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Proc.nº 235/98
3ª Secção Relator: Cons.Sousa e Brito
Acordam no Tribunal Constitucional : I Relatório
1. Nos autos de instrução criminal em que é arguido J. C. e que correm no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, foi proferida decisão que recusou a aplicação do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro - que alterou o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que define o regime jurídico do cheque sem provisão - com fundamento na inconstitucionalidade material do mesmo Decreto-Lei e que ordenou, por isso, o arquivamento dos autos, no entendimento de que o regime anterior - isto é, o do Decreto-Lei nº 454/91 sem a alteração - foi revogado. Desta decisão interpôs recurso obrigatório o Ministério Público no mesmo Tribunal, ao abrigo do artigo 280º, nº 1 alínea a) e nº 3 da Constituição e do artigo 70º, nº 1 alínea a) e 72º nº 3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
2. Do exame dos autos resulta que :
- o arguido foi acusado dos crimes do artigo 11º, nº 1, alínea c) do Decreto-Lei nº 454/91 ('proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue') e do artigo 313º, nº 1 do Código Penal de 1982 (burla);
- o arguido requereu a abertura da instrução, afirmando: que os três cheques a que se refere a queixa e que estão datados de 5 de Novembro de 1993 foram entregues sem data em 1992, como caução da mercadoria, e pós-datados pelo tomador; que entregara igualmente ao tomador letras em garantia do pagamento; que posteriormente pretendeu devolver a mercadoria mediante a devolução dos cheques; que não houvera, por isso, intenção enganosa nem prejuízo, sem, contudo, negar a proibição de pagamento ao banco sacado;
- a decisão recorrida foi proferida a 6 de Fevereiro de 1998, antes de terminada a instrução, 'aderindo inteiramente às razões enunciadas' no 'acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 819, de 20 de Janeiro de 1998, ainda não transitado nem publicado', e como aplicação da decisão mais geral 'de não aplicar o Decreto-Lei nº 316/97 aos processos pendentes de emissão de cheque sem provisão', nos termos do disposto no artigo 204º, nº 3 da Constituição, porque tal Decreto-Lei seria
'violador dos artigos 8º, nº 1 e 27º, nºs 1 e 2 da Constituição'.
3. As razões invocadas para esta decisão são as seguintes :
'Configura o legislador no novo regime, uma relação de índole eminentemente civilística, em que, contrariamente ao que acontece no âmbito do direito civil onde as partes contratantes estão em pé de igualdade, o devedor, o emitente do cheque é coagido a cumprir a sua obrigação pela intervenção de um terceiro - o banco - entidade, no fundo, estranha à relação legitimadora da emissão do cheque, sob pena de lhe serem aplicadas as sanções estabelecidas na lei. A propósito deste novo Decreto-Lei nº 316/97, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 819, datado de 20 de Janeiro, de 1998, ainda não transitado nem publicado, que aquele é insusceptível de ser aplicado pelos Tribunais, por enfermar de inconstitucionalidade material, concluindo pela descriminalização do tipo legal, emissão de cheque sem provisão. Refere-se naquele Acórdão que não obstante a terminologia utilizada pelo Decreto-Lei em análise, a realidade a que nele se chama crime de emissão de cheque sem provisão, mais não é do que uma autêntica prisão por dívidas, destinada a sancionar criminalmente a falta de cumprimento de uma obrigação pecuniária dentro de um prazo de moratória legal concedido ao devedor. Ora a prisão por dívidas, como decorre da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, é inadmissível na ordem jurídica portuguesa'.
A decisão de não aplicar o regime do Decreto-Lei nº
316/97 foi assim fundamentada :
' Refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, a este respeito que, 'a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não determina a repristinação automática da norma por ela revogada, especialmente quando aquela vem declaradamente, proceder à substituição de um regime (...) por outro, considerado mais perfeito e mais adequado à realidade jurídica e social do país.' Conclui-se ali que 'não se pode dizer que o reconhecimento da apontada inconstitucionalidade possa conduzir à manutenção do regime punitivo anterior, constante da norma que a lei nova veio substituir.'
Assim, por estar ferido da apontada inconstitucionalidade, recusamos a aplicação do DL 316/97.
Porque o anterior regime foi revogado, não há punição legal para crime de emissão de cheque sem provisão'.
4. Em face da não indicação na decisão recorrida das normas que se pretendem violadas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da integral remissão para o acórdão nº 819, de 20 de Janeiro de 1998, do Supremo Tribunal de Justiça, convirá transcrever as passagens decisivas da argumentação de tal acórdão (entretanto publicado em Actualidade Jurídica, I, nº 10, pp.8-10)
:
'[...] o mencionado Decreto-Lei nº 454/91 foi objecto de uma revisão, operada pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, e entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1998, e, por ela, embora se continue a prever como crime de emissão de cheque sem provisão a proibição, à instituição sacada, de pagamento de um cheque entregue pelo próprio ou por terceiro (alínea b) do artigo 11º, na nova redacção), devemos concluir pela inconsti-tucionalidade actual dessa previsão criminal, como se passa a demonstrar.
[...] O novo regime instituído pela alteração ao Decreto-Lei nº 454/91, no entanto, eliminou por completo toda e qualquer vertente relacionada com o cheque como meio de pagamento abstracto, como moeda privada emitida por particulares, pois passou a exigir que, na queixa crime, essencial para que haja procedimento, ou, eventualmente, um pouco mais tarde, se façam constar os dados respeitantes à relação jurídica subjacente (artigo 11-A nºs 2 e 3), e se criou um esquema coercivo civilístico, destinado a forçar o pagamento, pelo devedor, da importância do cheque que não tenha provisão, num determinado prazo contado de notificação obrigatória do seu emitente pela entidade bancária sacada, com a consequência da possibilidade da aplicação de uma pena especialmente atenuada se o pagamento ocorrer depois desse prazo mas até ao início da audiência de julgamento em primeira instância (artigos 1º-A, e 11 nºs 5 e 6), ao mesmo tempo que se despenaliza expressamente a situação que se traduza na emissão de um cheque sem provisão pré-datado (ou, segundo outra terminologia que não parece ser a mais correcta, um cheque 'pós-datado'), isto é de um cheque emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador (artigo 11º, nº 3). Ao mesmo tempo, o referido diploma vem considerar como criminosa (crime de emissão de cheque sem provisão) a conduta de quem endossar um cheque que tenha recebido e que tenha conhecimento das causas de não pagamento integral que fazem com que o acto praticado pelo sacador possa ser qualificado como ilícito penal
(artigo 11º, nº 1, alínea c). Dito de forma mais explícita, para a nova versão do diploma em causa, o legislador só considera como susceptível de sujeição à lei penal a emissão e entrega dum cheque que se destine ao pagamento de uma dívida actual, baseada num negócio jurídico, de cujos termos e cláusulas deve ser dada o conhecimento ao Tribunal, com a queixa, ou posteriormente, mas sempre antes da efectivação de diligências de apuramento dos factos. Nesta medida, e não obstante a terminologia utilizada pelo Decreto-Lei em análise, a realidade a que nele se chama de 'crime de emissão de cheque sem provisão' mais não é do que uma autêntica 'prisão por dívidas', destinada a sancionar criminalmente a falta de cumprimento de uma obrigação pecuniária dentro de um prazo de moratória legal concedido ao devedor. Mas, como prisão por dívida, corresponde a um instituto que, tradicionalmente, e como o Tribunal Constitucional já frisou a propósito da antiga conversão em prisão da falta de pagamento do imposto de justiça devido pelo arguido condenado, é vedado pela Constituição, por se traduzir numa privação da liberdade baseada num facto repudiado pelos princípios do direito internacional geral ocidental (cf. o artº 1º do Protocolo Adicional nº 4, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16.9.63). Por isso, as disposições em causa são violadoras das normas do artigo 8º nº 1, e, por compreensão lógica, do artigo 27º nºs 1 e 2, da Constituição e, como tal, não podem ser aplicadas pelos Tribunais, nos termos do seu artigo 204º. Como a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não determina a repristinação automática da norma por ela revogada, especialmente quando aquela vem, declaradamente, proceder à substituição de um regime regulador de um instituto por outro, considerado mais perfeito e mais adequado à realidade jurídica e social do País, não se pode dizer que o reconhecimento da apontada inconstitucionalidade possa conduzir à manutenção do regime punitivo anterior, constante da norma que a lei nova veio substituir. Desta forma, e em harmonia com o exposto, e por força do preceito do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, recusam a aplicação do regime resultante da redacção do Decreto-Lei 454/91 operada pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, por enfermar da apontada inconstitucionalidade material, e consideram descriminalizado o crime de emissão de cheque sem provisão por cuja comissão o arguido foi condenado' [...].
5. Ao abrigo do disposto no artigo 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional foi determinado que o julgamento do presente recurso se faça com a intervenção do plenário.
O Procurador Geral Adjunto neste Tribunal alegou, tendo formulado as seguintes conclusões :
' 1º - O bem jurídico tutelado com a incriminação do cheque sem provisão continua a ser - mesmo após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
316/97, de 19 de Novembro - a confiança na circulação do cheque, dada a sua função como meio de pagamento, a qual é afectada sempre que o emitente, com intuito enganoso e violando o princípio da boa fé no comércio jurídico, cria no tomador do cheque a convicção de que detém fundos suficientes na instituição sacada e de que o cheque será pontualmente pago, bem sabendo que isso não corresponde à realidade.
2º - A circunstância de - como decorrência do relevo atribuído, como elemento do tipo, ao prejuízo patrimonial que deve resultar da emissão do cheque sem provisão - o nº 3 do artigo 11º daquele diploma legal ter afastado explicitamente a incriminação nos cheques pós-datados não significa obviamente que o legislador haja passado a tutelar criminalmente o cumprimento da relação causal subjacente à emissão de cheque, mas tão-somente que esta deve ser chamada
à colação, com vista a aferir da existência do referido intuito enganoso do emitente.
3º - A relevância conferida a tal relação subjacente - e, como factos dela indiciários ou instrumentais, aos elementos referidos no nº 2 do artigo 11º-A, que o denunciante tem o ónus de facultar ao tribunal - visa, pois, em exclusivo, apurar do concreto circunstancialismo que rodeou a emissão do cheque, com vista a aferir do intuito enganoso do sacador, não representando qualquer forma de
'prisão por dívidas', constitucionalmente proscrita.
4º - A relevância conferida pelo artigo 1º-A e pelos nºs 5 e 6 do citado artigo
11º ao pagamento do cheque e real compensação do dano causado com a sua emissão, no que se reporta à extinção ou atenuação da responsabilidade criminal do agente, não implica que o legislador haja criado um esquema coercivo visando o cumprimento forçado de uma obrigação pecuniária civil, traduzindo tão-somente um reflexo da natureza do crime como patrimonial (e não como mero crime formal, de perigo), sendo adequada e proporcional aos bens jurídicos tutelados.
5º - Termos em que deverá julgar-se procedente o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade das normas constantes dos artigos
1º-A, 11º, 11º-A, nº 2, e, consequencialmente das demais disposições, nomeadamente de índole procedimental, que integram o regime penal do cheque, regulado pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro.'
Cumpre decidir. II Fundamentação
6. Objecto do recurso
Importa, antes de mais, averiguar qual é o objecto do presente recurso.
Dispõe o nº 6 do artigo 280º da Constituição que 'os recursos para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade', esclarecendo o nº 1 do artigo 71º da Lei nº 28/82 que se trata de questão 'suscitada'. Qual é a questão de inconstitucionalidade suscitada, se o requerimento inicial diz que a decisão recorrida 'declarou materialmente inconstitucional o Decreto-Lei nº 316/97',
'recusando, por isso, a sua aplicação', e não identifica as normas cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade? De facto, a decisão recorrida apenas cita uma frase do Supremo onde se refere, por lapso, o próprio juízo de inconstitucionalidade como uma 'declaração de inconstitucionalidade', num contexto em que se discute a
repristinação do direito anterior, a qual só pode resultar de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reservada ao Tribunal Constitucional (artigo 282º, nº 1 da Constituição). Temos que, por um lado, o Tribunal recorrido, com fundamento na violação dos artigos 8º, nº 1 e 27º, nºs 1 e 2 da Constituição 'decide não aplicar o Decreto-Lei aos casos pendentes de emissão de cheques sem provisão'. Questiona-se assim a inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto-Lei nº 316/97. Mas logo a seguir, com fundamento na
'inconstitucionalidade apontada', diz-se que 'recusamos a aplicação do Decreto-Lei nº 316/97', com referência ao caso sub judice. Ora só são objecto possível de processo de fiscalização concreta de constitucionalidade as questões de inconstitucionalidade de normas aplicáveis ao caso sub judice.
As normas do 'Regime Jurídico do Cheque sem Provisão', que foi publicado em anexo ao Decreto-Lei nº 454/91 com as alterações introduzidas pelo novo diploma, agrupam-se em quatro capítulos, que se intitulam: capítulo I - Das restrições ao uso do cheque; capítulo II - Obrigatoriedade de pagamento; Capítulo III - Regime Penal do cheque e capítulo IV - Contra-ordenações. É, desde logo, óbvio, que só o capítulo III, sobre o regime penal do cheque, é relevante para o processo penal em causa.
Por outro lado, não tendo a decisão recorrida identificado as normas eventualmente aplicáveis ao caso, e estando o processo em fase de instrução, só nos resta identificar as normas invocadas na acusação ou eventualmente aplicáveis aos factos relevantes contrapostos pelo arguido, conforme atrás referido (supra, nº 2), e relacioná-las com as normas invocadas na decisão recorrida, nela mesma ou no acórdão do Supremo para que remete, como razões da inconstitucionalidade de todo o regime. Assim, a acusação invocou o preenchimento do tipo de crime da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, isto é, ter o arguido proibido à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, que corresponde a uma das formas de preenchimento do tipo de crime da alínea b) ('proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque') do nº 1 do artigo 11º, na redacção do Decreto-Lei nº 316/97. O arguido invocou terem os cheques sido pós-datados pelo tomador, o que tornaria aplicável o novo nº 3 do mesmo artigo 11º, que delimita negativamente os tipos de crime do nº 1, considerando este nº não aplicável 'quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador'. Invocou também tratar-se de um cheque como caução de mercadoria recebida, para garantia de cujo eventual pagamento teria entregue letras ao tomador, pelo que nunca teria havido intenção de pagar através do cheque, pelo que este não foi 'para pagamento', excluindo assim tratar-se de cheque previsto nos actuais nºs 1 e 2 do artigo 11º por falta de dolo e por falta de prejuízo patrimonial. Finalmente os artigos do actual Decreto-Lei nº 316/97 que são referidos na decisão e no acórdão como razões da inconstitucionalidade do regime são, além da já referida alínea b) do nº 11 na nova redacção, a alínea c) do mesmo nº 1 e ainda a própria alínea a), na medida em que exige o fim de pagamento, além das normas relativas à exigência da indicação e prova dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão
(artigo 11º-A, nºs 2 e 3) e à extinção de responsabilidade criminal por regularização da situação e à atenuação especial da mesma responsabilidade
(artigo nºs 5º e 6º) com referência ao artigo 1º-A). Temos, portanto, que todos os preceitos incriminadores (as várias alíneas do artigo 11º, nº 1, integrado pelo nº 2, dos quais as alíneas a), b) e o nº 2 podem ser relevantes na hipótese), bem como os que descrevem elementos negativos do tipo (nº 3 do artigo
11º), causas de extinção ou atenuação da responsabilidade criminal (nºs 5 e 6 do artigo 11º) ou elementos integradores da queixa, que são condição de procedibilidade (artigo 11º-A, nºs 2 e 3 e o artigo 1º-A, por remissão do nº 2) são questionados quanto à inconstitucionalidade. Assim sendo, todas as restantes normas do regime penal de cheque seriam consequencialmente inconstitucionais.
São, assim, objecto do processo as questões de inconstitucionalidade das normas dos artigos 11º, nºs 1, alíneas a) e b), 2, 3,
5, 6 e 11º-A, nºs 2 e 3 e 1º-A do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei nº 316/97 , e consequencialmente, as restantes dos artigos 11º nº 1, alínea c) e nº 4, 11º-A, nºs 1 e 4, 12º, 13º e 13-A). Bastará, pois, transcrever e discutir a seguir as primeiras : Artigo 11º Crime de emissão de cheque sem provisão
1 - Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro :
a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a 12.500$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; [...] se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se valor elevado o montante constante de cheque não pago que exceda o valor previsto no artigo
202º, alínea a), do Código Penal.
3 - O disposto no nº 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega.
5 - A responsabilidade criminal extingue-se pela regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1º-A.
6 - Se o montante do cheque for pago, com reparação do dano causado, já depois de decorrido o prazo referido no nº 5, mas até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância, a pena pode ser especialmente atenuada.
Artigo 11º-A Queixa
2 - A queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão, da data de entrega do cheque ao tomador e dos respectivos elementos de prova.
3 - Sem prejuízo de se considerar apresentada a queixa para todos os efeitos legais, designadamente o previsto no artigo 115º do Código Penal, o Ministério Público, quando falte algum dos elementos referidos no número anterior, notificará o queixoso para, no prazo de 15 dias, proceder à sua indicação.
Artigo 1º A Falta de pagamento de cheque
1 - Verificada a falta de pagamento do cheque apresentado para esse efeito, nos termos e prazos a que se refere a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, a instituição de crédito notifica o sacador para, no prazo de 30 dias consecutivos, proceder à regularização da situação.
2 - A notificação a que se refere o número anterior deve, obrigatoriamente, conter :
a) A indicação do termo do prazo e do local para a regularização da situação;
b) A advertência de que a falta de regularização da situação implica a rescisão da convenção de cheque e, consequentemente, a proibição de emitir novos cheques sobre a instituição sacada, a proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições de crédito, nos termos do disposto no artigo 3º, e a inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco.
3 - A regularização prevista no nº 1 faz-se mediante consignação em depósito ou pagamento directamente ao portador do cheque, comprovado perante a instituição de crédito sacada, do valor do cheque e dos juros moratórios calculados à taxa legal nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais.
7. Identificação das normas constitucionais relevantes para a questão de constitucionalidade
A decisão recorrida afirma que o crime de emissão de cheque sem provisão com o regime do Decreto-Lei nº 316/97 é um caso de prisão por dívidas, que viola a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Mas logo a seguir e entendendo aderir assim inteiramente às razões enunciadas no Acórdão 819 do Supremo, afirma que o Decreto-Lei 316/97 viola os artigos 8º, nº 1 e 27º, nºs 1 e 2 da Constituição. A remissão revela que não foi por lapso que se indicou como violado o nº 1 e não o nº 2 do artigo 8º, que é o que se refere às normas constantes de convenções internacionais. Com efeito, o referido Acórdão nº 819 precisa este ponto, considerando violados os 'princípios do direito internacional geral ocidental (cfr. o artigo 1º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16 de Setembro de
1963)', e considerando, 'por isso', violadas as 'normas do artigo 8º, nº 1 e, por compreensão lógica, do artigo 27º, nºs 1 e 2 da Constituição'. O artigo 8º, nº 1 não acolhe o conceito contraditório de direito internacional geral ocidental mas o de direito internacional geral, pelo que o qualificativo fica por explicar. A explicação que é sugerida pelo contexto parece ser a seguinte: a referência ao artigo 1º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia (essa sim
ocidental) é feita como argumento no sentido de que o direito internacional geral contém um princípio de conteúdo idêntico. Ora a inclusão dos direitos do homem no conteúdo do direito internacional geral é contestada politicamente por alguns países que consideram a doutrina dos direitos do homem apenas uma ideologia do ocidente. Neste contexto argumentativo, o qualificativo 'ocidental' sugere o seguinte argumento: a inclusão em Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem demonstra a pertença ao direito internacional geral para quem defender uma concepção ocidental deste direito. Este argumento só vale se se acrescentar a tese de que a Constituição consagra essa concepção que o Acórdão chamou 'ocidental' do direito internacional geral.
A invocação do artigo 1º do Protocolo Adicional nº 4 à C.E.D.H. (1963) deverá ser, em todo o caso, acompanhada da do artº 11 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), que nela se inspirou. Dispõe o artigo 1º do Protocolo nº 4 :
'Nínguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual'.
O artigo 11º do Pacto reza por sua vez:
'Ninguém pode ser aprisionado pela única razão de que não está em situação de executar uma obrigação contratual'.
Note-se que a diferença de redacção da parte final não corresponde a uma diferença dos textos originais que fazem fé ('par la seule raison qu'il n'est pas en mesure d'exécuter une obligation contractuelle',
'merely on the ground of inability to fulfil a contractual obligation').
Resulta claramente dos trabalhos preparatórios do Protocolo Adicional nº 4 que o que o artigo 1º desse Protocolo 'proíbe, porque contrário à noção de liberdade e de dignidade humanas, é privar um indivíduo da liberdade pela simples razão de que ele não teria meios materiais de cumprir as suas obrigações contratuais', e ainda que 'a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual, como seja a recusa deliberada de cumprir uma obrigação' (estas duas passagens do relatório explicativo final, a primeira, e das actas de reunião a segunda, do Comité de peritos que elaborou o Protocolo nº 4, são citadas para determinar a interpretação do artigo 1º pela decisão de 18 de Dezembro de 1971 da Comissão, sobre o pedido nº 5025/71, Yearbook of the European Convention on Human Rights, XIV, p.692, 697-8). Nestes casos, e ainda se a impossibilidade de cumprir é devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crime puníveis com prisão (assim, citando o mesmo relatório explicativo, Francis G. Jacobs, The European Convention on Human Rights, Oxford, 1975, p.183). Exemplificando, a doutrina tem considerado que não violam o artigo 1º do Protocolo as leis penais que incriminam a burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços ou a insolvência dolosa (assim, referindo disposições correspondentes do Code pénal belga, Jacques Velu, Rusen Ergec, La Convention Européenne des droits de l'homme, Bruxelles, 1990, p.315).
Há que entender que uma norma com o conteúdo da do artigo 1º do Protocolo nº 4 integra o conteúdo do direito à liberdade e à segurança do nº 1 do artigo 27º da Constituição, numa dimensão que não é abrangida pelos restantes números do artigo. Nomeadamente, o nº 2 do artigo 27º, também invocado na decisão recorrida, expressamente exclui do seu âmbito garantístico a privação de liberdade 'em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão'. Nenhuma lei penal, incluindo a que incrimina a emissão de cheque sem provisão, e é questionada no caso, jamais violará o nº 2 do artigo 27º. De modo semelhante se entendeu necessário criar o artigo 1º do Protocolo nº 4 para 'reforçar as disposições do artigo 5º da Convenção Europeia' (assim Jacques Velu, Rusen Ergec, ob.cit., p.314), que corresponde sistematicamente ao artigo 27º da Constituição.
É claro que, reconhecida a vigência de uma norma ou princípio, que proíba a prisão pela única razão da incapacidade de pagar uma dívida contratual, tal implica a proibição da prisão por uma lei penal com esse pressuposto, do mesmo modo que o princípio da culpa implica a proibição da prisão por uma lei penal por facto não culposo. Só que estas restrições à excepcional permissão da prisão do nº 2 do artigo 27º, que resultam de um conceito material de direito penal, não se deduzem do próprio nº 2, mas de outros preceitos constitucionais.
A norma do artigo 1º do Protocolo nº 4 visou dar expressão a uma convicção jurídica que remonta ao início do Estado de direito e que está generalizada nos Estados membros. A abolição da prisão por dívidas, mais precisamente, do uso da prisão como meio de coacção para obter o cumprimento de obrigações contratuais foi uma exigência do iluminismo, que em muitos países já estava realizada antes da época constitucional. Isso talvez ajude a explicar a falta de consciência aguda da necessidade da sua explícita consagração constitucional. Em Portugal as várias formas de prisão como meio de coacção na disponibilidade do credor previstas nas Ordenações (Ordenações Filipinas, livro IV, título 76) foram revogadas pela Lei de 20 de Junho de 1774,
§ 19 (António Delgado da Silva [ed.], Collecção da Legislação Portugueza Desde a Ultima Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774, Lisboa, 1829, p.787), cujas razões foram assim interpretadas no Assento da Casa da Suplicação de 18 de Agosto do mesmo ano: 'sendo a razão e espírito daquela piíssima Lei o desterrar de todos os Juízos e Auditórios a barbaridade, com que trataram aos devedores as primeiras Leis Romanas, de que ainda são relíquias as prisões contra os devedores de boa fé, era violentíssimo este procedimento; pois não havendo Lei alguma Civil, ou Criminal, que o decrete sem culpa, nenhuma há nos devedores pobres, que se impossibilitaram para pagar, pelos adversos casos da fortuna: servindo nestes termos as prisões de cevarem o ódio e a vingança dos credores, e de oprimirem, contra todas as razões da humanidade, os miseráveis devedores, até darem a vida nos horrorosos cárceres, em que os têm detidos; ao mesmo passo, que se consultassem as regras do interesse particular e público, deveriam consentir na soltura; porque postos em liberdade os devedores, adquiririam meios, com que satisfizessem as suas dívidas, e até a República se serviria deles, empregando-os nos seus respectivos ministérios:' (Collecção Chronológica dos Assentos das Casas da Supplicação e do Cível, 2ª ed. Coimbra,
1817, p. 411-2). Estas razões conservam no essencial plena validade à face da Constituição: a prisão, como meio de coacção ao cumprimento de obrigação contratuais, viola os princípios da necessidade das restrições de direitos fundamentais e, nomeadamente, da pena e de sanções similares (artigo 18º, nº 2)e da culpa (derivado do princípio da dignidade da pessoa humana: artigo 1º). Com efeito, a tutela das obrigações contratuais do cidadão faz-se através das sanções preventivas e repressivas do direito privado, e só quando há violação que, do ponto de vista da culpa, merece especial reprovação, a ponto de provocar justificado alarme social, exige a sua prevenção o recurso às sanções penais. A estas considerações, que já têm pleno valor para a concepção pública da justiça penal do Estado ilustrado, como neste aspecto o foi o do josefinismo português, acresce o novo conteúdo que o princípio da necessidade da pena tem no Estado de direito, orientado pela valoração básica dos direitos da pessoa humana, por comparação com a sua interpretação no Estado absolutista, mesmo quando ilustrado, em função da prevenção geral da violação de uma ordem orientada por valores heterónomos. Assim, num Estado de direito a possibilidade de os credores se servirem da prisão pública como meio de coacção ao serviço dos seus interesses contratuais, traduz-se numa espécie de servidão pessoal entre credor e devedor, que ofende de modo insuportável o direito à liberdade.
Poderá ainda invocar-se a violação de dois princípios, que só tiveram consagração com o Estado de direito: os princípios da reserva de lei e da tipicidade. A reserva de lei na definição dos pressupostos da privação de liberdade (artigo 27º, nº2 e 3, artigo 165º, nº 1, alíneas b) e c)) seria violada, na medida em que a descrição dos comportamentos seria remetida para as cláusulas contratuais (este aspecto, noutra linguagem, é apontado pela doutrina francesa como uma das razões da proibição da 'contrainte par corps', denominação francesa do meio de coacção proibido pelo artigo 1º do Protocolo nº 4 : Jacques Mourgeon in L.- E.Pettiti, E. Decaux, P.H. Imbert, La Convention Européene des Droits de l'Homme, Paris, 1995, p.1041). Teríamos normas em branco quanto à previsão, sem descrição especificada dos elementos de facto, exigida pelo princípio da tipicidade (outra dimensão dos mesmos preceitos). No mesmo sentido se poderá ainda invocar o argumento sistemático de o caso central da prisão por dívidas - o meio de coacção do antigo direito de prisão de prazo variável até pagamento de dívida contratual - estar excluído pela exigência constitucional de determinação do tempo quer da prisão como pena criminal (cfr.artigo 30º, nº1), quer da prisão preventiva (artigo 28º, nº4), quer dos restantes casos excepcionais de detenção previstos no nº3 do artigo 27º. Mas há que reconhecer que estes argumentos têm menos força que os anteriores: o princípio da tipicidade tem que se acomodar com a por vezes necessária remissão de certos conceitos como 'alheio', 'ilegítimo', etc. para normas extra-penais, pelo que a razão da doutrina francesa terá mais a ver com o carácter contratual da ofensa, que não justifica sanção penal, do que com a sua falta de determinação legal; e a indeterminação do prazo pode ser eliminada pela sua fixação.
Semelhantes argumentos se poderiam formular com base nas anteriores constituições portuguesas, pelo que a consagração, quer na Constituição de 1911 (artigo 3º, nº 19), quer na de 1933 (artigo 8º, nº 13), da garantia individual de não haver 'prisão por falta de pagamento de custas ou selos' se deve entender como uma extensão para lá do domínio contratual de uma garantia dada por assente neste domínio.
Há que concluir como no acórdão nº 440/87 : 'tem, pois, de considerar-se como princípio constitucional consignado nas nossas Constituições - e aqui interessa apenas a de 1976 - a proibição da chamada
'prisão por dívidas' (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10, p.527).
Importa, no entanto, acentuar que também em Portugal sempre se entendeu que o princípio só se aplicava aos 'devedores de boa fé', excluindo os casos de provocação dolosa do incumprimento ( nas palavras do acima citado assento da Casa da Suplicação: 'quando sem dolo nem malícia se reduziram a estado de não terem com que satisfaçam aos seus credores' [ibidem]). Havendo dolo ou malícia não se tratava, desde logo, de um caso em que a 'única' razão do incumprimento era a incapacidade de pagar por parte do devedor.
Também é claro que o conjunto de razões invocadas para a proibição de prisão por dívidas não se aplica quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei. Assim a Comissão Europeia dos Direitos do Homem considerou que os parágrafos 899 e seguintes do Código de Processo Civil alemão, que prevêem a prisão até seis meses como meio de coacção para obter do devedor executado o cumprimento da obrigação legal de declarar sob juramento os seus bens, quando, sendo o devedor requerido para fazer a declaração pelo credor exequente, falta ou se recusa a fazê-lo, não violam o artigo 1º do Protocolo nº
4 (decisão de 18 de Dezembro de 1971, queixa nº 5025/75, supra citada). No mesmo sentido se pode invocar a jurisprudência da mesma Comissão sobre a contrainte par corps do direito francês. A contrainte par corps que tem a sua origem na prisão por dívidas do antigo direito, foi abolida em matéria civil e comercial pela lei de 22 de Julho de 1867, e só subsiste como medida decretada em processo penal a favor do Estado, em caso de inexecução de uma condenação a pagamento pecuniário, de multa ou qualquer outro, que não tenha o carácter de reparação civil, nem de custas judiciais, por uma infracção que não seja de natureza política (artigo 749º do Código de Processo Penal francês, modificado pela Lei nº 93-2 de 4 de Janeiro de 1993). Consiste na prisão, embora sem obrigação de trabalho (artigo 761º CPP), por tempo fixo, em função do montante da dívida, entre cinco dias e quatro meses (artigo 750 CPP), mas podendo ser de dois anos, quando a multa e as condenações pecuniárias pelas infracções penais e alfandegárias relacionadas com estupefacientes excedem 500.000 francos (artigo
706-31 CPP). A contrainte é prevenida, ou os seus efeitos cessam, pelo pagamento, consignação ou caução da soma devida (artigo 759 CPP) e não pode ser executada contra os condenados que façam prova legal da sua insolvência (artigo
752 CPP). Sendo estes os traços essenciais do regime, a Comissão da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem-na justamente considerado um meio de coacção ou 'mesure d'execution forcée' (decisão de 9 de Abril de 1996, queixa nº
20509/92 (Desborough)), de acordo com a jurisprudência e a doutrina francesas
(citadas na mesma decisão e no acórdão Jamil cit.infra), e decidido que está fora do âmbito de aplicação do artigo 1º do Protocolo nº 4, por resultar de uma
'condenação proferida por uma jurisdição penal' (assim, além da decisão já citada, as três decisões de 15 de Maio de 1996, nas queixas nº 26198/95
(J.-M.B.), nº 27373/95 (Ninin e nº 28645/95 (Bitti); a idêntica decisão da mesma data na queixa nº 29246/95 (Byott) implica a mesma doutrina). É certo que a Comissão decidiu no primeiro caso citado (Desborough) receber a queixa, mas por não ser claro que o requerente dispusesse de um 'recurso para um tribunal', no sentido do artigo 5, § 4 da Convenção, quando pediu o levantamento da contrainte por insolvabilidade, uma vez que o juiz só podia julgar da regularidade formal da imposição da contrainte. Também é certo que no acórdão Jamil, de 8 de Junho de 1995 (vol.320 da Série A), o Tribunal da Convenção Europeia decidiu que a contrainte par corps era de considerar uma pena para o efeito da proibição de retroactividade do artigo 7º, § 1º da
Convenção, num caso em que ao tempo da prática do facto (importação de cocaína) a duração da contrainte aplicável era de quatro meses, e o tribunal de recurso aplicou uma lei nova que aumentou a duração para dois anos; mas não se pronunciou sobre a aplicação do artigo 1º do Protocolo nº 4, que já não tinha sido retida pela Comissão no mesmo caso, não obstante invocada.
Haveria que dizer o mesmo da prisão como medida (ou meio) de coacção (ou coercitiva) que o Código de Processo Civil de 1939 previa nos casos dos tesoureiros, recebedores e outros depositários de dinheiros ou valores do Estado, quando encontrados em alcance (artigo 418º; excluindo, no confronto com o arresto do artigo 416º, os devedores da Fazenda Pública por efeito de contrato), do depositário de bens penhorados (artigo 854º), do arrematante ou proponente na venda judicial (artigo 904º e 894º, § 2º; sobre casos semelhantes do antigo direito que não se consideraram abrangidos pela abolição da prisão por dívidas de 1774, ver Melo Freire, Institutiones Iuris Civilis Lusitani, 2ª ed., Lisboa, 1795, IV, título 22, § 18 e Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Portuguez, 2ª ed., Coimbra, 1848, I, § 170). Estes casos foram suprimidos pelo Decreto-Lei nº 368/77 de 3 de Setembro, por se considerarem contrários ao artigo 27º da Constituição de 1976, mas certamente por incompatibilidade com a enumeração taxativa do nº 2 do artigo 27º
(incompatibilidade contestada por Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção pecuniária compulsória, Coimbra 1987, p.389, que argumenta com o direito comparado), não por serem casos de prisão por dívidas.
Quanto à prisão do devedor de alimentos em condições de cumprir a prestação a que está obrigado e que ficava extinta quando se prove estarem pagos os alimentos em dívida, e que não era uma medida de coacção mas uma pena criminal (já no artigo 1465º do Código de Processo Civil de 1939, como notou Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1944, p.163), em que o pagamento era uma causa de extinção da responsabilidade criminal (ponto não reconhecido, aliás, por Manuel de Andrade), foi mantida pelo artigo 190º do Decreto-Lei nº 314/78 de 27 de Outubro, e, posteriormente, pelo actual artigo 250º do Código Penal, em que o pagamento é apenas possível causa de dispensa da pena ou de extinção da responsabilidade criminal. Estava, portanto, autorizada pelo nº 1 do artigo 27º da Constituição e, por razões distintas das anteriores, não foi justamente considerada um caso de 'prisão por dívidas'.
Note-se, ainda, que há consenso interpretativo em que o princípio vale, para lá dos casos de prisão, referidos no artigo 11º do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos e nas fontes antigas portuguesas, para todas as formas de privação de liberdade (Velu, Ergec, ob.cit., p.314; Pettiti et al., ob. cit., 1041, nº 2), e que o qualificativo 'contratual' abrange tanto contratos entre particulares como contratos com entidades públicas (Pettiti et al., ob. cit.,p.1042; Jochen Abr. Frowein, Wolfgang Paukert, Europäische Menschenrechts-Konvention: EMRK-Kommentar, Kehl 2.ed., 1996, p.843).
Há, finalmente, que reconhecer que a garantia de que
'ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual', tendo partido historicamente da proibição da prisão por dívidas contratuais como meio de coacção, manteve a relação da proibição com o seu histórico pressuposto, a mera impossibilidade de cumprimento de obrigações contratuais, generalizando todavia o conteúdo da proibição, na medida em que abrange qualquer forma de privação de liberdade com esse pressuposto, seja ou não configurada como meio de coacção. Mas aquela origem histórica explica que sejam casos subsistentes de prisão como meio de coacção que tenham sido questionados perante a Comissão da Convenção Europeia dos Direitos do Homem quanto à sua conformidade com a Convenção.
Identificado o princípio constitucional relevante para a questão de constitucionalidade suscitada, ancorado no nº 1 do artigo 27º, desnecessário se torna averiguar da violação de norma idêntica eventualmente contida no direito internacional geral e das questões de violação indirecta da Constituição (nºs 1 e 2 do artigo 8º).
8. Aplicação às normas em questão neste processo
Deve entender-se que as normas penais em questão sobre os vários tipos de crime de emissão de cheque sem cobertura não violam o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, nº 1 da Constituição).
Com efeito, não se trata aqui de impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade. A impossibilidade de cumprimento não é elemento dos crimes de emissão de cheque sem cobertura, mas antes o incumprimento na forma de não pagamento integral por falta de provisão ou por irregularidade do saque, causador de prejuízo patrimonial ao tomador ou a terceiro. Além deste resultado, o tipo de crime contém vários outros elementos, que se enumeram adiante e que explicam a especial gravidade do ilícito e, portanto, da culpa, e o especial regime de punibilidade que o caracteriza. Esse conjunto de elementos permitem, como veremos, caracterizar o crime em termos semelhantes a outros que a doutrina atrás citada tem apontado como estando claramente fora da garantia aqui questionada. Não pode ser outra a solução para o crime de emissão de cheque sem provisão.
Não se pretende implicar que a questão da constitucionalidade de incriminação do crime de emissão de cheque sem provisão e, menos ainda, de qualquer forma de incumprimento doloso de obrigações contratuais, fique dilucidada. O entendimento tradicional no nosso direito penal
é o de que só certas formas de ofensas ao património, que se revestem de especial gravidade pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, necessitam da intervenção do direito penal, satisfazendo o princípio constitucional da necessidade da pena. Assim, quanto aos crimes contra o património em geral, que têm como resultado o prejuízo, e para só falar dos tipos de crime que historicamente constituíram o seu acervo nuclear, a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coacção na extorsão, a situação de necessidade na usura. Poderá, neste sentido, dizer-se que há ainda uma outra proibição constitucional, da punição pelo mero incumprimento, mesmo doloso, de obrigações contratuais. São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal. É o que claramente entende o legislador do Decreto-Lei nº 316/97, por razões que têm a ver com a proximidade existente entre o crime de emissão de cheque sem provisão e a burla.
Há que averiguar as razões dessa proximidade para a aceitar como argumento válido para decidir que o legislador não excedeu os limites da sua razoável discricionaridade na avaliação da necessidade da pena e na criação do direito penal. A validade do argumento não implica que o legislador esteja obrigado a incriminar a emissão de cheque sem provisão, que não é, ou deixou de ser, punida como crime autónomo relativamente à burla em legislações penais estrangeiras semelhantes às nossas (cfr. Américo A.Taipa de Carvalho, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, Coimbra, 1998, p. 18-19, nota
9).
Há duas espécies de bens jurídicos que têm sido protegidos pela incriminação da emissão de cheque sem provisão: os patrimónios do tomador e dos giratários e a fé pública na validade do cheque como título de crédito abstracto em circulação (cfr. Luigi Conti, 'Assegno nel diritto penale', Digesto delle Discipline Penalistiche, I, Torino, 1986, p.279). Os vários regimes jurídicos que se sucederam diferiram na importância relativa de uma e de outra espécie de bem jurídico. O actual regime do Decreto-Lei nº 316/97 dá clara prevalência à primeira espécie de bens jurídicos, acentuando, por isso, as semelhanças com a burla.
Com efeito, o crime de emissão de cheque sem provisão, na forma referida na alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 396/91 tem os seguintes elementos: 1. existência de uma obrigação de pagamento, por parte do agente, subjacente à emissão, que é um pressuposto exigido pelo nº 2 do artigo 11º-A; 2. emissão de cheque sem provisão, com data não posterior à entrega ao tomador, para pagamento de quantia superior a 12.500$00; 3. erro como não conhecimento do tomador da falta de provisão: deduz-se a contrario do nº 3 do artigo 11º, que exclui a verificação do tipo de crime quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador, isto é, quando este tem conhecimento da falta de provisão; 4. entrega do cheque pelo agente e sua aceitação pelo tomador em pagamento da obrigação subjacente: a aceitação está implícita no carácter receptício da entrega e a referência à obrigação subjacente resulta do nº 2 do artigo 11º-A; 5. não pagamento integral do cheque apresentado a pagamento por falta de provisão ou irregularidade do saque; 6. prejuízo patrimonial do tomador ou de terceiro; 7. apresentação do cheque a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque: trata-se de uma condição objectiva de punibilidade, não obstante a apresentação a pagamento já estar abrangida pelo dolo do agente (supra nº 5), porque sem a sua verificação objectiva naqueles termos e prazos, que são irrelevantes para a culpa, não há punição nem do crime consumado nem da tentativa; 8. a regularização da situação, mediante consignação em depósito ou pagamento directamente ao portador, nos termos e prazo previstos no artigo 1º-A,
é causa da extinção da responsabilidade criminal (nº 5 do artigo 11º), pelo que a não regularização pode considerar-se uma condição negativa de punibilidade;
9.dolo de todos os elementos objectivos de 1 a 6 e do nexo causal que os relaciona entre si, nexo que se pode analisar em diversas relações de causalidade interligadas.
Ora, se compararmos estes elementos com os constitutivos do tipo de crime da burla (artigo 217º do Código Penal), verificamos o seguinte: a emissão de um cheque sem provisão, com data não posterior à entrega ao tomador, para pagamento de uma obrigação subjacente corresponde à provocação astuciosa do erro ou engano; o erro ou engano sobre a existência de provisão, que há que entender como causado pela emissão, corresponde ao erro ou engano sobre factos provocado pelo agente, na burla; a aceitação em pagamento determinada pelo erro sobre a falta da provisão, corresponde à prática de acto de disposição determinado por erro sobre factos; o não-pagamento integral do cheque é um elemento constitutivo do prejuízo patrimonial que é causado pela aceitação e que corresponde na burla ao prejuízo patrimonial causado pelo acto dispositivo; ambos os crimes são igualmente dolosos, mas na burla há ainda o elemento subjectivo do tipo de ilícito que é a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo. Dos elementos entretanto comparados resultam diferenças objectivas com a burla quanto ao acto determinado pelo erro e quanto ao prejuízo e ainda a falta de correspondente, na burla, à apresentação ao pagamento e à extinção da responsabilidade criminal pela regularização da situação, além do referido elemento subjectivo adicional ao dolo, que é a intenção de enriquecimento ilegítimo, que não é exigida em geral nos crimes contra o património e, nomeadamente noutros tipos de burla previstos no Código Penal.
O erro ou engano determina na burla um acto dispositivo da vítima do erro ou engano, acto que lhe causa prejuízo. Pode discutir-se se a exclusão da verificação do tipo de crime quando o cheque seja emitido com data posterior à sua entrega ao tomador consagra a exigência de erro deste sobre a existência de provisão, ou se este erro se presume, ou a sua averiguação se dispensa, uma vez verificada a inexistência de pós-datação. Sendo o erro um elemento negativo, o não-conhecimento, o essencial é que o conhecimento da inexistência de provisão afasta o preenchimento do tipo. Só assim se pode dizer que o erro, isto é, o não conhecimento de provisão suficiente, determina no tomador a aceitação do cheque em pagamento. Terá determinado também um acto dispositivo que integra a relação jurídica subjacente e que não teria sido praticado se não fora a representação da existência de provisão. Mas tal acto não consta da descrição típica (assim também Germano Marques da Silva, Regime Jurídico dos Cheques sem Provisão, Lisboa, 1997, p.55), que se basta com o pressuposto de uma relação jurídica subjacente à emissão, pela qual o agente tem uma obrigação de pagamento em dinheiro. Quanto ao resultado do crime, ele reduz-se na burla ao prejuízo patrimonial, que deve entender-se, segundo a doutrina dominante como diminuição do património, no sentido jurídico-económico, isto é, como soma dos valores económicos juridicamente protegidos (assim, quanto ao crime de burla, já no Código de 1852, José de Sousa e Brito, 'A Burla do Artigo 451º do Código Penal - Tentativa de Sistematização', Scientia Iuridica, XXXII, 1983, pp.132/159), ao passo que na emissão de cheque sem provisão temos um duplo resultado: primeiro, o não pagamento integral do cheque pela instituição de crédito sacada; segundo, o prejuízo patrimonial. No entanto, há que entender que, mantendo-se o crédito decorrente da relação jurídica subjacente, o não pagamento equivale, visto do lado do tomador, à frustração do direito do portador do cheque a receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito em razão da relação subjacente e para cujo pagamento o cheque serviu, e que tal é na generalidade dos casos um prejuízo patrimonial no sentido jurídico-económico, que é relevante para a burla.(cfr. sobre a questão Germano Marques da Silva, ob.cit.,p.55).
A apresentação a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme é uma restrição da punibilidade dos casos de prejuízo provocado pela emissão de cheque sem provisão, o que se explica pela relevância adicional do interesse colectivo na circulação do cheque, que é um bem jurídico colectivo, secundária mas especificamente, protegido pelo crime de emissão de cheque sem provisão, além do interesse patrimonial do credor, mais exactamente do interesse do credor na não desvalorização do seu património em sentido jurídico-económico que, segundo a doutrina dominante, é o bem jurídico individual igualmente protegido na burla e na emissão de cheque sem provisão.
Finalmente, a regularização da situação como causa de extinção da responsabilidade criminal, se ocorrer nos 30 dias consecutivos à notificação para tal, e como causa de atenuação especial de pena, se ocorrer depois disso até ao início da audiência do julgamento em 1ª instância, é decerto um regime jurídico mais favorável para o agente do que o de atenuação especial da pena, previsto para a burla (por remissão do nº 4 do artigo 217º para o artigo 206º do Código Penal). Mas a diferença pode explicar-se pelo interesse não apenas individual do credor, mas colectivo na circulação do cheque.
A comparação que se fez entre crime de emissão de cheque sem provisão da alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, na redacção do Decreto-Lei nº 316/97, e a burla vale, mutatis mutandis, para os outros tipos daquele crime previstos na alínea b) e na alínea c) do mesmo artigo, dispensando-se aqui a demonstração. A análise feita visou apenas consubstanciar a afirmação de que se trata de uma variante da burla, que não apresenta, poderia acrescentar-se, diferenças de configuração mais significativas que as que existem entre o tipo de crime de burla do artigo 217º e os tipos de crime das burlas dos artigos 219º, 220º ou 221º ou 222º do Código Penal. É certo que a nova redacção do Decreto-Lei nº 454/91 eliminou a parte de frase 'observando-se o regime geral de punição deste crime', nomeadamente quanto
às penas previstas, que continuam a ser as da burla simples (prisão até 3 anos), quanto ao crime simples de emissão de cheque sem provisão, e da burla qualificada do nº 1 do artigo 218º (prisão até 5 anos), quando o cheque é de valor elevado, deixando de se fazer a equiparação quando o valor do cheque não pago ou do prejuízo é consideravelmente elevado ou quando se verifica alguma das circunstâncias das alíneas b) e c) do artigo 218º do Código Penal (prisão de 2 a
8 anos na burla qualificada do nº 2 do artigo 218º). Esta diferença de regime suscita um problema de direito penal que, no entanto, não é indispensável tratar aqui.
Quem, todavia, não subscreva tudo quanto acaba de dizer-se, por entender que a relevância concedida pelo actual regime ao interesse colectivo da confiança no cheque como meio de pagamento já não justifica a sua qualificação como um dos bens jurídicos que se visam proteger - considerando, por isso, que o crime surge exclusivamente como um crime contra o património -, ainda assim não concluirá pela inconstitucionalidade. Nesta concepção também não é o não cumprimento da obrigação tutelada pelo cheque que, por si, constitui crime, justificando-se a tipificação da emissão do cheque sem provisão apenas pela analogia com a burla, tendo em vista a especificidade do cheque como meio enganoso.
Não se desconhece que o Supremo Tribunal de Justiça tem consistentemente interpretado o crime de emissão de cheque sem provisão, introduzido pelos artigos 23º e 24º do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de
1927, como crime que primariamente visa proteger a confiança na circulação do cheque, como bem jurídico protegido, e só em segundo lugar visa evitar o prejuízo patrimonial do portador. No termo de uma longa discussão doutrinária que se espelhou em orientações opostas da própria jurisprudência - decidiram pela necessidade de dolo específico com intuito de defraudar, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 3 de Março de 1933 (Colecção Oficial dos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal de Justiça, 32, p.51) e de 4 de Dezembro de 1945 Boletim Oficial do Ministério da Justiça, V, p.526) e pela suficiência do dolo genérico os acórdãos de 15.3.1950 (Boletim do Ministério da Justiça, 18, p.188),
15 de Junho de 1955 (Boletim, 49,p.22), de 22 de Dezembro de 1955 (Boletim, 52, p.487), de 6 de Novembro de 1957 (Boletim, 74, p.388) - o Supremo lavrou o Assento de 20 de Novembro de 1980 (Assento nº 1/81, Diário da República, I série, de 13.4.1981, p.933 ss.) segundo o qual 'O crime de emissão de cheque sem cobertura é um crime de perigo, para cuja consumação basta a consciência da ilicitude da conduta e da falta de provisão para a ordem de pagamento dada'. O conteúdo do Assento foi explicitado nos seguintes termos:
' Entregue ao tomador pelo emitente um cheque por ele subscrito sem fundos ou com fundos insuficientes no banco sacador, para cobrir a ordem de pagamento, logo ficou criado o perigo de circular fiduciariamente como título de crédito transmissível, por via de endosso, como meio de pagamento e sem poder liberatório, defraudando os fins de protecção visados pelo sistema jurídico-penal de tutela. Pressupõe-se ou presume-se o perigo de lesão dos interesses juridicamente protegidos quando o agente pratica o facto que constitui o crime, sabendo que o é.
Por isso é de concluir que o crime de emissão de cheque sem provisão
é um delito de perigo presumido ou abstracto.
E assim sendo, não é necessária a existência do propósito ou intenção de prejudicar, defraudar por parte do emitente do cheque para a estruturação do facto típico, ou seja, o dolo específico. É suficiente o dolo genérico, a intenção do agente de praticar o facto que constitui o crime, sabendo que o é, o mesmo que é dizer, a consciência da falta de provisão e da ilicitude da conduta.'
O tipo legal do crime definido nos artigos 23º e 24º do Decreto-Lei nº 13004 teria, em conformidade, os seguintes elementos:
'preenchimento de cheque com a assinatura do sacador; a falta ou insuficiência de fundos no banco sacado; a entrega do cheque ao tomador ou beneficiário [...]. São seus elementos subjectivos: o conhecimento por banda do sacador ou emitente daquela falta ou insuficiência de fundos, a vontade de praticar o acto, sabendo que o mesmo é proibido, ou seja, a consciência da falta de provisão e da ilicitude da conduta.'[...] A apresentação do cheque a pagamento no prazo legal e a aposição da nota da falta ou insuficiência da provisão são actos posteriores
à consumação do crime [...] não são elementos integrantes do crime, mas simples condições objectivas de punibilidade [...] logo não obsta à incriminação o conhecimento antecipado do tomador do que o cheque não tem provisão e mesmo o compromisso tomado de mútuo acordo por escrito de que o cheque só seria apresentado a pagamento depois de verificada determinada condição suspensiva'
(lug.cit., p.935-6). Em consequência desta interpretação, fica aberta a possibilidade de ser punido um devedor que nas suas relações com o credor esteja de boa fé, mas que se veja impossibilitado de pagar sem culpa sua. Prevenindo, essa hipótese, além de outras, de recusa de pagamento por falta de provisão, segundo o acórdão do Assento, 'procurou-se uma solução conciliatória que não comprometesse irremediavelmente o interesse patrimonial do tomador e a liberdade do emitente. Consistiu precisamente essa solução em deixar o procedimento criminal dependente da denúncia do portador, reservando-lhe o seu perdão ao emitente remisso que honrar a ordem de pagamento, efectuando-o antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, caso em que fica extinto tal procedimento
(artigo 125º, nº 4 e § 36º do Código Penal)' (p.936). Criou-se assim na prática um meio de coacção que não era a prisão por dívidas, mas o próprio procedimento criminal conducente à prisão, em casos de impossibilidade não culposa de cumprimento de obrigações contratuais (e bem assim em casos de inexistência de obrigação subjacente, por qualquer causa de extinção desta última). Poderia justamente perguntar-se se não valeriam aqui as razões que fundam a proibição de prisão por dívidas (invocada em vista desta jurisprudência, por Figueiredo Dias, em entrevista ao Diário de Notícias de 22 de Dezembro de 1990, citada em voto de vencido ao Assento nº 6/93 do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de
1993, Diário da República, I série-A, de 7.4.1993, p.1765).
Em reacção ao Assento nº 1/81, o legislador do Decreto-Lei nº 25/81, de 21 de Agosto, deu nova redacção ao artigo 24º do Decreto-Lei nº 13004 que estatuia uma pena de seis meses a dois anos de prisão correccional, e que passou a cominar prisão e multa ou prisão maior de dois a oito anos, consoante o valor do cheque for igual ou inferior a 50.000$00 ou superior a esta quantia. Além disso, o § 1º passou a estabelecer a isenção da pena do sacador que efectuou voluntariamente o pagamento do montante do cheque, juros moratórios e indemnização, ou o respectivo depósito à ordem do juiz ou consignação em depósito à ordem do credor, se este recusar receber ou dar quitação. Pôs-se assim, como reconheceu o Supremo no já referido acórdão do Assento nº 6/93, a tónica no prejuízo patrimonial, sem o qual não há pena, mesmo contra a vontade do ofendido, pelo que 'a partir da sua entrada em vigor pode dizer-se que ficou ultrapassada a eficácia interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 1980, publicado no Diário da República, de 13 de Abril de 1981, por terem mudado os pressupostos em que assentou. Pode até afirmar-se que não foi inocente a alteração legislativa tão pouco tempo após o assento' (Assento nº 6/93 cit., p.1762).
A essencialidade do prejuízo e, portanto, a concepção do crime de emissão de cheque sem provisão como crime de dano contra o património, foi ainda acentuada pela nova redacção dada ao corpo do artigo 24º do Decreto nº
13004 pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Código Penal, e que fez com que as penas daquele crime passassem a corresponder às penas previstas no Código para a burla (prisão até 3 anos para a burla simples e de 1 a 10 anos para a burla qualificada), fazendo depender a qualificação das mesmas circunstâncias de que depende a burla qualificada, o que, como escreveu Figueiredo Dias, 'Crime de Emissão de Cheque sem Provisão', Colectânea de Jurisprudência, 17, 1992, III, p. 69, 'só pode querer significar que, ao redigir o nº 2 do artigo 24º, o legislador partiu do pressuposto de que o preenchimento do tipo fundamental do nº 1 implicava sempre a produção de um efectivo prejuízo patrimonial - limitando-se, por isso, no nº 2, al. b), a estabelecer uma pena mais pesada para os casos em que esse prejuízo colocasse a vítima numa posição económica difícil. Outro não é, de resto, o sentido da al. b) do artigo 314º do CP, que o citado artigo 24º, nº 2, al. b) transcreveu na íntegra.'.
Este argumento é, aliás, reconhecido como implicando que o prejuízo patrimonial é inequivocamente elemento do tipo no acórdão do Assento nº 6/93 (p.1762). Não obstante estas alterações legislativas, a jurisprudência do Supremo manteve a concepção do crime de emissão de cheque sem provisão como crime de perigo abstracto e a doutrina do acórdão do Assento nº 1/81 (vejam-se, entre muitos, os acórdãos de 26 de Outubro de 1988 - Colectânea de Jurisprudência, 13, 1988, tomo 4, pp.14 e ss. e de 1 de Fevereiro de 1989 - Proc. nº 40.155/3ª)
Reagindo novamente à jurisprudência dominante, o Decreto-Lei nº 454/91, cujo preâmbulo acentua que 'a aplicação das penas do crime de burla ao sacador do cheque sem provisão[...] é uma consequência da proximidade material desses comportamentos com os que integram aquela figura do direito penal clássico', inclui uma nova incriminação do crime de emissão de cheque sem provisão no seu artigo 11º, de que se transcrevem os nºs 1 e 2 :
' 1. Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial: a) Emitir e entregar a outrem, cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque; b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral; c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.
2. Nas mesmas penas incorre quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial.'
Embora reconhecendo que a introdução da expressão
'causando prejuízo patrimonial', idêntica à do artigo 313º, nº 1 do Código Penal de 1982, foi feita 'pour cause', sob a influência do Prof.Figueiredo Dias, o Supremo veio defender no acórdão do Assento nº 6/93 que
- o Decreto-lei nº 454/91 não revogou o artigo 24º do Decreto-Lei nº 13004, 'que continua a ser referência obrigatória na definição do tipo';
- 'pelo menos desde o Decreto-Lei nº 25/81 que o elemento prejuízo patrimonial
'passou a integrar uma condição objectiva de punibilidade' e, portanto, a fazer parte do tipo, em sentido lato;
- 'pode mesmo reconhecer-se que o legislador sempre considerou o 'prejuízo patrimonial' como conatural do não pagamento de um cheque por falta de provisão'; apesar desta afirmação e sem mais explicação
- 'a inclusão do elemento 'causando prejuízo patrimonial' traduziu-se numa restrição ou redução da revisão anterior, retirando relevância criminal aos casos (que poderiam sofrer punição à luz do assento) em que não se prova o prejuízo patrimonial';
- o Supremo manteve, assim, a doutrina de que 'o bem jurídico essencialmente protegido pelo tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão é a confiança na circulação do cheque, dada a sua função económico-jurídica como meio de pagamento'.
Só perante a nova redacção dada ao artigo 11º e a introdução do nº 2 do artigo 11º-A pelo Decreto-Lei nº 316/97, veio o Supremo reconhecer que o crime de emissão de cheque sem provisão é, por força deste
último Decreto-Lei, um crime primariamente contra o património.
Tal não implica, porém, a conclusão de que o regime vigente é inconstitucional, por ofensa da proibição da prisão por dívidas, que tinha sido esgrimida contra a juriprudência anterior do Supremo. É que um dos princípios constitucionais que fundamentam a proibição da prisão por dívidas é o princípio da culpa, que poderá ter sofrido alguns maus tratos num entendimento
'formal' ('crime de natureza formal' é a expressão correctamente usada no acórdão de 1 de Fevereiro de 1989, no entendimento de que era de perigo abstracto) do crime de emissão de cheque sem provisão, com a consequente irrelevância da relação jurídica subjacente e das circunstâncias de facto objectivas e subjectivas, intercedentes entre o subscritor e o apresentante. Não os sofre, certamente, se for entendido, como deve, como crime de dano doloso contra o património, sem prejuízo do relevo que tem no seu regime a protecção da confiança na circulação do cheque.
III Decisão
Decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos
11º, 11º-A, 12º, 13º, 13º-A e 1º-A do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, a fim de que, reformando-se a decisão recorrida, nela se apliquem aquelas normas, se os respectivos pressupostos se verificarem no processo. Lisboa, 25 de Novembro de 1998 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Beleza Bravo Serra Artur Maurício Messias Bento Luis Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa