Imprimir acórdão
Processo nº 676/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente P... e recorrido o Ministério Público, proferiu o Relator a fls. 479 e seguintes a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
'1.P..., com os sinais identificadores dos autos, e arguido em processo comum pendente no Tribunal Criminal de Lisboa, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Subsecção da 3ª Secção), de 3 de Junho de 1998, que negou provimento ao recurso por ele interposto e fixou 'a pena concreta em 3 anos de prisão' ('mas rectifica-se a qualificação jurídica dos factos mantendo-se a pena e a suspensão da sua execução sob a condição já fixada'- acrescenta-se ainda no acórdão).
2.No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invoca o recorrente o 'fundamento na inconstitucionalidade da norma constante do artigo
1º, al. F), conjugada com os artigos 120, nº 1, 303, nº 3, 309, nº 2, 359, nº 1 e 2 e 379, al. B) do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes deu o acórdão sob recurso, por violação do artigo 32, nº 1 e 5 e 18, nº 2 e 3 da Constituição, na medida em que o arguido veio a ser julgado e condenado no dito acórdão por crime diverso daquele por que tinha sido acusado, pronunciado, julgado e condenado na primeira instância sem que tenham sido asseguradas garantias de defesa, preterindo-se o princípio do contraditório', esclarecendo depois, a convite do Relator , que 'o recurso foi interposto ao abrigo do disposto na al. B) do nº 1 do artigo 70 da Lei 28/82 com a redacção que lhe deu a Lei 13-A/98' e 'que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada no próprio requerimento de interposição do recurso'.
3. Decorre dos autos que o recorrente 'sob imputação de 1 crime p.p. pelos artºs
313 e 314 al. C) do C.Penal/82' veio, afinal, a ser condenado na primeira instância 'por 1 crime p.p. pelos artºs 217º e 218º nº 1 do C. Penal/vigente, na pena de 3 anos de prisão', tendo sido a execução de tal pena 'declarada suspensa por 3 anos sob a condição de no espaço de 6 meses haver pago 850 000$00 acrescidos dos juros legais', mas no acórdão recorrido considerou-se que 'os factos não podem integrar o crime de burla tal como o prevêem os artºs 313 e seguintes do C.Penal/82' (consideração que não vem apoiada em nenhum preceito legal, nomeadamente as normas do Código do Processo Penal identificadas pelo recorrente). E acrescenta-se ainda no acórdão:
'Assim, os factos praticados pelo arguido integrariam face ao C. Penal/vigente, tão só um crime p.p. pelo artº 205 nºs 1 e 3, a que corresponde a pena abstracta de prisão até 5 meses ou pena de multa até 600 dias. Ora é seguro que a punição do arguido nos termos da nova lei é mais favorável ao arguido pois desde logo o máximo e mínimo da pena abstracta são mais baixos e daí que também a pena concreta haja de fixar-se em medida menor. E sendo-lhe mais favorável a nova lei deve ser-lhe aplicável – art. 2º nº 4 do C.Penal/vigente. Assim, no quadro abstracto de prisão até 5 anos que o art. 205 nº 1 e 3 do C.Penal/vigente, atenta a gravidade da culpa –dolo directo – o grau de ilicitude, o móbil do arguido e as suas condições pessoais, é de fixar a pena concreta em 3 anos de prisão'
4. Não oferece dúvidas que o presente recurso vem expressamente fundado na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Sucede, porém, que este Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 279/95, julgou 'inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, n.º 1, da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), conjugado com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'; e, posteriormente, no acórdão n.º 445/97, veio este Tribunal a declarar 'inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição - a norma
ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs
1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado sob a designação de ‘assento 2/93’, na 1ª série do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo acórdão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'. Ora, significa, isto que, se o recorrente entendia - como parece continuar a entender – que 'veio a ser julgado e condenado no dito acórdão por crime diverso daquele por que tinha sido acusado, pronunciado, julgado e condenado na primeira instância sem que tenham sido asseguradas garantias de defesa, preterindo-se o princípio do contraditório', deveria ter fundado o recurso de constitucionalidade na alínea g) do mesmo nº 1 do artigo 70º, por ter sido, na sua tese, aplicada 'norma já anteriormente julgada inconstitucional (...) pelo próprio Tribunal Constitucional'.
Como se pode ler no recente acórdão do Tribunal Constitucional nº 518/98, de 15 de Julho de 1998, ainda inédito:
'Quer o recurso da mencionada alínea g) encontre o seu fundamento no interesse de fazer prevalecer as decisões do Tribunal Constitucional em questões de constitucionalidade [cf. os acórdãos nºs 257/89 e 214/90 (publicados no Diário da República, II série, de 29 de Agosto de 1989 e de 17 de Setembro de 1990)], quer esse fundamento radique, antes, num 'propósito de defesa da Constituição'
[cf. MIGUEL GALVÃO TELES, A competência da competência do Tribunal Constitucional (Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra,
1995, página 118, nota 22)], sempre se tratará, em tal recurso, 'de não deixar subsistir decisões de outros tribunais que julguem questões de constitucionalidade divergentemente dos julgamentos feitos sobre a matéria pelo Tribunal Constitucional' (cf. o citado acórdão n.º 214/90). Esta razão, que é válida para os casos em que uma decisão de um tribunal aplicou uma norma que o Tribunal Constitucional já antes julgou inconstitucional, 'vale redobradamente - são ainda palavras do mesmo acórdão n.º 214/90 -, quando um tribunal aplica uma norma que o Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional com força obrigatória geral'. Por conseguinte, quando se verifique uma situação de não acatamento de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por um qualquer tribunal, da decisão deste cabe recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na mencionada alínea g). O não acatamento da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, verifica-se, obviamente, quando uma decisão de um tribunal aplica, de forma clara e ostensiva, a norma que foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral. Mas verifica-se também quando a decisão, parecendo, embora, acatar a declaração de inconstitucionalidade, no entanto, não obedece ao respectivo sentido e alcance - ou seja, quando, como se escreveu no acórdão n.º
528/96 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Julho de 1996), ela não tem 'em conta o sentido e alcance [...] da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral'. Em ambas as situações, com efeito, existe aplicação da norma que a declaração de inconstitucionalidade eliminou do ordenamento jurídico. Acontece apenas que, nas situações do segundo tipo, essa aplicação é uma aplicação implícita'. Como não foi aquela alínea g) a servir de fundamento do recurso e não tem aqui cabimento a invocação da alínea b), como faz o recorrente, não pode tomar-se conhecimento do recurso, exactamente porque se não verifica o pressuposto específico da aplicação da norma 'cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' (não havia sequer lugar a suscitar nos autos a questão de inconstitucionalidade que vem posta pelo recorrente, pois ele não supunha que viesse a ser alterada a qualificação jurídica dos factos; havia antes e só que controlar o julgado em função da jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional).
5. Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, não tomo conhecimento do recurso'.
B. Dessa DECISÃO SUMÁRIA veio recorrente 'reclamar para a conferência', invocando os 'termos do nº 3 do artigo 78º-A (redacção da lei nº 13-A/98) da lei
28/82', e dizendo, em síntese, o seguinte:
- 'Há, assim, uma interpretação nos Tribunais da al. f) do artigo 1º do Cód. de Proc. Penal, que teve eco também no acórdão sob recurso, que ofende o princípio constitucional ínsito no nº 1 do artigo 32º da Constituição' ('Assim, esta norma, com a interpretação que lhe deu o acórdão sob recurso é inconstitucional pelo que o Tribunal recorrido aplicou norma inconstitucional').
- 'Ora, na al. B) do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82 revê-se o recurso para o Tribunal Constitucional quando tiver sido aplicada no processo norma inconstitucional. É o caso'.
- 'Ora, se o fundamento do recurso é a aplicação pelo tribunal recorrido de norma inconstitucional não vemos que haja razão – a decisão reclamada não a aponta – para que o fundamento da al. g) exclua o da alínea b) do preceito supra referido'
C. Apresentou o Ministério Público uma resposta à reclamação, acompanhando-a, pois que conclui 'que estão efectivamente verificados os pressupostos do tipo de recurso efectivamente interposto pelo arguido, o que implica, salvo melhor opinião, o deferimento da reclamação apresentada'.
Para chegar a tal conclusão, sustenta o Ministério Público que não há 'uma relação de absoluta exclusão entre aqueles dois tipos de recursos, de tal modo que a existência ou verificação dos pressupostos do recurso fundado na alínea g) precluda em absoluto a possibilidade de o recorrente o fundar na alínea b) – desde que naturalmente se verifiquem os específicos pressupostos desta última norma', acrescentando depois:
'4 – Ou seja: se se verificar um 'concurso de normas' – decorrente da simultânea verificação, em concreto, dos pressupostos daqueles dois tipos de recurso de fiscalização concreta, cumprirá à parte interessada optar pelo meio processual que, na sua óptica, pareça mais favorável ou adequado à tutela do seu interesse.
5 – No caso dos autos, o recorrente optou pela via do recurso a que alude a alínea b), pelo que importa verificar se os respectivos pressupostos estão presentes.
6 – Sendo evidente que estão esgotados os recursos ordinários possíveis e que o Supremo Tribunal Justiça aplicou a norma processual penal que lhe permite operar a correcção da qualificação jurídica dos factos, realizada pelas instâncias, sem que o arguido haja sido prevenido para poder contraditar a convolação que se efectuou do crime de burla para o de abuso de confiança; por outro lado, é patente que tal não originou, na concreta situação 'sub juditio', agravamento da sanção penal aplicável e aplicada ao arguido, (já que ambos os crimes eram puníveis com pena de prisão até 5 anos e foi cominada ao arguido a concreta pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução).
7 – Não sendo normalmente previsível a realização de tal convolação pelo Supremo Tribunal de Justiça, não era exigível ao recorrente a suscitação de tal questão antes da prolação do acórdão recorrido'.
D. Vêm os autos à conferência, nos termos do invocado artigo 78º-A, na redacção do artigo 1º da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, cumprindo agora decidir. O caso está descrito na DECISÃO reclamada, que não interessa estar aqui a repetir, e a questão, talqualmente regista a Ministério Público, na sua resposta, 'prende-se com a articulação dos tipos de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previstos nas alíneas b) e g) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82'. Tem-se, pois, por adquirido que, como é também a posição do Ministério Público, verificando-se no caso o tal 'concurso de normas', o que importa é saber se cumprirá ou não 'à parte interessada optar pelo meio processual que, na sua
óptica, pareça mais favorável ou adequado à tutela do seu interesse'. Pode, desde logo, questionar-se na livre disponibilidade do recorrente a opção pela utilização de uma das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º , correspondendo ao artigo 280º, nº 1, b) e 5, da Constituição, conforme melhor lhe aprouver. Tratando-se, como parece acontecer, de pura aplicação por um Tribunal de norma ou conjunto normativo, sem se questionar à sua desconformidade com a Constituição, independentemente de saber se isso é expresso ou implícito, é muito diferente a situação dessa aplicação, quando anteriormente havia já um juízo de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional e até uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral (alínea g)), e a situação de confronto com uma arguição de inconstitucionalidade feita pelo recorrente durante o processo, obrigando nele a uma pronúncia (alínea b)). De facto, o recurso desta alínea b) só cabe das decisões dos outros tribunais que, como sua ratio decidendi, tenham aplicado norma ou conjunto normativo (ou certa interpretação do direito infraconstitucional), que o recorrente, durante o processo, tenha arguido de inconstitucional (cfr. o recente acórdão nº 586/98, inédito). Ora, no caso, está fora de qualquer dúvida que o recorrente, durante o processo, nunca fez tal arguição – só o fez no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade -, e, por isso, o acórdão recorrido perspectivou a questão da alteração da qualificação jurídica dos factos no plano da
(in)constitucionalidade, não se vendo nele qualquer referência às normas em causa do Código de Processo Penal (aliás, na decisão o que se diz apenas é que:
'rectifica-se a qualificação jurídica dos factos'). O que parece haver, na posição assumida pelo recorrente ao interpor o recurso de constitucionalidade, é uma situação expressa ou implícita de não acatamento de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se retrata no acórdão do Tribunal Constitucional nº 518/98, citado e transcrito na DECISÃO reclamada (cfr. o citado acórdão nº 586/98, sobre a referida situação e como ela deve ser entendida). Por conseguinte, quando se verifique tal situação, da decisão recorrida cabe recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na mencionada alínea g), exactamente porque se pode e deve legitimamente presumir que a questão de constitucionalidade não deixou de ser considerada pelo tribunal a quo. E. Aceitando, todavia, como pretende o Ministério Público, que era ainda in casu apropriado o fundamento da alínea b), por estar na disponibilidade do recorrente essa opção, tudo está em saber agora se, como aqui acontece, é processualmente adequada a suscitação da questão de inconstitucionalidade em causa no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. E, entende-se que não, porque, como também anota o Ministério Público, sobre o arguido e ora recorrente recai o 'ónus de arguir, perante o Supremo Tribunal de Justiça, a nulidade decorrente da preterição do contraditório, face à
‘convolação-surpresa’ operada no acórdão recorrido'. Não se verifica, assim, à luz daquela alínea b), o pressuposto especifico da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, o que também conduz ao não conhecimento do recurso. Com o que se mantém, embora com diferentes fundamentos, a DECISÃO reclamada. F. Termos em que, DECIDINDO, desatende-se a reclamação e, com distintos fundamentos, não se toma conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. LX. 16.12.98 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa