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Procº nº 138/2000.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 6 de Maio de 2000 (fls. 463 a 468 dos presentes autos) lavrou o relator decisão sumária com o seguinte teor:-
1. Por acórdão proferido em 24 de Março de 1999 pelo Tribunal de Círculo de Portimão foi, por entre outros, condenado o arguido V... na pena, especialmente atenuada, de três anos de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de quatro anos, pela prática de factos que foram subsumidos à autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo nº 1 do artº 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Desse acórdão recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça a Procuradora da República junta daquele Tribunal de Círculo, propugnando por não dever a pena aplicada àquele arguido ser inferior a quatro anos de prisão.
2. À audiência que teve lugar em 21 de Outubro de 1999 no Supremo Tribunal de Justiça não compareceu o advogado do arguido V..., que, nesse dia, fez juntar aos autos, via fax, um requerimento no qual dizia que ‘devido a corte de estrada provocado pela intempérie, não poderá chegar atempadamente à audiência marcada para hoje pelas 10h30, devendo proceder-se à sua substituição’.
Nessa mesma audiência, como se abarca da acta de fls. 432, foi nomeado ao arguido V..., como defensora oficiosa, uma Senhora Advogada, que veio a efectuar alegação.
Por acórdão de 21 de Outubro de 1999, que veio a ser notificado ao advogado constituído do arguido V..., o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento ao recurso, condenando tal arguido na pena de quatro anos e quatro meses de prisão.
3. Por requerimento entrado na secretaria daquele Alto Tribunal em 16 de Novembro de 1999, veio o arguido V... arguir a nulidade do acórdão de 21 de Outubro do mesmo ano, dizendo, a dado passo e para o que ora releva:-
‘........................................................................................................................................................................................................................................................................................ A nomeação de defensor para assistência e intervenção em acto para o qual a sua assistência é obrigatória e o mandatário constituído não está presente, não deve ser uma mera formalidade, algo que acontece na audiência para permitir que esta se realize na observância de requisitos legais. Nesta circunstância, o critério que deve orientar o tribunal quando nomeia oficiosamente um defensor, deve ser o de materialmente assegurar a defesa do arguido, concretizando assim o preceito constitucional que determina o direito de um arguido ser assistido por defensor em todos os actos do processo. O tribunal, ao decidir sobre a nomeação de defensor nas circunstâncias já referidas, terá de ponderar concretamente se a realidade processual permite que um defensor nomeado exerça a necessária e suficiente defesa do arguido. O tribunal deve ter em conta a complexidade dos autos em apreço e a gravidade penal das questões suscitadas, considerando se é conveniente ou não que seja o arguido defendido por alguém que necessariamente desconhece o processo e as questões que, naquele acto, estão a ser debatidas. Na verdade, o legislador, tendo presente a diversidade de situações em que a nomeação de defensor pode ocorrer, possibilitou ao tribunal a decisão por uma interrupção da realização do acto em vez de nomear defensor, como decorre da
última parte do nº 1 do art. 67º do C.P.P.. O legislador admitiu que, em determinadas circunstâncias, o defensor tem que estar de tal forma preparado, concentrado e ciente da matéria sobre a qual deve exerce a sua defesa que o defensor oficioso não pode através de um mero exame dos autos ter a noção da problemática envolvida no processo. Por outro lado, a legislação processual penal define que a nomeação de defensor deve ser notificada ao arguido e ao defensor quando não estiverem presentes no acto - art. 66º, nº 1 do C.P.P., aplicável em todos os momentos do processo, independentemente da instância em que este se encontre. Esta norma é um afloramento do direito constitucional de escolha de defensor, consagrado no nº 3 do art. 32º da C.R.P.. Esta garantia constitucional implica não só o direito do arguido escolhe um defensor, como de, quando este lhe é nomeado, não aceitar ratificar os seus actos, rejeitando, por justa causa, essa nomeação.
......................................................................................................................................................................................................................................................................................... No presente caso, a 5ª Secção do S.T.J. interpretou os arts. 61º, nº 1, alínea e), 65º, 66º e 67º, nº 1, todos do C.P.P., de uma forma que violou directamente o art. 32º, nº 1 e 3 da C.R.P., pois não considerou inconveniente nem insegura a defesa do arguido por alguém que não conhecia os autos cuja complexidade e gravidade penal exigiam que fosse o arguido representado por quem dominasse os meandros do processo. A 5ª Secção do S.T.J. interpretou inconstitucionalmente as normas dos arts. 61º, nº 1, alínea e), 65º, 67º, todos do C.P.P., ferindo o direito constitucional de escolha pelo arguido de defensor e coartando garantias de defesa, como a de o arguido ser assistido em acto judicial pelo defensor por si escolhido e defendido pelo mesmo em processo complexo e grave. A 5ª Secção do S.T.J. podia e devia, por inconveniente, ter determinado a interrupção da realização do acto, nos termos da última parte do nº 1 do art.
67º do C.P.P., contudo, não o fez apesar da lei lhe atribuir funções de guardião das garantias de defesa do arguido. A interpretação e aplicação inconstitucional das referidas normas determinou que o Acordão tivesse sido proferido com grave atentado às garantias inconstitucionais.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................’
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Janeiro de
2000, indeferiu o solicitado, tendo dito, no que agora interessa:-
‘........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Como bem assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, só assistiria razão, se acaso não tivesse havido a concernente notificação para estar presente na audiência oral, isto referentemente à posição do ilustre mandatário do arguido.
Mas a correspondente diligência processual foi levada a cabo, como se constata através do talão de registo 768339 (ver fls. 420 verso). E a fls. 431 o próprio mandatário judicial pediu para ser substituído.
Como se alcança de fls. 432 (acta de audiência) foi feita a respectiva substituição pela Ex.ma Drª C....
De tudo se alcança que foi cumprido o determinado no artigo 64º, nº
1, alínea e) do C.P. Penal, pelo que inexiste qualquer nulidade.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................’
É deste aresto que vem, pelo arguido V... e ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto o vertente recurso, por intermédio do qual pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 61º, nº 1, alínea e), 65º e 67º, nº 1, todos do Código de Processo Penal, ‘com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, a qual viola o disposto no art. 32º nº e 3 da Constituição’.
O recurso foi admitido por despacho prolatado em 18 de Fevereiro de
2000 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
5. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82), e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se ex vi do nº 1 do artº 78º-A da aludida Lei, a presente decisão sumária.
5.1. De assinalar é, em primeiro lugar, que no requerimento de interposição de recurso não é, minimamente, explicitada qual a interpretação normativa que teria sido acolhida no aresto intentado colocar sob a sindicância deste Tribunal.
5.2. Em segundo lugar, e como é por demais evidente, tendo em conta o teor do preceito contido no artº 65º do Código de Processo Penal, não só o mesmo não foi objecto de aplicação, como ratio decidendi, no acórdão em causa, como, aliás, nem se entende como seria possível convocar, para a presente situação, a norma nele vertida, pelo que, de todo em todo, o objecto da impugnação nunca o poderia abarcar.
5.3. Pelo que tange à norma que decorre dos preceitos conjugados constantes da alínea e) do nº 1 do artº 61º e do nº 1 do artº 67º, ambos do mesmo corpo de leis, é a todos os títulos claro que o Supremo Tribunal de Justiça, na impugnada peça processual, não levou a efeito qualquer interpretação de harmonia com a qual a mesma:-
- vedaria ao tribunal ter em conta a complexidade dos autos e a gravidade das questões suscitadas;
- vedaria ao tribunal aquilatar se era ou não conveniente que o arguido viesse a ser assistido por um defensor que desconhecia o processo e as questões que, em dado acto processual, estavam a ser debatidas;
- vedaria que o tribunal ponderasse se, em face das circunstâncias concretas do caso, seria mais conveniente o adiamento da diligência, tendo em atenção que o defensor oficioso nomeado não asseguraria, tão só pelo mero exame dos autos, preparada, concentrada e eficaz defesa do arguido;
- impedia que se considerasse inconveniente ou insegura a assistência ao arguido por banda de um defensor oficioso em acto respeitante a processo que apresenta complexidade e gravidade penal.
5.3.1. Na verdade, estatui o nº 1 do falado artº 67º:-
1. Se o defensor, relativamente a um acto em que a assistência for necessária, não comparecer, se ausentar antes de terminado ou recusar ou abandonar a defesa, o tribunal nomeia imediatamente outro defensor; mas pode também, quando a nomeação imediata se revelar impossível ou inconveniente, decidir-se por uma interrupção da realização do acto.
Ora, acerca desta norma, por si só ou em conjugação com a da alínea e) do nº 1 do artº 61º, já citado (que prescreve que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, do direito de [s]er assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar), o aresto sub specie não efectuou qualquer interpretação que conduzisse ao que acima se veio de referir.
Antes, o que resulta inequívoco é que o Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir como decidiu, ou seja, ao considerar que não ocorreu qualquer nulidade por, tendo o advogado constituído do arguido transmitido que lhe não era possível estar presente na audiência e que, por isso, solicitava a sua substituição, mais não fez do que subsumir a estatuição da (ou das) dita (ou ditas) norma (ou normas) ao caso concreto, por forma a concluir que, neste, se não revelava inconveniente a nomeação de outro defensor (nomeação essa que até recaiu sobre uma Advogada).
Não houve, consequentemente, a assunção de uma qualquer interpretação ou a adopção de quaisquer dimensão ou sentido normativo de molde a conduzir a soluções jurídicas tais como as indicadas no precedente ponto 5.3.
E, assim sendo, como é, o que se surpreende no presente caso é, e tão só, uma mera subsunção ou inserção ao «direito» do caso a apreciar e decidir,
«direito» esse que não proveio de uma «norma do caso» alcançada por um qualquer processo interpretativo de onde resultasse a dação de um sentido ou de uma dimensão que fora questionada, do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional, pelo ora recorrente.
Essa mera subsunção - isto é, a aplicação de uma dada norma que não foi objecto de aplicação com o sentido posto em crise pelo recorrente como sendo inconstitucional - como é sabido, não pode ser censurada por este Tribunal, ao qual também não compete curar de eventuais erros de julgamento decorrentes daquela mera subsunção ao nível do direito ordinário.
Em consequência, não se congregam, no caso, os pressupostos do recurso a que alude a alínea b) do nº do artº 70º da Lei nº 28/82.
Anote-se, por último, que, ainda que fosse possível (e já se viu que o não é) hipotisar que, efectivamente, houve, de banda do acórdão desejado impugnar, uma interpretação normativa que conduzisse a algum dos resultados enunciados no antecedente ponto 5.3., sempre, tendo em conta presente circunstancionalismo consubstanciado em ter sido o próprio defensor constituído do arguido a solicitar a sua substituição na realização do acto processual ao qual não iria comparecer, se haveria de ter o recurso por manifestamente infundado.
Em face do exposto, não se toma conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
É desta reclamação que, pelo arguido V..., vem deduzida a vertente reclamação, esgrimindo, em síntese, com os seguintes fundamentos:-
- o acórdão tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça, conquanto nele não haja imediata e evidente menção dos artigos 61º, nº 1, alínea e), 65º, 66º e
67º, todos do Código de Processo Penal, arguidos de inconstitucionais pelo ora reclamante antecedentemente à prolação daquele aresto, baseia-se numa interpretação desses preceitos efectuada de modo desconforme à Lei Fundamental, pois que, referindo-se nele que os direitos de escolha de defensor e de assistência de advogado haviam sido respeitados, isso só pode significar que interpretou aqueles normativos no sentido de, pedindo o advogado constituído do arguido a sua substituição, isso implicar que se não deva ponderar como inconveniente a possibilidade dessa substituição;
- conhecendo o Supremo Tribunal de Justiça a complexidade dos autos e a gravidade da situação do arguido, deveria o mesmo ter interpretado o dito artº 67º 'de acordo com o Princípio constitucional de escolha de defensor e consequente assistência', assim devendo 'ter determinado a interrupção do acto';
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça entendeu ser
'desnecessária a notificação do arguido da nomeação de defensor - ... - por ter o defensor constituído requerido a sua substituição', pelo que interpretou inconstitucionalmente os artigos 61º, nº 1, alínea e), 65º, e 67º.
Respondendo à reclamação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções junto deste Tribunal veio dizer que a mesma manifestamente carece de fundamento, visto que, pelo ora reclamante, não foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, não competindo a este Tribunal sindicar se, em face das circunstâncias concretas do caso, o defensor oficioso estava preparado, concentrado e ciente da matéria sobre a qual deveria exercer a defesa do arguido, questão que consubstancia uma concreta e específica valoração do Alto Tribunal a quo em face daquelas circunstâncias, razão pela qual a invocada violação das garantias de defesa apenas poderia - a existir - ser imputável directamente à própria decisão jurisdicional recorrida, ao que acrescia que, tendo o defensor nomeado pelo arguido pedido a sua substituição, seria perfeitamente incongruente a tese que agora o recorrente sustenta, que constitui um verdadeiro venire contra factum proprium.
Cumpre decidir.
2. A reclamação ora em apreço não belisca minimamente o que é referido na decisão dela objecto, quer no tocante à não aplicação, pela decisão intentada recorrer, da norma ínsita no artigo 65º do Código de Processo Penal, quer nas considerações de harmonia com as quais o aresto de 27 de Janeiro de
2000 não interpretou e aplicou os artigos 61º, nº 1, alínea e), e 67º, nº 1, ambos do mesmo corpo de leis, com os sentidos ou nas dimensões normativas de acordo com as quais estaria vedado ao tribunal ter em conta a complexidade dos autos e a gravidade das questões suscitadas, aquilatar se era ou não conveniente que o arguido viesse a ser assistido por um defensor que desconhecia o processo e as questões que, em dado acto processual, estavam a ser debatidas, estaria também vedado ponderar se, em face das circunstâncias concretas do caso, seria mais conveniente o adiamento da diligência, tendo em atenção que o defensor oficioso nomeado não asseguraria, tão só pelo mero exame dos autos, preparada, concentrada e eficaz defesa do arguido e, por fim, impediria que se considerasse inconveniente ou insegura a assistência ao arguido por banda de um defensor oficioso em acto respeitante a processo que apresenta complexidade e gravidade penal.
Aliás, o que se contém na peça processual consubstanciadora da reclamação sub specie até aponta inequivocamente para que se deva considerar que aquilo que reclamante deseja, como desejava aquando do recurso que almejava ser conhecido por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, é pôr em causa, tal como se referiu na decisão sumária de momento censurada, a subsunção jurídica ou, se se quiser, a inserção ao direito do caso a apreciar e decidir, o que não é cabível em recursos do jaez daquele que foi interposto, os quais não podem ter por objecto decidir de eventuais erros de julgamento decorrentes da mera subsunção ao direito ordinário.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 5 de Abril de 2000 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa