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Processo n.º 569/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, A. e outros intentaram ação administrativa especial contra o Município de Elvas junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco. Por decisão singular, proferida em 29 de novembro de 2012 (fls. 13 e seguintes), a ação foi julgada improcedente.
Os autores interpuseram recurso de tal decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul, o qual foi objeto de despacho de não admissão, com fundamento em inadmissibilidade do recurso de decisão sumária do relator (fl. 62).
Inconformados, os autores reclamaram desta decisão no Tribunal Central Administrativo Sul, vindo tal reclamação a ser indeferida em 29 de abril de 2013 (fls. 72-73).
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas b) e f), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro - Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (“LTC”), em requerimento com o teor que seguidamente se transcreve, na parte ora relevante:
«[7 – O]s recorrentes continuam inconformados com a decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul que decidiu julgar conforme com o texto constitucional a interpretação seguida pelo Tribunal Fiscal e Administrativo de Castelo Branco relativamente à alínea i) do n.º 1 e n.º 2 do art. 27.º do CPTA, dela vêm agora os recorrentes, porque estão em tempo e para tal têm legitimidade (cfr. alínea b) do art. 72.º da Lei 28/82),
Interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
[…]
[9 – O]s recorrentes esclarecem [desde já ] que, com o presente recurso, pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a desconformidade de tal decisão com os mais básicos princípios constitucionais, atento o disposto na alínea b) e f) do n.º 1 do art. 70.º da mesma Lei, ao abrigo da qual o presente recurso é interposto, designadamente:
10 – A inconstitucionalidade das normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA de que se fez aplicação, interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo «despacho» constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as «sentenças»;
[…].»
Admitido o recurso, e subidos os autos ao Tribunal Constitucional, foi proferido despacho ordenando a produção de alegações, tendo os recorrentes formulado as seguintes conclusões:
«1. No confronto da expressão «proferir decisão» constante da a1ínea i) do ar. 27.º do CPTA, com a norma contida no n.º 2 do mesmo artigo – norma que se entendeu no despacho de não admissão de recurso proferido em 1.ª instância e no acórdão objeto do presente recurso obstar ao recurso jurisdicional – nota-se o uso deliberado pelo legislador de diferentes expressões para designar atos de decisão jurisdicional.;
2. Numa usa-se a expressão vaga «decisão» - a1ínea i) do n.º 1 -, na outra a aceção concreta de «despachos» - n.º 2 – obrigando, este n.º 2 a submeter a conferência os «despachos do relator»;
3. É incontroverso que na decisão proferida em 1.ª instância pelo relator foi decidido o mérito da causa – da validade das deliberações da Câmara Municipal de Elvas e do despacho do seu Presidente que revogaram anteriores deliberações camarárias que haviam viabilizado a alteração de posicionamento remuneratório por via de opção gestionária dos Recorrentes -, absolvendo o demandado do pedido e pondo termo à causa.
4. Ora, tratando de decisão com tal conteúdo, o meio jurisdicional de reação é o recurso jurisdicional, não relevando a aplicação do n.º 2 do art. 27.º do CPTA aos atos praticados ao abrigo da alínea i) do CPTA;
5. Com efeito, nada se referindo, no n.º 2 do art. 27.º do CPTA, quanto à obrigação de as sentenças serem submetidas à conferência pela via da reclamação, o que se terá de assumir ter significado e ser opção legislativa ponderada;
6. As normas do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2 do CPTA, quando interpretadas:
a) no sentido de que o n.º 2 do art. 27.º do CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos”, as sentenças, ou seja, que naquele n.º 2 se usa o termo “despachos”, num sentido idêntico ao do termo “decisões” constantes da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º CPTA;
b) no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
c) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”;
Violam:
- o princípio do Estado de Direito Democrático (art. 2.º e 20.ºCRP), na vertente da proibição de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e à justiça;
- o princípio pro actione (art. 20.º CRP), na vertente de acesso às sucessivas instâncias jurisdicionais;
- os princípios de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 CRP), na vertente da proibição de desproteção dos particulares por confiarem na qualificação que o tribunal empresta ao ato e se conformarem com os meios recursivos disponíveis em face dessa qualificação.»
O recorrido não contra-alegou.
2. Proferido despacho pelo relator, alertando-se os recorrentes para a eventualidade de não vir a ser proferida decisão de mérito em virtude de não ter ocorrido, por um lado, qualquer suscitação de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado e, por outro, a suscitação, durante o processo e em moldes processualmente adequados, de uma questão de constitucionalidade normativa, responderam aqueles:
«1 – Entendem os recorrentes que o recurso por si interposto preenche os requisitos legais de admissibilidade, porquanto o que submeteram à apreciação desse Venerando tribunal foi o conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 27.º, n.ºs 1, alínea i) e 2 do CPTA, questionando-se a constitucionalidade daquelas normas quando interpretadas em qualquer uma das seguintes interpretações normativas:
a) no sentido de se considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa decisão não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
b) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”.
2 – Os recorrentes impugnaram a decisão judicial em causa por ela ter aplicado uma norma, tendo ultrapassado o sentido possível das palavras da lei, uma vez que julgou que uma interpretação normativa do termo “despacho” referida no n.º 2 do artigo 27.º do CPTA abrange as “decisões” a que se refere a alínea i) do seu n.º 1.
3 - E os recorrentes, na reclamação que apresentaram no Tribunal Central Administrativo Sul colocaram este tribunal perante a exata e específica questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciado no presente recurso Com efeito,
4 – Relativamente ao despacho de não admissão do recuso interposto, na reclamação que apresentaram junto daquele Tribunal, os recorrentes invocaram expressamente a respetiva ilegalidade por, em seu entendimento, representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no artigo 142.º, n.º 1 do CPTA, e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e justiça vertidos nos artigos 2.º e 20.º da CRP;
5 – Tendo densificado essa sua alegação, afirmando que, ainda que se entendesse que o n.º 2 do artigo 27.º do CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos” as sentenças, ou seja, usar o termo “despachos”, num sentido idêntico ao de “decisões” usado na alínea i) do nº 1 do artigo 27.º do CPTA, é uma aplicação inconstitucional do n.º 2 e da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º aplicar os mesmos no sentido de considerar que, apesar de um tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender em tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal, correta e que, como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado;
6 – E, acrescentado que, esse entendimento atentava, designadamente, contra os princípios de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da CRP) e seus corolários ao nível dos princípios derivados da confiança, estabilidade e acesso ao direito (artigo 20.º da CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais pois deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais – órgãos de soberania com competência para administrar a justiça – fazem dos sus próprios atos;
7 – E, ainda, que, ao enveredar-se pelo entendimento defendido na decisão impugnada, estar-se-ia perante a imposição de um ónus processual à partes no processo de ultrapassarem as qualificações que os próprios tribunais façam dos seus atos, obrigando a que, mesmo sem que essa qualificação tenha sido posta em causa por tribunal superior, as partes julguem e apurem o erro do julgador e enveredem por meio de reação em discordância com o que o próprio tribunal, que terá de admitir o meio de reação, dispôs em qualificação desses atos;
8 – Sustentaram os recorrentes ser claramente inconstitucional enveredar e consagrar tal imposição às partes no processo, por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e justiça consagrado no artigo 20.º e face à garantia da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 268.º, n.º 4, ambos da CRP, por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições colocadas às partes no processo quanto às condições em que podem utilizar os meios de reação;
9 – Referiram, também, que colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do ato que o próprio órgão de soberania que julgou a questão impôs, quando o nosso sistema de reação contra decisões judiciais assenta exclusivamente no pressuposto da qualificação do ato como “despacho” ou “sentença” para conduzir as partes no processo aos meios que poderão usar, é claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reação;
10 – Mais referiram que, defronta o princípio da confiança e da estabilidade jurídica do processo – o due process – definir em lei processual que a seleção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação do ato pelo tribunal, para, posteriormente quando o particular se conforma com essa nominação entender que a mesma não o vincula, tendo mesmo o dever de contrariar essa qualificação jurisdicional;
11 – Como se conclui nessa reclamação, a interpretação e aplicação das normas de processo que é seguida pelo despacho reclamado, leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito em que os princípios pro atione não habilitam condutas processuais que promovam a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para sua tutela;
12 - Daí que, perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do artigo 27.º, n.º 1 do CPTA, ao recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos recorrentes deveria ter sido admitido, sob pena de ser posta em causa a garantia da tutela jurisdicional efetiva prevista no artigo 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no artigo 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º, todos da CRP:
13 – Os recorrentes suscitaram, deste modo, durante o processo e em termos processualmente adequados, a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas convocadas para a decisão impugnada e por ela aplicadas, tendo-o feito de modo direto, explícito e percetível, através da indicação das disposições legais sobre cuja interpretação se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade.
14 - Colocaram, assim, o tribunal recorrido perante a exata e específica questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver agora apreciada, ou seja, a apreciação da constitucionalidade da norma extraída do artigo 27.º, n.º 2 do CPTA, quando interpretada no sentido de que o legislador ao usar aí o termo “despacho” pretendeu abarcar as “decisões” a que se refere a alínea i) do seu n.º 1.
15 – E o Tribunal Administrativo Sul, embora não se tenha pronunciado sobre a inconstitucionalidade expressamente suscitada pelos recorrentes, sufragou a interpretação de que, do confronto da expressão “proferir decisão”, contida no n.º 2 do mesmo artigo, não se pode retirar que o legislador utilizou tais conceitos em sentido diferente;
16 – Tendo o recurso, que foi interposto para este Venerando Tribunal, por objeto precisamente a inconstitucionalidade da referida norma, quando aplicada e interpretada com aquele sentido e alcance. Com efeito,
[…]
22 – Daí que a questão de constitucionalidade que se pretende ver decidida seja a da interpretação dada àquela norma e não a sua validade formal.
23 – Assim, a questão da inconstitucionalidade em causa no presente recurso não é dos n.ºs 1, alínea i) e 2 do artigo 27.º do CPTA, mas a interpretação que o Tribunal Central Administrativo Sul consagrou no seu Acórdão, por se entender claramente inconstitucional, por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e à justiça (artigo 20.º da CRP), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições às partes no processo, quanto às condições em que podem usar dos meios de reação;
[…]
25 – Julgam, deste modo, os recorrentes que se encontram reunidos os pressupostos para que seja emitida decisão de mérito no presente recurso, o que requerem.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. O presente recurso foi interposto com fundamento nas alíneas b) e f), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e tem por objeto, tal como resulta do respetivo requerimento, «a inconstitucionalidade das normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA (…), interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor dá à mesma, mais considerando que sob o termo ‘”despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA, também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”».
Entende-se, todavia, que não se encontram reunidos os pressupostos essenciais ao conhecimento do respetivo mérito.
4. No que toca ao recurso interposto ao abrigo da alínea f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, verifica-se que, durante o processo, não foi suscitada qualquer ilegalidade com fundamento em violação de lei com valor reforçado.
No âmbito do exercício do seu direito de contraditório quanto à eventualidade de não conhecimento do objeto do recurso, os recorrentes disseram, quanto a esta questão, que «invocaram expressamente a respetiva ilegalidade [do despacho de não admissão do recurso interposto] por, em seu entendimento, representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no artigo 142.º, n.º 1, do CPTA (…)». Esta não é, contudo, uma ilegalidade apta a sustentar um recurso de fiscalização concreta. Como decorre da alínea c), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, aplicável por remissão da alínea f), cabe recurso de constitucionalidade de decisões que apliquem norma cuja ilegalidade, com fundamento em violação de lei com valor reforçado, haja sido suscitada durante o processo. Os atos legislativos dotados de valor reforçado estão previstos no artigo 112.º, n.º 3, da Constituição e incluem as leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços e aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.
Ora, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro (com as subsequentes alterações), não possui valor reforçado: não foi aprovado por lei orgânica; não integra matérias cuja aprovação careça, na Assembleia da República, de maioria de dois terços; nem possui o valor paramétrico qualificado que permite, à luz da Constituição, reconhecer a uma norma a qualidade de “valor reforçado”. Aliás, o parâmetro invocado pelos recorrentes – artigo 142.º, n.º 1, do CPTA – refere-se a preceito incluído no mesmo corpus legislativo em que se ancoram os preceitos aos quais se imputa a questão de inconstitucionalidade que integra, igualmente, o objeto do recurso, o que sempre inquinaria tal objeto, quanto à questão da ilegalidade, de um vício de raciocínio incontornável: a ilegalidade de determinada interpretação de preceitos de um diploma, por violação de lei de valor reforçado, resultaria, afinal, da violação de outro preceito desse mesmo diploma. Ora, a ilegalidade com fundamento em violação de lei com valor reforçado pressupõe uma relação de desvalor entre determinada norma no seu confronto com outro parâmetro que lhe é superior – por qualquer das circunstâncias elencadas no artigo 112.º, n.º 3, da Constituição. E, neste caso, estaria em causa uma questão resultante do confronto entre preceitos do mesmo diploma, portanto, entre preceitos de valor idêntico.
5. Vejamos agora o recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC. Este preceito refere-se aos recursos de decisões judiciais que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Para que possa ser proferida decisão de mérito sobre o objeto destas impugnações, é necessário que se apresentem devidamente observados diversos pressupostos específicos: a suscitação, durante o processo, e em termos processualmente adequados, de uma inconstitucionalidade normativa (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC), a qual se há-de reportar ao fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida.
A suscitação adequada da inconstitucionalidade afere-se pela efetiva constituição do tribunal recorrido num dever de pronúncia sobre o concreto problema de constitucionalidade que integra os autos. Isso implica que, sempre que o recorrente pretenda sindicar a constitucionalidade de determinada interpretação ou dimensão normativa, a enuncie, enquanto parâmetro decisório, perante o tribunal recorrido. Com efeito, e face ao poder-dever conferido pela Constituição a todos os tribunais no artigo 204.º, o recorrente deve determinar claramente, perante o tribunal a quo, qual o critério normativo que, em seu entender, se apresenta como violador de concretos parâmetros fundamentais.
Assim, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional. Como se referiu no Acórdão deste Tribunal n.º 367/94 – e constitui jurisprudência uniforme e constante –,
« [a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa, Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição.»
O objeto do presente recurso, tal como resulta da delimitação operada pelo requerimento de interposição do mesmo, integra «a inconstitucionalidade das normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA (…), interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor dá à mesma, mais considerando que sob o termo ‘”despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA, também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”».
Perante o Tribunal recorrido, contudo, os recorrentes nunca explicitaram o critério normativo cuja conformidade constitucional pretendem agora ver sindicada, sendo que tal conduta lhes era perfeitamente exigível face à decisão, ainda em primeira instância, de não admissão do recurso. Com efeito, logo nesse momento se tornou evidente a aplicação da interpretação cuja inconstitucionalidade foi agora submetida à apreciação deste Tribunal Constitucional, traduzida no facto de que, independentemente da autoqualificação assumida pelo ato judicial, das decisões singulares proferidas ao abrigo do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, cabe reclamação e não recurso, conforme o prescrito pelo n.º 2 do mesmo preceito.
Na reclamação que deduziram perante o Tribunal Central Administrativo Sul, os recorrentes limitaram-se, contudo, às seguintes referências genéricas:
«4 – É deste despacho que se reclama por, no entender dos ora reclamantes, ser ilegal (….) e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 268.º, n.º 4 da CRP e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e justiça vertidos nos artigos 2º e 20º da CRP.» (fls. 3)
«24 – Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia da tutela jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP» (fls. 8 e 9).
Em sede de reclamação do despacho de não admissão do recurso na primeira instância, os recorrentes limitaram-se a aludir a uma inconstitucionalidade de “interpretação”, sem, todavia, concretizarem que interpretação seria essa, designadamente identificando o critério normativo que, posteriormente vieram a integrar no requerimento de interposição do presente recurso.
E isso mesmo justifica que a decisão recorrida não tenha sequer apreciado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relacionada com o referido critério, tendo-se, pelo contrário, limitado a apreciar a problemática em questão sob o prisma da interpretação do direito infraconstitucional, fazendo apelo a jurisprudência anterior à apresentação da reclamação, pelo Recorrente, quer do Tribunal Central Administrativo Sul, quer do Supremo Tribunal Administrativo.
Neste mesmo sentido, e perante recursos em tudo idênticos ao dos autos, decidiram, designadamente, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 724/2013, 727/2013, 728/2013, 729/2013, 765/2013, 818/2013, 833/2013 e 834/2013.
Nestes termos, não tendo sido suscitada uma inconstitucionalidade durante o processo em moldes processualmente adequados, impõe-se concluir pelo não conhecimento do mérito do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 26 de março de 2014. – Pedro Machete – Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.