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Proc.nº 507/98 Plenário Rel.: Cons.Sousa e Brito
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. O presidente da Assembleia da Freguesia de Asseiceira, do concelho de Tomar, requereu ao Tribunal Constitucional, por carta enviada ao seu presidente no dia 7 de Maio, de acordo com o artigo 11º da Lei nº
49/90, de 24 de Agosto, a apreciação da legalidade e da constitucionalidade de uma consulta directa a nível local aos cidadãos eleitores sobre a eventual criação de uma nova freguesia sediada na localidade de Linhaceira. Anexou ao requerimento: cópia da proposta de constituição da comissão que elaborou a proposta da consulta, cópia da proposta com o texto da consulta que aquela comissão apresentou à Assembleia de Freguesia, cópia das actas das sessões da Assembleia de Freguesia da Asseiceira de 26 de Fevereiro de 1998, em que foi aprovada a constituição da referida comissão, e de 30 de Abril de 1998, em que foi tomada a deliberação de realizar a consulta, com o texto da proposta apresentada.
A carta deu entrada no Secretaria no dia 11 de Maio de
1998. No mesmo dia foi admitido o requerimento e feita a distribuição.
2. Dos elementos anexos ao requerimento resulta: que a proposta para a realização da consulta foi apresentada por uma comissão constituída por três membros, dois vogais e o presidente, da Assembleia de Freguesia de Asseiceira, na sessão ordinária desta Assembleia do dia 30 de Abril de 1998; que a deliberação sobre a realização da consulta foi tomada na mesma sessão pelos oito membros presentes da Assembleia, que é constituída por nove membros; que a proposta foi aprovada por seis votos a favor e duas abstenções; que o texto aprovado sem alterações, da proposta de pergunta a submeter aos cidadãos eleitores da freguesia de Asseiceira, é o seguinte: 'Concorda com a criação da freguesia da Linhaceira ?'.
II - Fundamentação
3. Não há irregularidades processuais. Com efeito: a proposta foi apresentada por um terço dos membros da Assembleia de freguesia em efectividade de funções (alínea b) do artigo 8º da Lei nº 49/90); a proposta continha uma única pergunta a submeter aos cidadãos eleitores da freguesia da Asseiceira pela respectiva autarquia (artigo 240º, nº 1 da Constituição e artigos 3º nº 1, 4º e 9º nº 1 da Lei nº 49/90); a deliberação sobre a realização da consulta foi tomada pela assembleia de freguesia à pluralidade de votos, em sessão ordinária, no prazo de 15 dias a contar da recepção da proposta (nº 2 do artigo 6º e artigo 10º da Lei nº 49/90); o requerimento do presidente da Assembleia de Freguesia foi enviado ao Tribunal Constitucional, dirigido ao respectivo presidente, no prazo de oito dias a contar da deliberação e vinha acompanhado da cópia do texto da deliberação e da acta da sessão em que foi tomada (nºs 1 e 2 do artigo 11º da Lei nº 49/90).
4. Importa averiguar se se trata de matéria incluída na competência da Assembleia de Freguesia.
Anteriormente à revisão constitucional de 1997, que formula a exigência de o referendo local incidir sobre «matérias incluídas nas competências» dos orgãos autárquicos, o texto em vigor, que vinha da revisão de
1982, acrescentava a exigência de se tratar de matéria incluída na 'competência exclusiva' desses órgãos. A Lei nº 49/90 repetiu esta última exigência no nº 1 do artigo 2º.
A jurisprudência constante deste Tribunal interpretou esta exigência de exclusividade como implicando: primeiro, uma competência
'deliberativa' do órgão autárquico, o que deixaria de fora do conceito as competências consultivas de órgãos autárquicos; segundo, que a competência deliberativa sobre a matéria não fosse atribuída pela Constituição ou pela lei a nenhum outro órgão. Competência consultiva das autarquias locais seria precisamente a que lhes é atribuída pelo artigo 3º, alínea d) da Lei nº 11/82, ao estabelecer que 'os pareceres e apreciações expressos pelos órgãos do poder local' devem ser tidos em conta pela Assembleia da República na apreciação das iniciativas legislativas sobre a criação ou a extinção das autarquias locais e fixação dos limites da respectiva circunscrição territorial (artigo 1º da mesma lei). Estes artigos foram revogados entretanto, na parte respeitante à criação de freguesias, pela Lei nº
8/93, de 5 Março, a qual no entanto apenas precisou neste ponto a mesma doutrina. Na verdade segundo o artigo 3º desta Lei: 'Na apreciação das iniciativas legislativas que visem a criação de freguesias deve a Assembleia da República ter em conta: a) A vontade das populações abrangidas, expressa através de parecer dos órgãos autárquicos representativos a que alude a alínea e) do nº
1 do artigo 7º desta lei...'. Segundo esta alínea, a 'cópia autenticada das actas das reuniões dos órgãos deliberativos e executivos do município e freguesias envolvidos em que foi emitido parecer sobre a criação da futura freguesia' é um dos elementos do processo a instruir para efeitos de criação de freguesias. Por outro lado, na matéria de criação, extinção e modificação de autarquias locais a Constituição atribui à Assembleia da República uma competência absolutamente reservada
(artigo 167º, alínea m) da revisão de 1982, a partir da revisão de 1997, artigo
164º, alínea n) e artigo 238º, nº 4 da revisão de 1982, a partir de revisão de
1997, artigo 236º nº4).
Em consequência, e precisamente em casos de consultas locais sobre a criação de freguesias, deliberadas pelos órgãos deliberativos
(num caso a Assembleia Municipal de Peniche, no outro a Assembleia de Freguesia de Arazede) das autarquias que as abrangiam, este Tribunal pronunciou-se pela manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade da consulta (Acórdãos nº 238/91 e
242/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19, pp.673 ss. e 687 ss..), por violação dos artigos 238º, nº 4 da Constituição e 1º da Lei nº 11/82. A mesma interpretação da exclusividade da competência esteve na base de pronúncias análogas sobre outras matérias, como o projecto de construção, pela Associação de Municípios do Vale do Ave, de uma estação de resíduos sólidos, na área da freguesia de Riba de Ave, cuja assembleia de freguesia deliberou a consulta
(Acórdão nº 432/91, Acórdãos cit., 19, pp. 627 ss..), a integração de duas freguesias do município (Lousada), cuja assembleia municipal deliberou a consulta, no eventual novo concelho de Vizela (Acórdão nº 498/94, Diário da República, II série, de 23.11.1994, pp. 11783), construção de uma unidade de incineração e tratamento físico-químico de resíduos industriais no município de Estarreja, cuja assembleia municipal deliberou
a consulta (Acórdão nº 938/96, Diário da República, II série, de 5.9.1996, p.
12544 ss..).
Os três primeiros acórdãos referidos foram obtidos por maioria, com voto de vencido do Conselheiro António Vitorino, segundo o qual:
' o que a Constituição e a lei pretenderam com o requisito delimitador do objecto das consultas locais («competências exclusivas») foi tão somente evitar que fossem submetidas a referendo local matérias alheias à esfera de competência da freguesia, do município ou da região administrativa (fora das suas atribuições), matérias onde a Constituição e a lei não prevejam expressamente qualquer forma de participação dos órgãos autárquicos e onde o referendo local apenas poderia constituir um meio (ilegítimo) de pressão sobre os órgãos políticos chamados a sobre elas decidirem (v.g., o traçado de uma auto-estrada e a localização dos respectivos nós de acesso, que sendo competência exclusiva do Governo não pressuponha, em termos legais, qualquer participação das autarquias, ainda que a decisão em causa tenha inegável relevo no plano de vida local). Tal como, em meu entender, pretendeu excluir referendos locais promovidos por uma assembleia de freguesia sobre matérias da «exclusiva competência» do município, matérias que não obstante terem repercussão na vida das populações dessa freguesia cabem
apenas na esfera de decisão do município sem qualquer tipo de participação dos
órgãos autárquicos de nível inferior (cfr. artigo 6º da Lei nº 49/90).
Mas [...] tal restrição já não me parece relevar nos casos em que é a própria Constituição ou a lei que atribuem expressamente a um órgão autárquico uma competência própria de participação, seja através de um voto obrigatório, seja a título meramente consultivo, num processo de decisão (legislativo ou meramente administrativo) a cargo de outro órgão do Estado. (Acórdãos cit.,
19,p.681).'
Ora a revisão de 1997, ao eliminar a palavra 'exclusiva' do nº 3 do anterior artigo 241º, seguindo neste ponto o Projecto de Revisão Constitucional nº 3/VII, apresentado pelo PS, teve historicamente a intenção de resolver a disputa no sentido do voto de vencido. Com a palavra eliminou-se também a base de sustentação do argumento do tribunal, pelo que haverá hoje que entender que são matérias de referendo local, nos termos do actual artigo 240º nº 1, as da competência meramente consultiva dos órgãos das autarquias locais. Em face da segunda parte do nº 1 do artigo 240º, restará, contudo, saber, se se deve ter por implicitamente revogado nessa parte o nº 1 do
artigo 2º da Lei nº 49/90 ou se, desaparecido o obstáculo constitucional, a proibição legal ainda se mantém.
5. O mesmo artigo 240º, nº 1 da Constituição condiciona ainda a competência para deliberar o referendo aos casos, aos termos e à eficácia que a lei estabelecer.
No caso presente há que atender, não apenas à Lei nº
49/90, na parte em que não contraria o conteúdo actual de Constituição, mas, com idêntica ressalva, à Lei nº 8/93. Dispõe o artigo 7º desta Lei :
'1 - O processo a instruir para efeitos da criação de freguesias é organizado com base nos seguintes elementos: a) Fundamentação do projecto ou proposta de lei com base nos elementos de apreciação enunciados no artigo 3º; b) Verificação de critérios e requisitos técnicos exigidos nos termos do artigo
5º; c) Indicação da denominação e da sede de propostas para a futura freguesia; d) Descrição minuciosa dos limites territoriais da futura freguesia, acompanhada da representação cartográfica, pelo menos à escala de 1:25000; e) Cópia autenticada das actas das reuniões dos órgãos deliberativos e executivos do município e freguesias envolvidos em que foi emitido parecer sobre a criação da futura
freguesia.
2 - Tendo em vista o que dispõe esta lei e designadamente o seu artigo 5º, deve a Assembleia da República solicitar ao Governo, o qual fornecerá, sob a forma de relatório e no prazo máximo de 60 dias, os elementos com interesse para o processo.
3 - Verificada a existência de todos os elementos necessários à instrução do processo, a Assembleia da República solicitará aos órgãos do poder local os respectivos pareceres, os quais deverão ser emitidos no prazo de 60 dias.
Do nº 3 do artigo 7º resulta que no processo de criação de freguesias a Lei nº 8/93 só prevê o exercício da competência consultiva dos
órgãos deliberativos e executivos do município e freguesias envolvidos (cfr. alínea e) do nº1) depois de verificada a existência de todos os elementos necessários à instrução do processo. É claro que são estes os pareceres a que se referem também a alínea a) e a alínea e) do nº 1 do artigo 7º, que integram o processo a instruir para 'apreciação das iniciativas legislativas que visem a criação de freguesias' por parte da Assembleia da República, que os deve ter em conta, nos termos do artigo 3º. Sob pena de circularidade, não pode ser verificada a sua existência antes de serem produzidos. Tais pareceres não integram, portanto, os elementos cuja existência
se tem por verificada antes da solicitação dos pareceres, segundo o nº 3 do artigo 7º. Mas já se terá então que dar por verificada, dada a remissão do nº 3 para a alínea b) do nº 1, a «verificação de critérios e requisitos técnicos exigidos nos termos do artigo 5º», o qual dispõe :
'1 - A criação de freguesias fica condiciona-da à verificação cumulativa dos seguintes requisitos : a) Número de eleitores da freguesia a construir não inferior a 800, nos municípios com densidade populacional inferior a 100 eleitores por quilómetro quadrado, a 1200, nos municípios com densidade populacional compreendida entre
100 e 199 eleitores por quilómetro quadrado, a 1600, nos municípios com densidade populacional compreendida entre 200 e 499 eleitores por qulómetro quadrado, e a 2000, nos municípios com densidade populacional igual ou superior a 500 eleitores por quilómetro quadrado; b) Número de eleitores da sede da futura freguesia não inferior a 150; c) Número de tipos de serviços e estabeleci-mentos de comércio e de organismos de índole cultural, artística e recreativa existentes na área da futura freguesia não inferior a 4; d) Obtenção, de acordo com os níveis de ponderação constantes do quadro anexo, de,
pelo menos, 10 pontos, para as freguesias a constituir em municípios com densidade populacional compreendida entre 100 e 199 eleitores por quilómetro quadrado, 30 pontos, em municípios com densidade populacional compreendida entre
200 e 499 eleitores por quilómetro quadrado, e 0 pontos, em municípios com densidade populacional igual ou superior a 500 eleitores por quilómetro quadrado.
2 - Nas sedes de município e nos centros populacionais de mais de 7500 eleitores a criação de freguesias fica condicionada à verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) Número de eleitores na futura freguesia não inferior a 7000 nos municípios de Lisboa e Porto e a 3500 nos restantes municípios; b) Taxa de variação demográfica positiva e superior a 5% na área da futura circunscrição, observada entre os dois últimos recenseamentos eleitorais intervalados de cinco anos.
3 - A criação de freguesias não pode privar as freguesias de origem dos recursos indispensáveis à sua manutenção nem da verificação da globalidade dos requisitos exigidos nos números anteriores.
4 - A observância dos requisitos mínimos estabelecidos para a criação de freguesias não é exigível para as que se constituam
mediante a fusão de duas ou mais freguesias preexistentes.'
Dispondo o artigo 5º que os requisitos que enumera condicionam a criação de freguesias que não se constituam mediante a fusão de duas ou mais freguesias preexistentes, não faria sentido que os órgãos autárquicos fossem admitidos a pronunciar-se consultivamente sobre uma proposta de criação de freguesia, sem verificação prévia da legalidade da proposta. Do mesmo modo, não faria sentido admitir um referendo local sobre a criação de uma freguesia onde não se verificassem os requisitos legais da sua criação. Caso contrário, o povo seria chamado a pronunciar-se ao engano, julgando deliberar consultivamente sobre a criação de uma freguesia, quando se tratava de uma proposta de consulta não séria, porque afinal a freguesia não poderia ser criada. O referendo seria então apenas um meio de contestar a lei de criação de freguesias e, afinal, o artigo 240º, nº 1 da Constituição, o que não pode ter sido querido por esta.
Assim sendo, e embora a letra do artigo 7º não exclua a possibilidade de pareceres dos órgãos autárquicos anteriores aos referidos no seu nº 3, há que entender que tais pareceres estão teleologicamente excluídos no processo legal de criação de freguesias. Não tendo os órgãos autárquicos nessas
circunstâncias competência para se pronunciar sobre a criação de uma freguesia também não a têm para deliberar sobre a realização de um referendo local com esse objecto nas mesmas circunstâncias.
Nada mais falta averiguar para o Tribunal poder concluir pela ilegalidade do referendo local proposto.
Conclusão
Pelas razões expostas, o Tribunal decide pronunciar-se pela ilegalidade do referendo local sobre a criação da freguesia da Linhaceira, decidido realizar por deliberação da Assembleia de Freguesia de Asseiceira, do concelho de Tomar, de 30 de Abril de 1998, por violação do nº 3 do artigo 7º da Lei nº 8/93, de 5 de Março.
Lisboa, 26 de Maio de 1998 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vitor Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Beleza Bravo Serra Artur Mauricio Messias Bento Luis Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa