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Proc.Nº 859/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1.- D... e mulher, M... vieram propor contra MA... a presente acção sumária emergente de arrendamento a agricultor autónomo para oposição à denúncia do contrato feita com base na exploração directa do prédio. Logo no despacho saneador, foi a acção julgada improcedente e absolvida a ré do pedido, depois de se ter considerado que a falta de redução do contrato a escrito devia ser imputada à ré.
Desta decisão foi interposto, pelos autores, recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 19 de Março de 1996, decidiu julgar extinta a instância, nos termos do artigo 35º, nº5 do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, assim modificando o decidido na 1ª instância.
Nas suas alegações, os recorrentes suscitaram, de novo, a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 3 do artigo 36º da Lei do Arrendamento Rural (Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro), na parte relativa
à exigência de contrato escrito, a partir de 1 de Julho de 1989, para todos os contratos existentes à data da sua entrada em vigor, por tal norma nessa dimensão não garantir a estabilidade e os legítimos interesses dos cultivadores da terra alheia.
Sobre esta questão, a Relação apreciou-a pela forma seguinte:
'Socorrendo-nos da lição dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição,pág.445), o objecto da norma do artigo 99º consiste em reduzir e racionalizar as formas de exploração da terra alheia e, quanto à relação de arrendamento, o artº 44º, nº1, exige a definição legal do seu regime, restringindo assim, a liberdade contratual das partes, em termos de garantir a posição do rendeiro, naturalmente a parte carecida de apoio na relação de arrendamento. Ora, a obrigatoriedade de redução a escrito de todos os contratos de arrendamento rural, devendo os contratos de arrendamento rural existentes em
30/10/1988 ser obrigatoriamente reduzidos a escrito a partir de 1 de Julho de
1989, é um dos aspectos da definição legal do regime de arrendamento, tendo sido facultado um prazo suficientemente amplo para aplicação do regime do artigo 3º, da Lei do Arrº Rural, aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor. A norma do artº 36º, nº3, da Lei do Arrº Rural, deve, aliás, ser interpretada conjugadamente com outras normas da mesma Lei que provêm quanto à forma dos contratos de arrendamento rural, nomeadamente, as normas do artigo 3º, nºs 3 e
4, e 35º, nº5. Numa perspectiva global, não vemos que a norma legislativa em questão possua um sentido que não se compatibilize com o sentido e espírito da norma constitucional.'
Tendo a Relação considerado inexistir, no caso, o vício de inconstitucionalidade da norma em causa, veio a julgar extinta a instância por a petição não vir acompanhada de um exemplar escrito do contrato de arrendamento rural, sem que se tivesse demonstrado que tal falta de redução a escrito fosse imputável à Ré.
2. - Notificada esta decisão aos autores, logo interpuseram recurso de constitucionalidade, para apreciação da conformidade à lei fundamental do nº 3 do artigo 36º da Lei do Arrendamento Rural, considerando que tal norma violava o artigo 99º, nº1, da Constituição.
Entretanto a Ré, na acção, veio pedir a aclaração do acórdão da Relação, pedido esse que foi indeferido por acórdão de 2 de Julho de
1996.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram as pertinentes alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1ª) A estabilidade e legítimos interesses do cultivador, princípios enunciados no artº 99º, nº1, da CRP não foram garantidos, relativamente aos arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor, pelo artº 36º, nº3, do Dec.-Lei nº
385/88, de 25 de Outubro;
2ª) Este último dispositivo legal não atendeu ao objecto do artº 99º da CRP;
3ª) Por isso, tal norma está ferida de inconstitucionalidade material.'
A recorrida e ré na acção não produziu contra-alegações.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - De acordo com o requerimento de interposição do presente recurso, os recorrentes limitaram o respectivo objecto à norma do nº 3 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro.
Esta norma estabelece que o novo regime previsto no artigo 3º da presente lei apenas se aplicará aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor a partir de 1 de Julho de 1989.
Pelo seu lado, o referido artigo 3º determina que:
'1 - Os arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo, são obrigatoriamente reduzidos a escrito.
2 - No prazo de 30 dias, contados da celebração do contrato, o senhorio entregará o original do contrato na repartição de finanças da sua residência habitual e uma cópia nos respectivos Serviços regionais do Ministério da Agricultura, Pecas e Alimentação.
3 - Qualquer das partes tem a faculdade de exigir, mediante a notificação à outra parte, a redução a escrito do contrato.
4 - A nulidade do contrato não pode ser invocada pela parte que, após a notificação, tenha recusado a sua redução a escrito.
5 - Os contratos de arrendamento rural não estão sujeitos a registo e são isentos de selo e de qualquer outro imposto, taxa ou emolumento.'
Assim, o novo regime de redução obrigatória a escrito dos contratos de arrendamento rural existentes à data de 30 de Outubro de 1988
(data do início de vigência do Decreto-Lei nº 385/88) só será aplicável a partir de 1 de Julho de 1989 e, é efectivamente a conformidade constitucional do dispositivo legal que torna obrigatória a redução a escrito dos contratos existentes à data da entrada em vigor da actual lei do arrendamento rural
(Decreto-Lei nº 385/88), ou seja das disposições conjugadas do artigo 36º, nº3 e do artigo 3º, nº1, deste diploma, que está aqui em apreciação.
A norma que os recorrentes consideram violada é a norma do nº 1 do artigo 99º da Constituição, cujo teor é o seguinte: 'Os regimes de arrendamento e de outras formas de exploração da terra alheia serão regulados por lei de modo a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador'.
A norma que vem questionada contende com esta disposição constitucional?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Vejamos.
4. - O arrendamento rural estava regulado nos artigos
1064º a 1082º do Código Civil, não se sujeitando aí esse contrato a qualquer forma especial, de acordo, aliás, com o princípio geral da liberdade de forma para a validade das declarações negociais, constante do artigo 219º do mesmo diploma legal.
As normas do Código Civil foram revogadas pelo Decreto-Lei nº 201/75, de 25 de Abril, diploma que tornou obrigatória a redução a escrito do contratos de arrendamento rural, fixando aos senhorios um prazo para cumprimento dessa imposição, prazo esse que veio a ser prorrogado pelos Decretos nºs 789/75 e 414/76.
O Decreto-Lei nº 201/75 veio a ser revogado pela Lei nº
76/77, de 29 de Setembro, que revogou também toda a legislação em vigor sobre arrendamento rural. Entretanto, na mesma data, foi publicada a Lei nº 77/77, que aprovou as Bases da Reforma Agrária; na versão originária desta Lei, uma das finalidades fixada para as regras que regulariam o arrendamento rural era a de que elas tornassem obrigatória a forma escrita do contrato.
A Lei nº 76/77, que estabeleceu o novo regime do arrendamento rural, na sequência do desiderato atrás referido, contido na Lei da Reforma Agrária da mesma data, determinou que os contratos de arrendamento rural fossem progressivamente reduzidos a escrito, tendo apenas ressalvado, num primeiro momento, os contratos de arrendamento ao agricultor autónomo, fixando um prazo de seis anos para que todos os arrendamentos fossem reduzidos a escrito.
Acresce que o artigo 49º da versão originária da Lei nº
76/77 determinava a aplicação do regime nela consagrado aos contratos existentes, reforçando assim a intenção do legislador das Bases Gerais da Reforma Agrária de ver todos os contratos de arrendamento rural reduzidos a escrito dentro dos prazos fixados. Esta norma, porém, veio a ser revogada pelo artigo 2º da Lei nº 76/79, de 3 de Dezembro, que alterou também algumas disposições da Lei do Arrendamento Rural (Lei nº 76/77, de 23 de Setembro - adiante, LAR).
Com a revogação da norma que impunha a aplicação da LAR a todos os contratos existentes à data da sua entrada em vigor, teria passado o regime decorrente dessa lei a valer apenas para o futuro, abrangendo os contratos celebrados após tal revogação, não sendo exigível que os contratos anteriores que ainda não tinham sido reduzidos a escrito o passassem a ser.
Desde o Decreto-Lei nº 201/75, o qual pela primeira vez impôs a obrigatoriedade da redução a escrito dos contratos de arrendamento rural, que se estabeleceu como consequência específica para o não cumprimento de tal obrigação a impossibilidade, para qualquer dos contraentes, de poder requerer procedimento judicial relativo ao contrato sem alegar e provar que a falta era imputável ao outro.
A Lei nº 76/77, por sua vez, foi revogada pelo artigo
40º, nº1, do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro. De acordo com o preceituado no nº1 do artigo 3º deste diploma, todos os contratos de arrendamento rural têm de, obrigatoriamente, ser reduzidos a escrito, disposição esta também aplicável aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, estabelecendo a lei que, até 1 de Julho de 1989, teria de estar cumprida tal exigência de regularização formal.
5. - Como se referiu, no entendimento dos recorrentes, a norma do nº3 do artigo 36º da LAR conjugada com a do artigo 3º viola o preceito constitucional que impõe que o regime de arrendamento deve ser regulado pela lei por forma a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador
(artigo 99º, nº1 da CRP).
Esta norma constitucional impõe que o regime do arrendamento rural e de qualquer outra forma de exploração da terra alheia deve ser regulado por lei com vista a realizar uma dupla finalidade: por um lado, garantir a estabilidade da relação e, por outro, defender os legítimos interesses do cultivador, assim se racionalizando tais formas de exploração, impondo uma disciplina legal do arrendamento balizada pelos fins expressamente referenciados.
O diploma resultou da proposta de lei nº 25/IV, que foi aprovado maioritariamente na Assembleia da República, ressaltando da sua análise global que o legislador pretendeu com a sua aprovação dar realização às finalidades constantes do artigo 99º, nº1, da Constituição. Assim, o alargamento do prazo para dez anos, renovável por períodos sucessivos de três anos, realiza a finalidade da estabilidade. A manutenção do sistema de renda máxima tabelada, ainda que com actualização da renda durante o contrato, realiza a finalidade de garantia dos interesses do rendeiro.
A redução a escrito dos contratos de arrendamento, mesmo dos já existentes, é manifestamente uma medida legislativa que se destina a proteger os interesses do contraente mais fraco, no caso, o rendeiro e cultivador da terra. Com efeito, a exigência legal de reduzir à forma escrita todos os contratos de arrendamento rural tem certamente na sua base - como, em geral, a adopção de quaisquer formalidades solenes -, a obtenção de uma maior clareza do respectivo conteúdo e a consecução de uma maior facilidade de prova em juízo, para além da consequente melhor ponderação do acto que celebram.
Estas razões, em contratos em que uma das partes é claramente mais desfavorecida do que a outra, como é o caso, não pode deixar de ser entendida como um reforço da finalidade constitucional de garantir a maior estabilidade ao contrato pela estratificação das respectivas cláusulas num documento escrito.
Assim, não pode deixar de se concluir que tal exigência legislativa, quando por si só considerada, não viola o artigo 99º, nº1 da Constituição. Mesmo quando se considere a imposição legal da redução a escrito dos contratos já existentes à data da publicação do diploma e para cuja concretização se concedeu um prazo razoável - de Outubro de 1988 a 1 de Julho de
1989 - não se vislumbra ainda aqui qualquer fundamento que permita afirmar que tal disposição legal viola o preceito constitucional referido. De facto, a imposição da redução a escrito dos contratos já existentes não contende nem com a garantia de estabilidade do contrato de arrendamento nem com a garantias dos legítimos interesses do cultivador: parece evidente que qualquer destas finalidades fica melhor defendida pela formalização escrita do contrato.
Aliás, bastaria que o arrendatário tivesse insistido pela notificação judicial avulsa para redução do contrato a escrito, até a obter, para se poder imputar a falta de formalização ao senhorio. III - DECISÃO:
6. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa,19 de Maio de 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida