Imprimir acórdão
Proc. nº 423/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I Relatório
1. M. D. deduziu embargos de terceiro por apenso ao processo de execução de sentença de despejo a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras contra M. S., G. M., A. M. e M. G..
O Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, por sentença de 17 de Dezembro de 1993, julgou improcedentes os embargos de terceiro, em virtude de a embargante não ter feito prova da sua qualidade de arrendatária.
2. M. D. interpôs recurso da sentença de 17 de Dezembro de 1993 para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso que foi indeferido por despacho de
23 de Fevereiro de 1994 (fls. 60).
A embargante reclamou do despacho de não admissão do recurso, reclamação que foi julgada procedente, por decisão de 9 de Dezembro de 1995
(fls. 92 e ss.).
Nas alegações de recurso apresentadas, a embargante sustentou a derrogação da norma contida no artigo 1088º do Código Civil pelo Decreto-Lei nº
13/86, de 23 de Janeiro, sob pena de aquela norma dever ser considerada inconstitucional, por violação do direito à habitação.
As recorridas suscitaram as questões prévias da inutilidade superveniente da lide e da ilegitimidade, uma vez que o despejo já foi executado e que as apeladas já não são proprietárias do imóvel.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 9 de Maio de 1996, não tomou conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a decisão recorrida não ser susceptível de recurso ordinário (artigos 678º, nº1 e 689º, nº 2, do Código de Processo Civil).
M. D. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 9 de Maio de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 678º do Código de Processo Civil (questão que a recorrente tinha suscitado na reclamação de fls.71 e ss.).
O recurso de constitucionalidade não foi admitido, tendo a recorrente reclamado, ao abrigo dos artigos 76º, nº4, e 77º, da Lei do Tribunal Constitucional.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação (despacho de fls.173 e ss.), foi proferido acórdão que atendeu a reclamação (acórdão de 24 de Abril de
1997).
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente alegou, tirando as seguintes conclusões:
1 - A Recorrente propugna a defesa do ?direito? que considera assistir-lhe - e que é o de ?habitação (seu e do agregado familiar: duas filhas menores).
2 - Para caso ?essencialmente semelhante? (qual seja o da ?acção de despejo? onde também está em litígio o ?direito à habitação?) a legislação ordinária (cfr. art. 980º, nº 1, do C. P. Civil) consagra mais do que um grau da jurisdição.
3 ? Assim, e salvo o merecido respeito, na interpretação e aplicação do douto acórdão recorrido, o art. 678º, nº 1, do C. P. Civil (conectadamente ao art. 689º, nº 2, do mesmo compêndio) é materialmente inconstitucional, por colisão com o que promana dos arts. 13º, 20º e 277º, nº 1, da CRP, associadamente com o art. 980º, nº 1, do C. P. Civil.
Por seu turno, as recorridas contra-alegaram, concluindo nos seguintes termos:
a) O despejo efectivou-se judicialmente, em 14.04.94, na presença do funcionário judicial e obrigando as recorridas a dispenderem toda uma série de despesas e de meios técnicos que tiveram de colocar à disposição do tribunal.
b) Para confirmação do referido na alínea anterior, deverá proceder-se à consulta e análise de todo o processo, desde 1990, designadamente, processo de despejo, embargos de terceiro e execução.
c) Estamos pois, perante um manifesto caso de inutilidade superveniente da lide. Esta acção é (foi) uma acção de despejo ou mais concretamente, discutem-se aqui embargos de terceiro, na sequência de uma acção de despejo, porém, o despejo já está concretizada e foi-o judicialmente.
d) As recorridas já não são, há mais de dois anos, proprietárias do prédio em discussão. São por isso partes ilegítimas na presente lide, não podendo ser chamadas a discutir um assunto que não lhes diz respeito.
Nestes termos, deverá confirmar-se o Acórdão da Relação de Lisboa e proceder-se à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide e dar por procedente a excepção da ilegitimidade das recorridas, condenando-se a apelada nas custas deste processo a que indevidamente deu causa.
Em resposta à questão prévia suscitada pelas recorridas, a recorrente sustentou o seguinte:
1º - O despejo, compelida e materialmente concretizado, é, dizendo desta forma por mera comodidade de exposição, ?acto consequente? daqueloutro que não admitiu o recurso interposto da douta sentença que negou provimento aos embargos deduzidos pela ora Recorrente.
2º - Porém, a merecer provimento o presente recurso (como a Recorrente propugna) haverá lugar ao julgamento do aludido recurso interposto da douta sentença que negou provimento aos embargos.
3º - E, então, na execução do julgado, e sendo ele favorável (como a ora Recorrente confia), haverá que ser plenamente reconstituída a ?situação actual hipotética? perante os respectivos intervenientes, com os inerentes ressarcimentos em caso de ocorrência de ?causa legítima de inexecução material?.
4º - Assim, e salvo o merecido respeito, a continuação da lide mantém para a ora Recorrente interesse e utilidade, aliás não reprovados pela ordem jurídica.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia
5. As recorridas sustentam que o presente recurso de constitucionalidade é inútil, em virtude de o despejo já se ter realizado. As recorridas sustentam também que são partes ilegítimas, já que o imóvel foi vendido ?há mais de dois anos?.
O presente recurso de constitucionalidade foi interposto nos autos de embargos de terceiro, deduzidos pela ora recorrente na acção de despejo do imóvel por si ocupado.
Se os recursos interpostos pela recorrente obtiverem provimento, as decisões proferidas serão sucessivamente revogadas, acabando a embargante por ver reconhecido o seu direito, independentemente de o despejo já se ter realizado ou não. Tal direito, a ser reconhecido, será exercitável contra as proprietárias do imóvel no momento em que ocorreu a hipotética lesão.
Tem, nessa medida, interesse o conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, no qual as recorridas são partes legítimas.
Não procedem, portanto, as questões prévias suscitadas pelas recorridas. B Apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 678º, nº 1, do Código de Processo Civil, interpretado articuladamente com o artigo 689º, nº
2, do mesmo diploma
6. A recorrente alega que a interpretação dos artigos 678º, nº1, e
689º, nº 2, do Código de Processo Civil, segundo a qual da decisão dos embargos de terceiro (com o valor de 36.000$00) deduzidos numa acção de despejo não se pode recorrer para o Tribunal da Relação, é inconstitucional, por violação dos artigos 13º, 20º e 277º, nº 1, da Constituição. A recorrente invoca, para fundamentar a violação do princípio da igualdade, a norma contida no artigo
980º, nº 1, do Código de Processo Civil.
O artigo 980º do Código de Processo Civil foi expressamente revogado pelo artigo 3º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro
(diploma que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano). No entanto, o artigo 57º do Regime do Arrendamento Urbano consagra a possibilidade de recurso nas acções de despejo, independentemente do valor da causa, pelo que o argumento da recorrente mantém o suporte normativo.
7. A recorrente deduziu embargos de terceiros na acção de despejo, invocando a qualidade de arrendatária. No entanto, não logrou provar o contrato de arrendamento, pelo que os embargos foram indeferidos.
Na decisão da questão de constitucionalidade que agora se aprecia, há que tomar em consideração que a procedência de uma acção de despejo depende da subsistência do contrato de arrendamento. Nessa acção, o arrendatário litiga pelo reconhecimento do direito de gozo relativamente ao prédio arrendado. Se perder na 1ª instância, independentemente do valor da acção, e uma vez que está em causa o direito à habitação, poderá sempre interpor recurso da decisão para o Tribunal da Relação (artigo 57º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano).
Nos presentes autos, a recorrente também pretende ver reconhecida a sua qualidade de arrendatária. Na medida em que a acção de despejo não foi instaurada contra si, e dela não teria que ser notificada, o único mecanismo processual de que disporia para fazer valer os seus interesses seria a acção de embargos de terceiro.
Assim, a situação da embargante neste processo é substancialmente idêntica à situação de um qualquer réu numa acção de despejo. Com efeito, em ambos os casos os sujeitos pretendem ver reconhecida a validade da posição de arrendatário que invocam. A diferença entre as duas situações consiste no mecanismo processual utilizável para provar o direito de gozo do prédio arrendado. Mas a utilização de um ou de outro mecanismo processual pode depender de o proprietário do prédio intentar ou não a acção de despejo contra o sujeito que alega ser arrendatário. Tal circunstância, porque resultante de uma opção do proprietário, alheia à vontade do arrendatário, não altera materialmente o interesse daquele que invoca essa qualidade, não podendo, nessa medida, repercutir-se na sua posição processual. Não existe assim, fundamento para um tratamento substancialmente diferenciado das duas situações.
A admitir-se o contrário, a interposição da acção de despejo contra um determinado sujeito poderia acarretar uma debilitação arbitrária da posição processual do arrendatário.
8. Conclui-se, pois, que a interpretação normativa que fundamenta a não admissão do recurso interposto da decisão dos embargos de terceiro deduzidos na acção de despejo dos presentes autos viola o princípio da igualdade, na dimensão de igualdade no acesso aos meios processuais de realização do Direito, que emana do artigo 13º da Constituição em conjugação com o artigo 20º do mesmo diploma.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: Desatender a questão prévia suscitada pelas recorridas; Julgar inconstitucional a interpretação das normas constantes dos artigos 678º, nº 1, e 689º, nº 2, do Código de Processo Civil, segundo a qual da decisão dos embargos de terceiro, deduzidos contra execução de sentença de despejo em que o recorrente invoca a qualidade de arrendatário, não é admissível o recurso para o Tribunal da Relação (nos casos em que o valor da causa seja inferior ao da alçada da Relação), diferentemente do estipulado no artigo 57º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano, por violação dos artigos 13º e 20º da Constituição; Conceder provimento ao recurso, determinando, consequentemente, a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 18 de Novembro de 1998. Maria Fernanda palma Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa