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Processo nº 708/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.1.- J..., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão da 2ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, de 16 de Outubro de 1996, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido no artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência
à Tabela I-A anexa, na pena de vinte e três meses de prisão, e como autor material de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido no artigo
40º, nº 1, do mesmo diploma, na pena de quarenta e cinco dias de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de vinte e quatro meses de prisão.
Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), defendendo que, atentos os factos, a sua gravidade e circunstâncias, nomeadamente a situação familiar e laboral, e, ainda, as finalidades da punição, devem as penas de prisão ser reduzidas ao mínimo e suspensas na sua execução, tendo a decisão recorrida violado as normas dos artigos 25º e 40º daquele Decreto-Lei nº
15/93 e, ainda, as dos artigos 40º, 50º e 70º e seguintes do Código Penal.
1.2.- O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Fevereiro de 1997, rejeitou o recurso, por manifestamente improcedente, tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal (CPP) - seja, no juízo alcançado quanto à medida da pena, seja pela inverificação dos pressupostos de suspensão da sua execução.
Observou-se, no aresto, a este respeito, além do mais:
'No juízo sobre as penas parcelares concretas e bem assim no seu cúmulo jurídico, o tribunal não podia deixar de atender, como atendeu, à multiplicidade de factores agravativos e atenuativos, bem como às finalidades da punição, tendo presente o que se dispunha no artigo 72º do CP de 1982 (hoje 71º do CP revisto).
O tipo de droga (heroína), a sua quantidade em conexão com as quantidades pressupostas na norma incriminadora, a existência de uma balança própria para pesar droga e a sua utilização para esse efeito, o facto de o arguido se vir dedicando desde data não apurada à cedência de droga a terceiros, de ter antecedentes criminais e de apenas haver confessado o consumo de drogas, são circunstâncias que, em conjugação com a toxicodependência, a existência de antecedentes criminais não reportados a estupefacientes e a sua situação familiar e social, não permitem, de forma alguma, considerar as penas parcelares, ou a pena única, desajustadas ao juízo de ponderação de todos esses factores, em conexão com a moldura penal e os fins de punição.'
E, depois de considerar ser, assim, manifesto que a audiência de julgamento não implicaria qualquer achega no sentido da diminuição das penas, não se justificando o prosseguimento dos autos, acrescenta que o mesmo se pode dizer quanto à suspensão da execução dessas penas:
'[...]Não está em causa apenas a confissão do arguido, que eventualmente constitui pouco valor, mas todo o conjunto de índices que levam à conclusão de que as finalidades da punição não ficam acauteladas com a pena de substituição da
prisão, ou seja a pena de suspensão de execução de prisão. Sobreleva a necessidade de defender a integridade do ordenamento jurídico contra violações que o atingem de forma não nociva, como é o caso do tráfico de estupefacientes. O mínimo exigido por essa prevenção geral não fica acautelado com pena não detentiva, como, aliás, decorre da prática jurisprudencial e é manifesto em face dos factos provados [...].'
1.3.- Requereu o interessado a aclaração do aresto, nos termos do nº 1 do artigo 669º do Código de Processo Civil, no que ao artigo 50º do CPP respeita, alicerçando, assim, a sua fundamentação:
'No artigo 50º do Código Penal o legislador entendeu considerar como pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão a «personalidade do agente», as «condições da sua vida», a «sua conduta anterior e posterior ao crime», as «circunstâncias deste», se, atendendo-se a tais pressupostos seja de
«concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
O recorrente não compreende como todos estes pressupostos podem ser desprezados só por não ter confessado totalmente os factos por que vinha acusado, vislumbrando nessa interpretação dada a tal norma pelo aresto aclarando uma autêntica interpretação 'ab-rogante', de todo inadmissível no ramo de direito em apreço, no qual impera o princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa [...]
Sobre tal questão, situada no âmbito da interpretação e integração da lei penal, cumpre ao recorrente referir que, em sede de circunstâncias atenuantes, poder-se-á dar relevância a questões não enumeradas na lei, todavia, já não é plausível dar importância a circunstâncias que não estão consagradas na lei penal, em detrimento daquelas que o legislador consagra, principalmente quando a solução decorrente de tal processamento se mostra, como no caso em apreço, prejudicial para o arguido.
De resto, em Direito Penal, não sendo o arguido obrigado a dizer a verdade, tanto mais que não presta qualquer juramento, ao contrário das testemunhas, também não poderá ser prejudicado, como é o caso em apreço, por não dizer a verdade, leia-se «por não confessar» os factos que lhe são imputados, ou, dito de outra forma, por a sua versão dos factos não corresponder à 'verdade processual'.
Por último, cumpre ainda ao recorrente dizer que a interpretação dada por esse Supremo Tribunal à norma do nº 1 do artigo 50º do Código Penal, a qual atribui relevância ao elemento confissão, viola manifestamente a norma constante do nº 1 do artigo 32º, já que o direito a não dizer a verdade, ou até a de não prestar declarações, são corolários das garantias de defesa do arguido em processo penal consagradas no aludido preceito.'
1.4.- O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Abril de 1997, reiterou a anteriormente decidido, confirmando-o.
Aí se escreveu, nomeadamente:
'As penas concretas são manifestamente ajustadas a todo o circunstancialismo operado em confronto com o que se dispõe no artigo 71º do Código Penal, bem como nos nºs. 1 e 2 do artigo 40º do mesmo diploma.
Também se vê como manifesto não poder o tribunal lançar mão da suspensão de execução da pena, com seus pressupostos no artigo 50º daquele Código, uma vez que, perante os elementos acima referidos, se não pode concluir, de forma alguma, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão sejam forma adequada e suficiente de realizar as finalidades da punição, ou seja que protejam os bens jurídicos (prevenção geral) e que reintegrem o agente na sociedade (prevenção especial).
No juízo que agora se faz, é manifesto que uma audiência oral não pode trazer contributo que o abale.
Pelo exposto, por manifesta improcedência, tendo presente o que se dispõe no artigo 420º, nºs, 1 e 2 do CP Penal, rejeitam o recurso.'
Mantendo-se inconformado, o arguido atravessou novo requerimento à luz do invocado no nº 1 do artigo 669º do CPC, pedindo a aclaração do decidido.
E ponderou-se, a propósito:
'Lendo o douto acórdão aclarando, quer parecer ao recorrente que se trata, em termos materiais, de um acórdão que nega provimento ao recurso por si interposto e não, ao contrário do que se afirma, um acórdão onde não se toma conhecimento do recurso. Se não vejamos,
São os seguintes os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão (cfr. artigo 50º do Código Penal);
a) A «personalidade do agente»;
b) As «condições da sua vida»;
c) A «sua conduta anterior e posterior ao crime»;
d) As «circunstâncias deste».
Acontece que, atendendo a tais pressupostos, os quais estão verificados no caso 'sub judice', tudo leva a crer «que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» e, por conseguinte, o instrumento da suspensão de execução da pena deverá ser utilizado no caso do recorrente.
Todavia, tal questão, pela sua complexidade, apenas submetida a julgamento poderia ser analisada ponderadamente, o que não aconteceu devido ao facto desse Venerando Supremo Tribunal se ter socorrido da rejeição do recurso quando deveria ter levado a lide a julgamento.'
1.5.- O Supremo Tribunal de Justiça, em novo acórdão, de 2 de Julho de 1997, indeferiu, porém, o pedido de aclaração, constatando não existirem obscuridades ou ambiguidades a necessitarem de correcção ou esclarecimento, mas sim manifesta discordância com a decisão.
Interpôs, então, o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de
15 de Novembro.
No entendimento por si professado, a norma do artigo
50º, nº 1, do Código Penal, no sentido que lhe foi dado pelo Supremo,
'desaplicou/violou' a norma do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República
(CR).
O recurso não foi, no entanto, admitido pelo Conselheiro relator, no seu despacho de 24 de Outubro de 1997.
Aqui, considera-se não ter ocorrido recusa de aplicação da norma do artigo 50º, nº 1, com fundamento em inconstitucionalidade, 'antes a aplicou [o Supremo] dentro da sua previsão e estatuição, em conexão com os factos provados. Se o resultado dessa aplicação não atingiu a finalidade pretendida pelo recorrente é situação que não interessa ao problema de constitucionalidade/inconstitucionalidade'.
Aliás, o despacho vai mais longe para concluir que, mesmo com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, o recurso não mereceria melhor sorte, uma vez que não foi suscitada no processo (ou melhor, durante o processo) a questão de inconstitucionalidade daquela norma.
2.- É deste despacho que o arguido reclama para o Tribunal Constitucional, de acordo com o nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, com o fundamento da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 50º do Código Penal quando interpretada - como in casu - no sentido da exigência da confissão integral do arguido para viabilizar a suspensão da execução da pena.
O Ministério Público, ouvido nos termos do nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, pronunciou-se no sentido da 'manifesta improcedência' da reclamação, por inexistirem os pressupostos do tipo de recurso de constitucionalidade baseado na alínea a) do nº 1 do citado artigo 70º: o Supremo (em sua opinião) não recusou aplicar aquela norma com fundamento em inconstitucionalidade, 'limitando-se antes a realizar uma determinada interpretação e valoração do nela estatuído, que não satisfaz o arguido'.
Correram-se os demais vistos legais, cumprindo decidir.
3.- Toda a carga argumentativa do reclamante assenta na norma do artigo 50º do Código Penal que dispõe, nomeadamente, àcerca dos pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão.
E, nessa perspectiva, encara fundamentalmente a interpretação que imputa ao Supremo segundo a qual, 'senão expressa, ao menos tacitamente', se tem por impeditiva da suspensão quando não existe confissão completa dos factos, o que, a seu ver, significa verdadeira recusa de aplicação daquela norma.
Obviamente não lhe assiste razão.
Desde logo, poder-se-ia observar não ser exacta a asserção em que se apoia: o Supremo nunca disse, no caso concreto, que recusava o instituto da suspensão por não ter ocorrido confissão completa dos factos
(como decorre inequivocamente das passagens transcritas das suas decisões). De resto, a tese que pretende impugnar não só não foi, expressa ou tacitamente acolhida pelo Supremo, como não passa de mero argumento adjuvante utilizado nesse Alto Tribunal pelo Ministério Público quando alude à confissão 'enquanto suporte importante da suspensão da execução da pena', só dispensável em circunstâncias excepcionais que, no caso concreto, em sua opinião, não se verificariam. O que o tribunal a quo ponderou a este respeito é bem diferente: após considerar que circunstâncias como a de ter o agente contribuído de forma importante para a descoberta da verdade, ou a da confissão livre, total ou parcial, devem, indubitavelmente, ser consideradas, pelo menos na medida em que excedam ou não se confundam com mera 'táctica processual', observa inequivocamente que não foi valorada 'contra o arguido' a circunstância da confissão ou não confissão, 'pois se apreende facilmente que as razões da decisão se apresentam substanciadas em circunstâncias do caso que nada têm a ver com a confissão/não confissão'.
Na verdade - o que se consigna em segundo momento - o que há, de modo patente, é um juízo de valoração com o qual se não concorda; de nenhum modo, uma desaplicação normativa, mesmo que considerada esta em determinada dimensão interpretativa.
Com efeito, não se surpreende, na decisão recorrida, qualquer recusa, mesmo que implícita, da norma do nº 1 do artigo 50º do Código Penal - sendo certo, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, que bastará que a recusa se contenha implicitamente na fundamentação da decisão recorrida,
'em termos de se haver de concluir que o conteúdo estatuidor de uma dada norma não foi acolhido pelo julgador por força do seu desalinhamento constitucional', como se exprimiu o acórdão nº 361/97, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1997, que se cita por todos.
Tão pouco se retira, do discurso da decisão, sequer, a aparência de um juízo de inconstitucionalidade.
A violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da CR, a ter existido - a sua 'desaplicação' como o reclamante, a certo passo, a qualifica - poderia, quando muito, a verificarem-se os respectivos pressupostos, proporcionar a via do recurso com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, dando de barato que aquela norma do nº 1 do artigo 50º do Código Penal foi interpretada de modo a afectar as garantias constitucionais da defesa no processo criminal. No entanto, mesmo a admitir ser o mesmo o fundamento de desvalor constitucional ou, de qualquer modo, abrangido nos poderes de cognição do Tribunal (cfr. artigo 79º-C da Lei nº 28/82), sempre se representariam inultrapassáveis os requisitos formais do recurso de constitucionalidade, impeditivos de entendimento convolatório, assente que se trata de alegada recusa de aplicação normativa e não de interpretação normativa eventualmente desconforme com a Constituição.
4.- Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Maio de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida