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Proc. nº 215/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 16 de Agosto de 1996, a COMPANHIA DE SEGUROS B..., S.A., fez entrar petição de acção declarativa com processo sumário no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, contra a SOCIEDADE A..., LDA, com sede em Santo Estevão, Chaves, pretendendo a condenação da ré no pagamento de prémios de seguros em dívida, no montante de 195.614$00 e os correspondentes juros.
Distribuída a acção ao 10º Juízo Cível de Lisboa e citada a sociedade ré, veio esta apresentar contestação em que aceitou a matéria de facto constante dos dois primeiros artigos da petição inicial (exercício pela autora da indústria de seguros; celebração de contratos de seguros de acidentes de trabalho por acordo entre autora e ré nos termos de certa apólice e com início em 10 de Novembro de 1970) e de parte do artigo 4 no que toca à anulação do seguro (verificada em 21 de Maio de 1994), alegando não ser verdade que estivessem em débito os montantes indicados no artigo 3º, não sendo esse o valor dos prémios respectivos como decorreria do documento junto com a petição inicial (artigo 2º da contestação), afirmando ainda não ser verdade que a autora tivesse procedido aos avisos referidos no artigo 5º da petição inicial. Concluiu no sentido da improcedência do pedido.
Através de saneador-sentença proferido em 26 de Novembro de 1996 a acção foi julgada procedente e provada, tendo o Senhor Juiz considerado que a ré se limitara na contestação a negar os factos articulados pela autora. Ora, segundo esta decisão, 'ao contestar pela forma como o fez, limitando-se a negar os factos articulados pela A., a Ré deixou de cumprir o ónus de impugnação especificada imposta pela 1ª parte do nº 1 do art. 490º do Cód. Proc. Civil, tudo se passando como se não tivesse contestado, pois que, conforme expressamente se dispõe no nº 3 do mesmo artigo, não é admissível a contestação por negação' (a fls. 18).
Notificada desta decisão, dela interpôs recurso a ré para o Tribunal Constitucional, considerando que o art. 490º, nº 1, conjugado com o nº 3, do Código de Processo Civil, interpretado 'no sentido de que a negação dos factos da p. i. nos termos constantes dos arts. 2º e 3º da contestação de fls.... corresponde à violação do ónus de impugnação especificada, que deve levar a que se julgue que os factos em causa estão admitidos por acordo', era inconstitucional por violação do princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art. 20º da Constituição. Nesse requerimento, considerou que não tivera oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, tendo sido confrontado com uma decisão 'a todos os títulos surpreendente'. Aí se acrescentou que, se a ré 'não pudesse contestar como contestou', não poderia
'exercer eficazmente o seu direito de se opor ao pedido do A. e a ver julgada pelo tribunal a posição jurídica legítima que expressou', situação que seria
'especialmente flagrante relativamente à matéria do art. 3º da contestação, que contesta a matéria do art. 5º da p.i.'.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 30, tendo aí sido afirmado o seguinte pelo Senhor Juiz recorrido:
' Em bom rigor, não se mostram satisfeitas as exigências do art. 75º-A da Lei nº
28/82, pois que a inconstitucionalidade sustentada pela Ré não foi suscitada em qualquer outra peça processual, para além do requerimento de interposição ora em apreciação. Não obstante, não poderemos deixar de admitir que, em sede de direito processual e tendo os autos sido decididos imediatamente no despacho saneador, no caso em apreço não poderia antes ter sido suscitada a questão de inconstitucionalidade nos termos em que o foi. Posto isto e ponderando ainda que o valor da causa veda a possibilidade de recurso ordinário, opta-se por admitir o recurso para o Tribunal Constitucional.'
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
' A - A decisão proferida e ora recorrida interpreta o nº 1 do art. 490º do C.P.C. (antes de revisto), devidamente conjugado com o respectivo nº 3, no sentido de que a negação especificada de factos devidamente concretizados corresponde à violação do ónus de impugnação especificada e à admissão de que há acordo quanto à sua existência. B - Tal entendimento consagra uma restrição intolerável à actuação processual das partes, que, nesse contexto, não podem adequada e eficazmente exercer os seus direitos e ver julgada a lide que estão envolvidos. C - O entendimento dado aos segmentos acima referidos do art. 490º do CPC viola o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais que o art. 20º da Constituição consagra.' (a fls. 40-41)
A seguradora, por seu turno, concluiu as contra-alegações do seguinte modo:
'1. A Recorrente não suscita, e nunca suscitou a inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs. 1 e 3 do Art. 490º do Cód. Proc. Civil.
2. Questionou, isso e sim a interpretação e aplicação que o Mtº. Juiz «a quo» fez do Direito.
3. Ao recorrer como o fez, a Recorrente, ao questionar a interpretação
«inconstitucional» das normas, e não a inconstitucionalidade das próprias normas, não respeitou a alínea b) do nº 1 do Art. 70º do Lei 28/82 de 15 de Novembro, razão pela qual se impugna a decisão de admitir o presente recurso.
4. As normas constantes dos nºs. 1 e 3 do Art. 490º do Cód. Proc. Civil são a garantia da realização da Justiça através do conhecimento pelo juiz da verdade da situação de facto, pelo que são conformes à Constituição, não se traduzindo numa restrição intolerável ao princípio do acesso ao direito e aos tribunais.
5. A Recorrente na sua contestação limitou-se a negar indiscriminadamente os factos que na petição inicial lhe pareceram desfavoráveis sem cuidar de assumir uma posição construtiva para o apuramento da verdade da situação de facto.
6. A decisão do Mtº. Juiz «a quo», ao entender o articulado da Recorrente como uma contestação por negação, fez perfeita aplicação da Lei e da Constituição pelo que, não sendo merecedora de qualquer reparo, deverá ser integralmente confirmada.' (a fls. 50-51 dos autos)
Ouvida sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso, a recorrente considerou que a mesma devia ser desatendida, por carecer de fundamento, visto que, 'num grande número de casos julgados pelo Tribunal Constitucional o que está exactamente em causa não é uma norma, por si só considerada, mas o entendimento que determinado Tribunal deu ao preceito em apreço' (a fls. 53).
3. Foram corridos os vistos legais.
Começar-se-á pela apreciação da questão prévia da admissibilidade do recurso.
II
4. Para dilucidar tal questão prévia, impõe-se, a título preliminar, referir a norma do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que estabelece o indicado ónus de impugnação especificada, dando conta do sentido que a doutrina e a jurisprudência atribuíram a tal ónus.
Dispunha o nº 1 do art. 490º do Código de Processo Civil, na versão em vigor na data em que foi proferida a decisão recorrida:
' O réu deve tomar posição definida perante cada um dos factos articulados na petição; considerando-se admitidos por acordo os factos que não foram impugnados especificadamente, salvo se estiverem em manifesta oposição com a defesa considerada no seu conjunto, ou se não for admissível confissão sobre eles, ou se puderem ser provados por documento escrito.'
O sentido deste nº 1 era explicitado pelos subsequentes nºs. 2 e 3 do artigo, na aludida versão, com o seguinte teor:
'2. Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.
3. Não é admissível a contestação por negação.'
5. No Código de Processo Civil de 1939 foi este ónus de impugnação especificada estabelecido no art. 494º do diploma, correspondendo o corpo desse art. 494º ao nº 1 do art. 490º do Código de 1961, com ligeiras alterações de redacção. A solução introduzida em 1939 acolheu, de resto, inovação introduzida por um diploma de 1927, integrado na chamada Reforma de
1926-1932.
Alberto dos Reis, ao comentar aquele artigo, explicava as finalidades visadas pelo legislador de 1939:
' O artigo dita este comando: o réu deve tomar posição definida quanto aos factos articulados pelo autor. O que quer isto dizer? Quer dizer que, perante os factos articulados pelo autor na petição inicial, o réu não pode ficar numa atitude de silêncio, de indiferença ou de passividade; tem de se pronunciar sobre eles, tem de declarar se os aceita como exactos, ou se os repele como contrários à verdade. Se nada disser, entende-se que os admite como verdadeiros [...] Estamos perante uma das alterações mais profundas introduzidas no sistema do Código de 1876. Segundo este Código não careciam as partes, nas acções de processo ordinário, de tomar posição quanto aos factos articulados pela parte contrária; se o réu nada declarasse, na contestação, quanto aos factos articulados na petição inicial, não se concluía daí que os tinha como exactos, isto é, nem por isso ficava o autor dispensado de fazer a prova deles' (Código de Processo Civil Anotado, III, 3ª ed., reimpressão, Coimbra, 1981, pág. 50)
Procurando justificar o ónus de impugnação acolhido nesse art. 494º, Alberto dos Reis citava Carnelutti, autor que afirma ser uma 'questão delicada de política processual... saber se devem considerar-se admitidos pela parte os factos sobre os quais ela se não pronuncia', funcionando tal ónus como 'estímulo para a parte comparecer e falar claro sobre aquilo que pode prejudicá-la'. E, de forma sugestiva, o mesmo processualista português afirmava que o direito processual moderno tinha não só horror à revelia do réu ('porque o estado de revelia priva o tribunal duma fonte de informação e de conhecimento que pode ser preciosa para a formação da sentença'), como também ao silêncio da parte que comparecia.
E, tentando precisar, a noção de impugnação especificada, Alberto dos Reis ligava a proibição da contestação por negação àquela noção, referindo o debate doutrinal acerca da jurisprudência formada sobre o § 1º, alínea c), do Decreto nº 13979, de 25 de Julho de 1927, onde se estabelecera inovatoriamente que se consideravam admitidos por acordo 'os factos que não tenham sido especialmente impugnados pela parte contrária'. E dava o seguinte exemplo:
' Suponha-se, porém, que o réu usa de forma diferente [da de contestação por negação]. No fim da contestação articulada escreve: impugnam-se especificamente, um por um, todos os outros factos de petição a que se não fez referência nos artigos anteriores. Que valor tem essa impugnação? Não tem valor algum, segundo creio, porque não satisfaz a exigência do art.
494º. Para que uma impugnação possa considerar-se especificada não basta que se diga que o é; é necessário que realmente o seja.' (ob. cit., pág. 53)
Distinguindo duas situações de inexactidão dos factos narrados pelo autor que poderiam conceber-se, a de o facto ser 'pura invenção ou ficção do autor', por um lado, a de o facto ter ocorrido 'mas em termos diferentes daqueles que o autor refere', por outro (inexactidão absoluta e relativa, respectivamente), ensinava o mesmo comentador:
' Se a inexactidão reveste o primeiro aspecto, o réu poderá limitar-se a negar o facto, acentuando que ele só teve existência na fantasia do autor; se é da segunda espécie, deve o réu procurar restabelecer a verdade, narrando o que realmente ocorreu. Mesmo na 1ª hipótese, convirá ao réu, se lhe for possível, alegar facto ou factos incompatíveis com a narração do autor (negatio per positionem).' (ibidem)
Também Manuel de Andrade, abordando o ónus de impugnação especificada, ensinava que a especificação implicava que o réu tivesse de
'individualizar cada um desses factos, já directamente, já mencionando os correspondentes artigos da petição inicial'. E acrescentava este processualista:
'não lhe basta contrariá-los de modo genérico - nem mesmo dizendo que os impugna um por um, sem todavia os identificar por algum dos meios apontados. Dispensa-se a impugnação especificada quanto aos factos «que estiverem em manifesta oposição com a defesa considerada no seu conjunto. Dispensa-se qualquer impugnação quanto aos factos inconfessáveis (hoc sensu; cfr. o art. 354º do Cód. Civil) ou que tenham de ser provados por documento escrito (cfr. o art. 490ª, nº 1). Por outro lado (art. 490º, nº 2) o simples desconhecimento só vale como impugnação tratando-se de factos não pessoais ao Réu (acções ou percepções suas) de outro modo será requerida a negação formal' (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra,
1979, pág. 142).
Jacinto Rodrigues Bastos, procurando explicitar o sentido da imposição do ónus de impugnação especificada, escrevia que tal impugnação 'é a que se faz individualizando os factos cuja veracidade se contesta - cada um dos factos, como diz a lei - pelo que a oposição global (no todo ou em parte) dos factos articulados, não é eficaz; não carece, porém, essa contradição, de ser fundamentada; a simples negação da veracidade do facto satisfaz' (Notas ao Código de Processo Civil, III, Lisboa, 1972, pág. 52).
Na jurisprudência mais recente era acolhida uma orientação menos exigente no entendimento do ónus de impugnação justificada, afirmando-se correntemente que tal ónus 'não obriga o demandado a utilizar necessariamente uma negação «per positionem», sendo perfeitamente legítima e eficaz, no plano processual, a negação simples, desde que dirigida, concreta e definitivamente, a factos determinados dos articulados' (acórdão da Relação do Porto de 11 de Dezembro de 1984, na Colectânea de Jurisprudência, ano IX, tomo 5, pág. 268), ou que 'a impugnação especificada implica que a parte negue certos e determinados factos, podendo, porém, deixar de ser motivada e operar-se mediante a negação da matéria contida em certos e determinados artigos de articulado da parte contrária' (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 1984, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 334, pág. 456). Alguma jurisprudência distinguia, na linha de Alberto Reis, o nível de exigência da impugnação, consoante se estivesse perante uma falsidade ou inexactidão absoluta - em que bastava a negação rotunda - e a inexactidão relativa em que se impunha ao contestante que procurasse 'restabelecer a verdade, narrando o que realmente aconteceu' (acórdão da Relação do Porto de 7 de Outubro de 1982, no Boletim, nº
320, pág. 455).
6. Com a reforma intercalar de 1985 (Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho) passou a admitir-se, através de aditamento do novo nº 5 do art.
490º, que a impugnação, em vez de se referir directamente aos factos, se fizesse, total ou parcialmente, mediante simples menção dos números dos artigos da petição inicial em que se narravam os factos contestados.
Segundo Antunes Varela, que presidiu à comissão que elaborou este diploma, o objectivo da impugnação especificada ou seja, o desejo de que a parte assuma 'posição definida perante cada um dos factos articulados pelo autor', não foi 'prejudicado pela admissão da impugnação mediante simples menção dos números dos artigos da petição onde vêm referidos os factos que se impugnam (art. 490º,
5), visto se manter o dever de assumir posição definida quando à veracidade ou realidade dos factos alegados pela contraparte (Manual de Processo Civil, em co-autoria com J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág.
287, nota 2). É, porém, controvertido saber se pode falar-se, como o faz Antunes Varela, na existência de um dever de verdade das partes (cfr. J. Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra, 1991, págs. 468-469, nota
16).
Parece, porém, evidente que a alteração legislativa de 1985 acolheu a orientação jurisprudencial mais recente e mais favorável, mantendo-se, porém, a exigência de especificação que Anselmo de Castro qualificava de solução que talvez pecasse por 'excessivo rigor' (Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra, 1982, pág. 210, autor que compara a solução com o § 138º da lei processual civil alemã).
7. Culminando esta solução legislativa, o Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro, veio, como se refere no seu preâmbulo,
'maleabilizar' o ónus de impugnação especificada, 'de forma que a verdade processual reproduza a verdade material subjacente'.
Assim, o nº 1 do art. 490º do Código de Processo Civil, na redacção deste diploma, limita-se a estabelecer que, 'ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição', deixando de exigir uma impugnação específicada, de carácter eminentemente formal (cfr., sobre a inovação, M. Teixeira de Sousa, Estudo sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, págs. 288 e segs.).
8. Face ao que fica dito, entende-se que é possível desde já apreciar as questões prévias suscitadas.
Sendo rigorosamente verdade que a ré ora recorrente, na contestação, não suscitou 'preventivamente' a questão da inconstitucionalidade do art. 490º, nº 1, na interpretação que veio a ser perfilhada no despacho saneador em recurso, a verdade é que estava dispensado de o fazer, não lhe sendo exigível vaticinar que o tribunal a quo iria considerar que, sendo impugnadas especificadamente certas afirmações da autora, constantes de petição inicial, em artigos diversos da contestação, o réu não cumprira o ónus da impugnação especificada.
Ocorre, pois, uma situação do tipo daquelas em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido a dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo. Pode dizer-se que a interpretação adoptada pelo despacho recorrido tem carácter surpreendente, apartando-se da orientação perfilhada pela jurisprudência mais recente, nomeadamente a partir do momento em que foi aditado ao art. 490º referido o novo nº 5 (pela Reforma Intercalar de 1985). Nessa medida esta questão prévia suscitada pela autora recorrida não merece atendimento (no sentido deste entendimento podem citar-se, entre os mais recentes, os acórdãos nºs. 181/96, ainda inédito, e 368/97, in Diário da República, II Série, nº 238, de 14 de Outubro de 1997).
Por outro lado, a sociedade recorrente suscitou indiscutivelmente a questão de constitucionalidade dos nºs. 1 e 3 do art. 490º do Código de Processo Civil, na interpretação acolhida no despacho recorrido. Trata-se de uma questão de constitucionalidade normativa e não de constitucionalidade de um puro acto judicial, porque é inquestionavelmente o sentido que o Senhor Juiz atribuiu a essas normas que está em causa.
9. Nestes termos, decide-se desatender as questões prévias de não conhecimento do recurso, suscitada pela ora recorrida. III
10. Relativamente à questão de fundo, procede a tese do recorrente quanto à inconstitucionalidade da norma do nº 1 do art 490º do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada no despacho recorrido.
Face ao pedido da autora, a ré tomou posição sobre os factos constantes da petição inicial, nos seguintes termos:
- aceitou que a autora exercia, devidamente autorizada, a indústria de seguros e que tinha contratado com ela, ré, 'nos termos e condições gerais das Apólices nº
3124571, os seguros do ramo acidente de trabalho, com início em 10-11-1970, na modalidade de pagamento anual, dos respectivos prémios', admitindo a genuinidade das propostas juntas com a petição inicial e que se haviam dado por reproduzidas na mesma petição. Aceitou ainda que haviam sido anulados os contratos;
- em contrapartida, negou que estivessem em débito os montantes indicados no art. 3º da petição (prémios vencidos em 10-11-1993, no montante de 168.153$00, e em 1-01-1994, de 24.461$00), afirmando não ser esse o valor dos prémios respectivos, remetendo para o documento junto com a petição inicial. Negou ainda que a autora tivesse procedido aos avisos referidos no art. 5º da petição inicial.
11. Existe, assim, um litígio apresentado ao Tribunal sobre se estão em divida, ou não, dois prémios de seguro, e em que montantes, não se mostrando que a ora recorrente haja manifestado vontade de confessar os pedidos da autora. Esta verificação feita pelo Tribunal Constitucional não prejudica, claro, que a defesa da ré venha a ser julgada insubsistente, (eventualmente por admissão por acordo de factos essenciais integrativos da causa do pedido da autora).
Nessa medida, o art. 490º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação acolhida no despacho saneador, ao aplicar uma cominação plena de confissão do pedido à ré contestante, viola a garantia de acesso aos tribunais
'para defesa dos seus direitos e interesses legítimos', já que esta garantia protege não só a posição da parte activa (autor, exequente ou requerente), como a da parte passiva (réu, requerido ou executado). Pretende-se evitar a
'indefesa' do réu, que não se absteve de tomar posição perante a pretensão do autor, antes a contraditando. No dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, a
'indefesa' consiste na 'privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 164). Ainda segundo os mesmos constitucionalistas, a violação do direito à tutela judicial efectiva de que é titular o réu ou requerido 'verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais do processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuizos efectivos para os seus interesses' (ibidem).
12. A ora recorrente, ao impugnar especificadamente os factos alegados pela autora, espera uma decisão de mérito do Tribunal, seja ela de procedência da acção ou de procedência da defesa, independentemente de ter de haver julgamento da matéria de facto (a circunstância de se ter defendido por impugnação não postula, em si mesma, a necessidade de realização de julgamento de facto - cfr. arts. 510º e 511º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do art. 787º do mesmo diploma, na versão anterior ao Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro).
A norma do art. 490º, nº 1, do Código de Processo Civil, (conjugada com a do nº 3, como foi referido na decisão recorrida), na interpretação perfilhada nos autos, viola, em especial, o princípio constitucional do contraditório, que se reconduz à garantia de acesso aos tribunais (proibição da indefesa) e ao próprio princípio do Estado de direito democrático. Como se escreveu no acórdão nº 440/94 deste Tribunal (in Diário da República, II Série, nº 202, de 1 de Setembro de 1994):
' Entendimento similar [ao de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, sobre a proibição de indefesa] tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o Acórdão nº 86/85, Diário da República, 2ª Série, de 21 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo,
«entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, cit., p. 364)»' (nº 4 do acórdão; veja-se ainda o acórdão nº 249/97, in Diário da República, II Série, nº
114, de 17 de Maio de 1997, que versa igualmente sobre os princípios constitucionais do contraditório e da igualdade de armas).
13. Termos em que deve proceder o recurso.
IV
14. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional desatender a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo recorrido e conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma do art. 490º, nº 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, quando interpretada no sentido de que não há impugnação especificada dos factos alegados na petição inicial quando o réu, na contestação, nega aqueles em artigos diferenciados do seu articulado, por violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais que se extraem dos arts. 2º e 20º, nº
1, da Constituição, devendo o despacho recorrido ser reformulado em consonância com o juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 10 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa