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Proc. n.º 727/96
2ª Secção
Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A SOCIEDADE F....,SA interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo que, concedendo provimento ao recurso para ele interposto por T.....,CRL, considerou que a norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº
338/88, de 28 de Setembro, consagra uma preferência absoluta na obtenção de alvará para o exercício da actividade de radiodifusão a favor dos candidatos que sejam «sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social, desde que estes sejam trabalhadores da sociedade».
2. O recurso contencioso de anulação em causa foi interposto no Supremo Tribunal Administrativo pela referida T....,CRL, do despacho de 1 de Março de 1989 dos Secretário de Estado dos Transportes Exteriores e Comunicações e Secretário de Estado Adjunto do Ministro Adjunto e da Juventude, (publicado no Diário da República, 2ª série, de 6 de Março de 1989), pelo qual foi indeferida a pretensão daquela cooperativa na obtenção de um alvará para o exercício da actividade radiofónica, na sequência de candidatura por ela apresentada para esse efeito no concurso público para atribuição de seis frequências disponíveis no concelho de Lisboa.
A T....,CRL entendeu, então, que ocorreu vício de violação de lei – artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 338/88, de 28 de Setembro e artigo
10º, nº 1, alínea b), do regulamento do concurso em causa -, por não ter sido considerada a sua vantagem na condição geral de preferência constante daquelas normas, consistente no facto de as candidaturas serem apresentadas por sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social, desde que seus trabalhadores.
Impugnou, por isso, a colocação à sua frente, no concurso em causa, de cinco entidades, entre as quais a mencionada SOCIEDADE F...,SA.
3. Por acórdão de 21 de Maio de 1992, o STA, considerando que a norma do artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 338/88, de 28 de Setembro, «numa interpretação consentânea com a Constituição, se limitou a conferir uma preferência relativa, estabelecendo um critério de desempate relativamente às candidaturas que se encontram em igualdade de condições verificada face aos projectos apresentados», negou provimento ao recurso.
Dessa decisão interpôs a referida cooperativa recurso para o Pleno do STA. A recorrida SOCIEDADE F.....,SA suscitou, nas suas alegações para aquele Pleno, a questão da inconstitucionalidade do artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 338/88, se interpretado como concedendo uma preferência absoluta, por violação do artigo 13º da Constituição.
4. Considerou o Pleno daquele Supremo Tribunal, na decisão de que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade: Ora, o legislador ao escrever no preâmbulo do citado DL nº 338/88 que 'De salientar ainda a preferência que é dada na atribuição de alvarás de licenciamento às sociedades constituídas maioritariamente por profissionais da comunicação social' teve em mente privilegiar estas sociedades, permitindo que fiquem sempre à frente das outras sociedades cujos sócios maioritários não sejam profissionais de comunicação social. Para a sua prossecução deste seu
'desideratum' partiu o legislador da consideração que os profissionais de comunicação social estão à partida melhor apetrechados profissionalmente para desempenharem a tarefa da informação e da formação do público em detrimento de candidaturas perspectivadas essencialmente no plano de meros interesses económicos, o que de forma alguma afronta os fins últimos da actividade radiofónica plasmados na Lei nº 87/88, de 30 de Julho, nem o princípio constitucional da liberdade de escolha de profissão, actualmente prevista no art. 47º da Lei Fundamental. Daí que o legislador só reconhecendo a preferência absoluta às sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social seria coerente com a intenção manifestada no preâmbulo do DL nº 338/88.
(...) Efectivamente, concorrendo sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social com sociedades não constituídas por estes profissionais, estas são preteridas por aquelas. Verificando-se só candidaturas de sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social a sua selecção será feita em conformidade com o critério de preferência consagrado no nº 3 do mesmo artigo.
(...) A tese a que se adere não viola de forma alguma o princípio da igualdade dos cidadãos previsto no art. 13º da Constituição da República, pois o que se considera atentatório deste princípio e do da livre escolha de profissão, a que se refere o citado art. 47º do mesmo diploma, é, como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, 'a concessão de prioridades na atribuição de licenças aos profissionais sindicalizados, quando essas licenças proporcionam directamente o exercício da profissão'. Esta a realidade sobre a qual se debruçou o Ac. do Tribunal Constitucional citado no aresto recorrido que não a do caso 'subjudicio' em que não está em causa o acesso ao exercício de uma profissão, 'mas antes a gestão do espectro radioeléctrico que faz parte integrante do domínio público e, consequentemente deve ser condicionada a considerações de interesse geral, que poderão ser restritivas relativamente a outros interesses ou direitos de cidadãos. Por outro lado, as preferências previstas no DL nº 388/88 não vedam aos operadores privados ou a quaisquer interessados na atribuição de alvarás de radiodifusão o exercício das profissões relacionadas com a comunicação social, sendo certo que não é aquele alvará que confere o título profissional ou autoriza o exercício da profissão. O alvará apenas possibilita o exercício da actividade de radiodifusão que, profissionalmente, deverá ser realizada por todos aqueles que os titulares entendam contratar em termos e condições que não se distinguem da oferta de emprego em qualquer outra actividade laboral' – citado parecer.
5. A recorrente interpôs, assim, o recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação da questão da inconstitucionalidade da norma constante da primeira parte do artigo
7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 338/88, de 29 de Setembro, por violação do artigo 13º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Já neste Tribunal, apresentou alegações, que concluiu pela forma seguinte:
(...) Conclui-se do exposto que a preferência legalmente consagrada na 1ª parte da alínea b) do nº 1 do artigo 7º, nº, alínea b), do Decreto-Lei nº
338/88, de 28 de Setembro, viola o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, por instituir uma distinção subjectiva discriminatória, mediante a atribuição de um privilégio de base corporativa a uma categoria de pessoas, beneficiando uma classe profissional sem qualquer fundamento materialmente relevante, sem que qualquer interesse público o justifique, e assentando em motivos constitucionalmente impróprios.
As entidades recorridas não apresentaram alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
6. A norma em causa é a seguinte:
1 – Constituem condições gerais de preferência na obtenção de alvará para o exercício da actividade de radiodifusão:
[a) A não titularidade, quer directa quer indirecta, de outro alvará para o exercício da mesma actividade;] b) O facto de as candidaturas serem apresentadas por sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social, desde que estes sejam trabalhadores da sociedade, [ou por sociedades proprietárias de jornais de expansão regional, desde que constituídas há pelo menos três anos].
Transcrevem-se ainda os restantes números daquela disposição, a fim de permitir uma melhor compreensão da questão:
2 – As condições gerais de preferência estabelecidas na Segunda parte da alínea b) do número anterior apenas se verificam na atribuição de alvarás para o exercício da actividade de radiodifusão em emissores de cobertura local cuja frequência abranja a zona onde a sociedade tenha a respectiva sede.
3 – Sempre que haja vários candidatos em igualdade de circunstâncias, preferirão sobre os demais aqueles que: a. Possuam sede na área geográfica onde pretendem exercer a actividade de radiodifusão; b. Apresentem projectos de exploração que possuam maior qualidade técnica e maior grau de profissionalismo e relativamente aos quais seja demonstrada maior potencialidade económica e financeira, designadamente no que respeita às infra-estruturas e aos equipamentos previstos; c. Ocupem maior tempo de emissão com programas culturais, formativos e informativos; d. Emitam durante um maior número de horas.
7. Pois bem, o Pleno do STA interpretou a norma da primeira parte do artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 338/88, no sentido de esta reconhecer uma preferência absoluta às sociedades constituídas maioritariamente por profissionais de comunicação social, desde que estes sejam trabalhadores da sociedade.
Ora, esta interpretação mostra-se ofensiva do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
O princípio da igualdade, como é entendimento uniforme deste Tribunal, obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impedindo qualquer diferenciação de tratamento, exclui a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, proíbe as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna, desde logo, que ocorra uma concreta e efectiva situação de diferenciação ou discriminação, só então havendo que indagar da existência de eventual fundamento material para tal discriminação: é que a inexistência de uma qualquer discriminação ou diferenciação de tratamentos afasta, liminarmente, a possibilidade de qualquer ofensa do referido princípio da igualdade.
De resto, como se viu, não está o legislador ordinário impedido de estabelecer distinções de tratamento, antes goza de razoável margem de liberdade para o efeito, desde que consubstanciada uma realidade 'desigual' justificativa; o que não pode é estabelecer discriminações injustificadas do ponto de vista dos princípios e normas constitucionais.
8. Ora, é inquestionável que a norma em causa cria uma situação diferenciada ao dar preferência àquelas sociedades constituídas maioritariamente por profissionais da comunicação social, seus trabalhadores. E trata-se de uma preferência absoluta, como concluíu o Pleno do STA. O que há que determinar, então, é se essa preferência, assim atribuída, constitui um arbítrio, uma irrazoabilidade, destituída de fundamento material.
Por um lado, atente-se que, como decorre da própria natureza de qualquer preferência, esta sempre se destina a colocar os seus destinatários numa posição de vantagem, logo, de desigualdade, perante outros. E, in casu, tal vantagem só poderá ter a sua justificação no facto de o legislador considerar que os projectos apresentados por sociedades compostas maioritariamente por aqueles profissionais possuirão, em regra, melhores condições para prosseguir os interesses públicos atinentes à comunicação social; como se refere no parecer do Mº Pº, no recurso para o Pleno do STA, aquela atribuição de preferência «revela a preocupação do legislador em assegurar que os alvarás sejam concedidos preferentemente a candidaturas que possam garantir à partida um maior grau de profissionalismo, em detrimento portanto de candidaturas que se perspectivem essencialmente no plano dos interesses económicos. Tal opção legislativa não se mostra discordante dos fins genéricos específicos da actividade da radiodifusão(...)». Esta diferenciação não se mostraria, assim infundada ou arbitrária, pelo que não comportaria, em si, qualquer violação do princípio da igualdade.
9. Já, todavia, no confronto com o nº 3 da mesma disposição legal, a questão assume outro contorno. É que, tratando-se, como se trata, de uma preferência absoluta, dela decorre que, mesmo perante outros projectos que possuam «maior qualidade técnica e maior grau de profissionalismo» ou ainda
«maior tempo de emissão com programas culturais, formativos e informativos»
(cfr. alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 7º), aqueles projectos, sendo embora de menor qualidade, sempre preferirão mesmo sobre estes, pelo facto de serem apresentados por sociedades compostas maioritariamente por profissionais da comunicação social.
Ocorre, então, uma situação claramente contraditória com o próprio fundamento material da estabelecida preferência. Ou seja, de modo totalmente incongruente, por via dessa mesma preferência, vêm-se a frustrar os objectivos que prossegue e os fundamentos que a justificam.
Assim sendo, a norma da primeira parte da alínea b) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 338/88, de 28 de Setembro, em que se atribui preferência na obtenção de alvará para o exercício da actividade de radiodifusão
às candidaturas apresentadas por sociedades constituídas maioritariamente por profissionais da comunicação social, desde que estes sejam trabalhadores da sociedade, quando interpretada no sentido de aí se conceder uma preferência absoluta, estabelece uma diferenciação irrazoável, que se traduz – na falta do
único fundamento material que a poderia justificar – num arbitrário privilégio de natureza exclusivamente corporativa, incompatível com o princípio da igualdade.
III – DECISÃO
10. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma constante da primeira parte da alínea b) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 338/88, em que se atribui preferência na obtenção de alvará para o exercício da actividade de radiodifusão
às candidaturas apresentadas por sociedades constituídas maioritariamente por profissionais da comunicação social, desde que estes sejam trabalhadores da sociedade, quando interpretada no sentido de aí se conceder uma preferência absoluta, por violação do princípio da igualdade, consignado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;
b) conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida no tocante ao nela decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 17 de Novembro de 1998 Luis Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa