverão ser os serviços judiciais ou as próprias partes a proceder a tal transcrição?
7. Pode, na verdade, duvidar-se de que a solução encontrada no processo civil – nos termos da qual cabe em primeira linha ao recorrente o ónus de proceder à transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos em que se funda para impugnar pontos concretos da decisão proferida sobre a matéria de facto (cfr. artigo 690º-A do Código de Processo Civil) – seja directa e plenamente transponível para o domínio do processo penal, de modo a impor sempre ao arguido
(por vezes preso) e respectivo defensor (muitas vezes oficioso) o ónus (e os custos) de realizarem tal transcrição. Escreveu-se, a este propósito, no Acórdão n.º 422/99, publicado no Diário da República, II série, de 29 de Novembro de 1999:
'[...] suposto que [...] do princípio do Estado de direito decorra uma
«harmonização do sistema jurídico» em termos de levar à consagração de soluções legais idênticas quando exista alguma similitude de situações, isso, certamente, não pode significar que essa harmonização conduza iniludivelmente a que os diversos corpos de leis adjectivos tenham de consagrar soluções iguais, designadamente no que tange ao processo civil e ao processo criminal. Na verdade, as prescrições tendentes à adjectivação não podem desligar-se da diversidade de institutos jurídicos de cariz, quantas vezes acentuadamente diferenciado, que pautam, verbi gratia, o direito civil, o direito penal e o direito administrativo, pelo que as soluções decorrentes dessa adjectivação podem, e muitas vezes até devem, ser diferentemente perspectivadas, até tendo em conta preceitos, princípios e garantias que a própria Constituição impõe que sejam observados em determinados ramos de direito. Seria, por exemplo, incurial e contrário à Lei Fundamental que no processo criminal se estabelecessem ónus probatórios a cargo do arguido, provas por confissão, sancionamentos cominatórios penais ou presunções de responsabilidade ou culpabilidade criminal, o mesmo já se não podendo dizer se um tal estabelecimento decorrer da lei processual civil, ao adjectivar as formas de tutela do incumprimento de obrigações civis.' São, com efeito, as garantias de defesa do arguido que explicam em grande parte a especificidade do processo penal ante o processo civil, e compreende-se que, por a inocência do arguido se presumir até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – sendo uma das suas garantias o próprio direito ao recurso de sentenças que imponham sanções penais (sobre o direito ao recurso em processo penal, cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 8/87, 31/87, 178/88, 474/94, publicados no Diário da República, I série, de 9 de Fevereiro de 1987, II série, de 1 de Abril de 1987, de 30 de Novembro de 1988 e de 8 de Novembro de 1994, respectivamente) –, exista no processo penal norma como a que constitui objecto do presente recurso, e que já não se surpreenda essa existência no Código de Processo Civil. O Código de Processo Penal revisto, no seu artigo 412°, n° 4, impondo ao recorrente um ónus de especificação e fundamentação idêntico ao que vigora no
âmbito do processo civil, limita-se a estatuir que há lugar a transcrição dos suportes técnicos de que consta a gravação sem, todavia, fazer recair claramente sobre o arguido o ónus de realizar tal transcrição, ónus que o Código de Processo Civil expressamente fez recair sobre o recorrente. Tratando-se de realidades diferentes, como são o processo civil e o processo penal, não se pode exigir do legislador um tratamento normativo semelhante, impondo-se neste último uma acentuação do valor garantístico.
8. Porém, é inquestionável que fazer recair o ónus da transcrição de toda a gravação da audiência e das provas nela produzidas sobre os próprios serviços judiciais coloca complexos problemas de dotação e apetrechamento, que se podem evidentemente reflectir na eficácia do sistema.
É também claro, contudo, que tais problemas de praticabilidade não se podem ultrapassar através da formulação de um juízo de inconstitucionalidade material do regime jurídico que impõe a transcrição oficiosa, a realizar pelos próprios serviços judiciais, da gravação magnetofónica realizada no decurso da audiência, considerando, como se deve, o conteúdo também garantístico desta transcrição. Antes do mais, deve notar-se que os inconvenientes manifestos e evidentes de tal sistema não radicam propriamente em razões de natureza estritamente jurídica, mas na deficiente dotação dos serviços judiciais, que não estarão preparados e apetrechados adequadamente para realizar, em tempo razoável e com elevado grau de fiabilidade, a complexa tarefa que se traduz em descodificar e passar para o tradicional suporte material, a escrita comum, a gravação sonora de toda a audiência, comportando os numerosos depoimentos porventura nela prestados. Tem sido, justamente, entendimento uniforme do Tribunal Constitucional que a questão a apreciar por este Tribunal (embora sempre atento à realidade dos factos) é uma pura 'questão de direito', e que o controlo da constitucionalidade incide apenas sobre o conteúdo da norma jurídica que se pretende submeter à sua apreciação e sobre a observância dos pressupostos de competência e forma relativos à sua emissão, não cabendo, por isso, no âmbito da sua competência emitir um juízo sobre a eficácia prática da norma, quando esse juízo possa e deva fazer-se independentemente de qualquer consideração jurídico-constitucional
(sobre isto, cfr. José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 53). Ou seja, embora se possa reconhecer que a norma ora em análise contém naturais custos em termos de celeridade e eficácia – já que impõe ao funcionário e ao juiz do tribunal de 1ª instância o encargo de realizar a transcrição integral dos depoimentos gravados e certificar a conformidade de tal transcrição com o teor dos depoimentos efectivamente prestados –, a apreciação desta questão afasta-nos do plano da apreciação das questões de constitucionalidade normativa que caracterizam necessariamente o objecto da fiscalização de constitucionalidade, para nos remeter exclusivamente para um plano da conveniência, praticabilidade e operacionalidade de regimes jurídico--processuais, em função de uma indagação e concreta valoração dos meios técnicos e humanos postos à disposição dos tribunais, sem directa repercussão normativa. Esta tarefa, obviamente, transcende o plano da fiscalização da constitucionalidade, da competência deste Tribunal Constitucional, o qual se limita a efectuar juízos de conformidade constitucional de normas jurídicas
(sobre o conceito funcional de norma adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade, cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 26/85, 63/91 e 155/95, publicados no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1985, de 3 de Julho de 1991 e de 20 de Junho de 1995, respectivamente).
9. Acresce – decisivamente –, que a exigência imposta pela norma do artigo 101°, n° 2, do Código de Processo Penal, na interpretação dela feita pela decisão recorrida, para além de, como vimos, não se revelar passível de censura face às garantias constitucionais de defesa do arguido – e no caso dos autos foi, aliás, o mandatário dos arguidos que declarou não prescindir da documentação da audiência –, não poderia nunca representar um sacrifício insuportável ou desproporcionado do princípio constitucional da economia processual, por não poderem aspirações de celeridade e economia processuais sobrepor-se a princípios de primeira grandeza como são relativos às garantias de defesa do arguido em processo penal. Como ainda recentemente decidiu este Tribunal no Acórdão n.º 388/99 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de Novembro de 1999)
'a celeridade encontra-se consagrada no artigo 32º da Constituição (cuja epígrafe é 'garantias de processo criminal'), que estabelece o dever de o arguido ser julgado 'no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'
(nº 2, in fine). Assim, não pode invocar-se a celeridade como fundamento legítimo para postergar garantias de defesa. Raciocinar nesses termos seria incorrer em petição de princípio, já que haveria que demonstrar justamente que as garantias de defesa não são aqui afectadas pela prevalência de um princípio de celeridade processual.' Pelo que também por isto não existiria fundamento para concluir que o regime resultante do n.º 2 do artigo 101º é materialmente inconstitucional, por implicar, na expressão do tribunal a quo, violação dos 'princípios constitucionais da celeridade, da tutela efectiva e do direito de recurso previstos nos art°s 20º, n° 5 e 32°, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.' Antes a norma em causa se afigura, também ela mesma, ao exigir a transcrição da documentação da audiência, expressão das garantias de defesa do arguido em processo penal, ao possibilitar a fixação em suporte escrito da documentação da audiência. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 101º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte em que, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, na interpretação segundo a qual impõe a transcrição do teor da respectiva gravação para a acta; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 5 de Abril de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa