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Proc. nº 880/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. L... recorreu para o Plenário Geral do Tribunal de Contas do acto definitivo praticado pelo respectivo Conselheiro Presidente, relativo ao concurso curricular para Juízes Conselheiros desse mesmo Tribunal. O recorrente sustentou que a aplicação da norma contida no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos no caso sub judicio constitui uma decorrência dos princípios consagrados nos nºs 1, 2, 3 e 6 do artigo 268º da Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de o recurso ter sido interposto fora do prazo de 30 dias a que se refere o artigo 169º, nº 1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, propugnando a sua não admissão.
O Tribunal de Contas, por acórdão datado de 21 de Janeiro de 1996, mas prolatado a 21 de Dezembro de 1995, indeferiu o recurso, por intempestividade (cf. acórdão de fls. 47).
2. Notificado da exposição escrita do relator que serviu de base ao acórdão de 21 de Dezembro de 1995 (leia-se 21 de Janeiro de 1996), o recorrente reclamou, em 8 de Janeiro de 1996, para o Plenário Geral do Tribunal de Contas daquilo que pensou ser o despacho de indeferimento do recurso, sustentando que a não aplicação da norma contida no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos no caso em análise viola o artigo 268º, nº 3, da Constituição.
O Plenário Geral do Tribunal de Contas, porém, já havia decidido a não admissão do recurso (acórdão de 21 de Dezembro de 1995, datado de 21 de Janeiro de 1996).
3. O recorrente requereu a aclaração e a sanação de nulidades do acórdão do Tribunal de Contas de 21 de Dezembro de 1995, sustentando que a não aplicação da norma contida no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos no caso em apreciação, com a correspondente aplicação da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, viola as normas contidas nos artigos 268º, nº 3, 207º e 208º da Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever ser rectificado o acórdão reclamado quanto à data, não devendo o Tribunal de Contas apreciar a questão de constitucionalidade suscitada, já que tal questão não foi invocada no recurso inicial.
O Plenário Geral do Tribunal de Contas, por acórdão de 25 de Setembro de 1996, concluiu '... pelo desatendimento de todo o requerido pelo recorrente'.
4. Notificado do acórdão de 25 de Setembro de 1996, L... interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho '... na interpretação feita pelo Tribunal de Contas'.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'I - A Constituição consagra nos artigos 268º/3 e 208º/1 o direito à fundamentação de actos administra-tivos e de decisões judiciais, que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos;
II - Tais direitos configuram direitos fundamen-tais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, elementos estruturantes do Estado de Direito Democrático;
III - O acto do T. Contas é um acto materialmente administrativo;
IV - O direito à fundamentação assume uma dupla dimensão: enquanto afirmação dos princípios da transparência e da boa administração da actuação administrativa; enquanto garantia do direito ao recurso contencioso e ao acesso à Justiça;
V - O direito à fundamentação decompõe-se em dois elementos: enquanto direito ao conhecimento dessa fundamentação;
VI - A concretização legislativa do direito ao conhecimento da fundamentação pelo artigo 31º LPTA assume-se, assim, como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, embora de natureza legal;
VII - A interpretação e aplicação do artigo 172º/4 da Lei
21/85 feita pelo T. Contas impediu um conheci-mento atempado e útil da fundamentação e consequente-mente o acesso à Justiça.
VIII - Violou assim os artigos 208º/1 e 268º/3 bem como os artigos 20º/1 e 268º/4 e 5 CRP, além do artigo 31º LPTA, todos direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.'
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, tendo tirado as seguintes conclusões:
'1º - O recorrente não suscitou, anteriormente à prolação da decisão recorrida, podendo fazê-lo, a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto do recurso de fiscalização concreta interposto já que na reclamação que deduziu para o Plenário do Tribunal de Contas, se limitou a questionar a constitu-cionalidade da 'não aplicação' de certa norma de direito infra-constitucional e a imputar à própria decisão recorrida a violação de princípios e preceitos da Lei Fundamental.
2º - Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso, por falta de um seu pressuposto de admissibilidade.
3º - Caso assim se não entenda, deverá julgar-se o recurso procedente, por ser violadora dos artigos 13º e 20º da Constituição a interpretação e aplicação da norma contida no nº 4 do artigo 172º da Lei nº
21/85, de 30 de Julho, em termos de criar para o recorrente o ónus de ter de impugnar um acto cuja fundamentação, no momento em que se consuma o prazo para recorrer, desconhece, sem culpa da sua parte.'
Em resposta à questão prévia suscitada pelo recorrido, L... pronunciou-se no sentido do conhecimento do objecto do recurso de constituciona-lidade, tendo concluído nos seguintes termos:
'I - Encontram-se cumpridos todos os requisitos pro-cessuais específicos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º LPTC;
II - O artigo 172º/4 foi efectivamente aplicado pelo Tribunal a quo constituindo a ratio decidendi da decisão;
III - O recorrente é a parte que suscitou a questão da inconstitucionalidade e encontram-se esgotados os meios ordinários de recurso;
IV - A decisão sob recurso foi uma total surpresa quanto à aplicação e interpretação do art. 172º/4, sendo anteriormente insólito e imprevisível que fosse esse o raciocínio do Tribunal a quo;
V - O recorrente, apesar de já na Petição de Recurso se referir à eventual violação do direito constitucio-nalmente consagrado à fundamentação, em termos genéricos, só se viu possibilitado de especificamente contradizer o anómalo entendimento surpresa do Tribunal a quo nas peças processuais imediatamente seguintes à decisão;
VI - Fê-lo na Reclamação para o Plenário do Despacho do Relator e no requerimento de Aclaração e de Nulidades do Acórdão final;
VII - A invocação da inconstitucionalidade da apli-cação e interpretação do art. 172º/4 feita pelo Tribunal a quo, tem por base o argumento de que o direito à fundamentação consagrado no art. 268º CRP foi total e absolutamente impossibilitado e desrespeitado, desde logo porque não existiu fundamentação, mas também porque se impediu a aplicação da sua concretização legal, o art. 31º LPTA, que, na vertente de direito ao conhecimento da fundamentação, assume igualmente a natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias;
VIII - Em consequência, a aplicação do art. 172º/4 é inconstitucional porque impede o direito à fundamentação e o direito ao conhecimento da fundamentação, tal como previsto no art. 31º LPTA, sua concretização e sem o qual aquele direito não pode ser exercido com eficácia;
IX - O recorrente opôs-se expressamente à interpre-tação e aplicação do art. 172º/4 feita pelo Tribunal a quo, porque dele se retiraram as consequências de incons-titucionalidade expostas;
X - E, deve igualmente considerar-se a arguição de inconstitucionalidade do art. 172º/4 feita também implicitamente, sempre que se referiram algumas das suas consequências, desde logo o afastamento da aplicação do
art. 31º LPTA, em virtude do regime que lhe deverá ser também aplicável nos termos dos arts. 17º e 18º CRP.'
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia
6. O Ministério Público, nas alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional, sustenta que o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado e em tempo a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, propugnando, consequentemente, o não conhecimento do objecto do recurso.
Ora, das alegações apresentadas pelo recorrente no âmbito do presente recurso de constitucionalidade resulta que a norma considerada inconstitucional é a contida no nº 4 do artigo 172º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na interpretação acolhida pela decisão recorrida.
Contudo, na reclamação para o Plenário Geral do Tribunal de Contas deduzida a 8 de Janeiro de 1996 (momento que seria o processualmente adequado para suscitar a questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso) o recorrente afirmou que 'a não aceitação da aplicabilidade aos autos do artigo
31º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos violaria frontalmente o direito à fundamentação previsto no artigo 268º nº 3 da Constituição', já que tal artigo seria a 'concretização garantística legislativa sem a qual o dever constitucional (de fundamentação) poderia ficar sem sentido'. Daí que 'só a aplicação do artigo 31º da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos poderia garantir os seus direitos constitucionais expressos no artigo 268º, nºs 3 e 4'.
Poder-se-ia concluir, então, que o recorrente não identificou, no momento processualmente adequado, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada?
A resposta negativa impõe-se, por duas razões.
Assim, a questão jurídica que fundamentou a reclamação para o Plenário Geral do Tribunal de Contas centrou-se na discussão entre a aplicação da norma contida no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(entendimento propugnado pelo ora recorrente) e a aplicação da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (solução acolhida pelo pretenso despacho então reclamado). Ora, a afirmação sobre a inconstitucionalidade da não aplicação da norma contida no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, no contexto da impugnação de uma decisão que fez aplicação da norma constante do artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, implica, por necessidade lógica, a invocação da inconstitucionalidade do próprio fundamento normativo da decisão impugnada, impondo, nessa medida, o confronto da norma concretamente aplicada com os princípios e normas constitucionais invocados.
Com efeito, a extensão do argumento de constitucionalidade então invocado pelo ora recorrente ultrapassa a mera questão da não aplicação do artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, abrangendo a problemática da constitucionalidade da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, enquanto critério normativo aplicável em casos semelhantes ao dos autos.
Assim, há que concluir que o recorrente identificou de forma suficientemente perceptível (e por isso de modo processualmente adequado) os contornos da questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada.
Por outro lado, e decisivamente, quando o recorrente foi confrontado com a dimensão normativa que considera ser inconstitucional (exposição que serviu de base ao acórdão de indeferimento que o recorrente pensou ser um simples despacho do relator) já não podia suscitar a questão de constitucionalidade normativa, uma vez que o tribunal a quo já decidira, em definitivo, indeferir o recurso (acórdão do Plenário Geral do Tribunal de Contas, datado de 21 de Janeiro de 1996 mas prolatado a 21 de Dezembro de 1995).
Nesta medida, o recorrente não terá tido, na verdade, oportunidade processual de suscitar tempestivamente a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, pois quando foi confrontado com a decisão de indeferimento do recurso (que inesperadamente, na sua perspectiva, fez aplicação da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85), tal decisão já não podia ser impugnada, sem que, no entanto, fosse possível, em face das circunstâncias, ter a percepção de tal impossibilidade. Não lhe era, pois, exigível que suscitasse, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa (cf., a este propósito, o Acórdão nº 155/95, DR, II Série, de 20 de Junho de 1995). Não obstante, o recorrente colocou a questão naquele que pensou ser o momento processualmente adequado para o fazer (e, efectivamente, sê-lo-ia, atendendo aos elementos dos autos).
7. Em face do exposto, decide-se desatender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, tomando-se, consequentemente, conhecimento do objecto do recurso.
B A conformidade à Constituição da norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85
8. O recorrente sustenta, nas alegações de recurso apresentadas junto do Tribunal Constitucional, que a norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, tal como foi interpretada e aplicada pela decisão recorrida, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 268º, nºs 3,
4 e 5, 208º, nº 1 e 20º, nº 1, da Constituição.
Por seu turno, o Ministério Público, nas contra-alegações, admitindo a possibilidade de o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do presente recurso, sustenta a inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação do disposto nos artigos 13º e 20º da Constituição, propugnando, consequentemente, a procedência do mesmo.
O artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, foi interpretado e aplicado pelo Plenário Geral do Tribunal de Contas no sentido de o recorrente dever, concomitantemente, interpor o recurso da deliberação classificativa do concurso para Juízes do Tribunal de Contas num momento em que ignora os fundamentos da decisão que pretende impugnar, esclarecer que não pode alegar (uma vez que desconhece as razões que subjazem à interposição do recurso), pedir que o prazo para alegar lhe seja prorrogado e solicitar certidão dos fundamentos da decisão impugnada, juntando, posteriormente, tal certidão e as alegações.
Será uma tal dimensão normativa do preceito impugnado compatível com os princípios e normas constitucionais invocados pelo recorrente e pelo recorrido, nomeadamente, e desde logo, com o direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição?
9. A tutela constitucional do direito ao recurso contencioso, decorrente da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que postula o exercício livre e esclarecido de tal direito (como forma de salvaguardar material-mente os interesses inerentes), não admite a consagração, no plano infraconstitucional, de exigências que, não se confundindo com o exercício do direito dentro de um prazo pré-definido, consubstanciem antes, e tão somente, condicionantes de tal exercício desprovidas de fundamento racional e sem qualquer conteúdo útil.
Com efeito, devendo a interposição de qualquer recurso contencioso pressupor a plena estabilidade e intelegibilidade da decisão de que se pretende recorrer, não é constitucionalmente admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração, nessa medida, não prossegue quaisquer interesses dignos de tutela.
Ora, a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos respectivos fundamentos. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao raciocínio argumentativo que subjaz à decisão tomada, não pode formar a sua vontade de recorrer, porque não dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza da decisão. Nessa medida, e tendo presente a eficácia persuasiva intraprocessual da fundamentação das decisões, pode afirmar-se que, antes de se dar a conhecer os fundamentos decisórios, não pode haver, porque do ponto de vista da racionalidade comunicativa não é concebível, uma legítima intenção de recorrer.
Assim sendo, a exigência da interposição de um recurso num momento em que se desconhecem os fundamentos da decisão a impugnar (num momento em que, dir-se-ia, ainda não se pode saber se o recorrente efectivamente quer recorrer) não é equiparável à necessidade de interposição do recurso dentro de um prazo razoável (decorrente da celeridade processual e da segurança e certeza jurídicas). Diferentemente, tal exigência traduz-se antes na imposição de uma formalidade limitadora do efectivo exercício do direito ao recurso e absolutamente alheia ao que possa ser a prossecução de um interesse racional e teleologicamente justificado.
Nessa medida, aquela exigência afecta o núcleo fundamental do direito ao recurso, pelo que a norma que a consagra não é compatível com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da Constituição).
11. Alcançada esta conclusão, mostra-se desnecessário apreciar a conformidade à Constituição da norma impugnada à luz dos outros princípios e normas constitucionais invocados pelo recorrente.
III Decisão
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Tomar conhecimento do objecto do recurso;
b) Conceder provimento ao recurso, julgando inconstitu-cional a norma contida no artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na interpretação feita pelo Plenário Geral do Tribunal de Contas, por violação do disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição, revogando, consequentemente, a decisão de não admissão do recurso da decisão classificativa do concurso para Juízes do Tribunal de Contas.
Lisboa, 19 de Maio de 1998 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida