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Proc. n.º 682/98
2ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Relatório
1. G. S. interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de Março de 1998, pelo qual, contra o parecer do Procurador da República junto desse Tribunal, não foram admitidos os recursos por si interpostos dos despachos do juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Faro que haviam dado ao denunciante o direito de se constituir como assistente. Segundo esse Acórdão:
'O denunciado recorrente, não se encontrava – e, não se encontra ainda – constituído como arguido nos autos de inquérito onde foram proferidos os despachos recorridos. No actual Código de Processo Penal, o denunciado não adquire legalmente, por esse facto, a posição de interveniente processual formalmente reconhecida, a qual só nasce quando o denunciado, sujeito passivo da investigação criminal, for constituído arguido. (Aliás, é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal. – artº 58º n.º 1 do C.P.P.)
(...) E, um dos direitos do arguido é o de recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis (artº 61º n.º 1 h) do C.P.P.). Mas o denunciado só pode recorrer desde que esteja constituído arguido. O denunciado, enquanto não for constituído arguido, é um mero suspeito, que não tem legitimidade processual para intervir no inquérito, não gozando de direitos, nem estando vinculado a deveres processuais, nomeadamente, não pode recorrer. Porém, conforme artº 59º, n.º 2 do C.P.P., a pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem. Mas, enquanto não tiver lugar a constituição do denunciado como arguido ‘não poderá usufruir, designadamente, dos direitos conferidos pelas diversas alíneas do n.º 1 do artº 61º' (v. Maia Gonçalves in Código de Processo Penal anotado,
1996, 7ª edição, p. 148). E, sem margem para dúvidas, resulta do artigo 401º n.º 1 b) que só o arguido – além do assistente – tem legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas. O denunciado, em inquérito, ainda não constituído arguido, não tem legitimidade para recorrer'. O Desembargador relator junto da Relação de Évora, por despacho proferido a fls.
78 dos autos, não admitiu 'o recurso interposto pelo denunciado não arguido junto desta Relação, para o Tribunal Constitucional, por carecer de legitimidade.'
2. É contra este despacho que vem apresentada a presente reclamação, que o reclamante concluiu do seguinte modo:
'1º - O ora reclamante foi efectivamente constituído arguido, expressa ou implicitamente, porquanto foi ordenada a sua notificação pelo Mº Juiz do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro nos termos e para os efeitos do artº 68 n.º 3 na qualidade de arguido;
2º - O reclamante confiou que tal qualidade lhe estava já reconhecida processualmente, tendo sido só através da notificação referida em 1) destas conclusões que tomou conhecimento da existência de processo criminal contra ele instaurado;
3º - Não obstante o Mº Juiz da 1ª instância ter ordenado tal notificação na qualidade de arguido nenhum dos restantes intervenientes processuais (MºPº e ofendido) impugnou ou requereu a existência de irregularidade alguma por tal facto;
4º - Por outro lado, caso não se permitisse ao denunciado impugnar decisão judicial que lhe é desfavorável estaria este em défice de garantias de defesa comparado com o réu em processos judiciais de natureza civil;
5º - Se o artº 68º n.º 3 exige a qualidade de arguido para que o suspeito passivo de processo crime se possa opôr à constituição desta norma que não fira o artº 32º n.º 1 da C.R.P. é a de que o denunciado deverá ser constituído arguido o mais tardar até que se proceda a tal notificação;
6º - Não tem valia o argumento segundo o qual o próprio denunciado tem a faculdade de requerer a sua constituição como arguido, já que tal tese deixaria dependente de factores subjectivos o efectivo exercício de direitos fundamentais dos sujeitos passivos em processo criminal, com frontal ofensa das garantias de defesa (artº 32º n.º 1 C.R.P.);
7º - Por outro lado, mesmo que ao ora reclamante não tenha sido atribuído o estatuto de arguido o próprio artigo 401º n.º 1 alínea d) reconhece legitimidade aos denunciados para defenderem direitos seus afectados por decisão judicial;
8º - Ficaram, assim, violados entre outros, os artigos 68º n.º 3, 57º e 58º e
401º n.º 1 b) bem como dos artigos 32º n.º 1 e 72º n.º 1 b) da C.R.P.'
3. Foi dada vista do processo ao Ministério Público, tendo-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciado no sentido da improcedência da reclamação, uma vez que
'o ora reclamante não suscitou, podendo fazê-lo, durante o processo a questão de constitucionalidade que constitui objecto do recurso: na verdade, na resposta apresentada ao recurso, interposto para a Relação, pelo representante do Mº Pº no tribunal de 1ª instância, foi expressamente suscitada a questão da falta de legitimidade para recorrer do denunciante [leia-se 'denunciado'], sendo tal intervenção processual notificada ao respectivo mandatário, cumprindo-lhe suscitar ulteriormente, antes da prolação do acórdão da Relação que julgou o recurso, a questão da pretendida inconstitucionalidade da questionada interpretação normativa do referido art. 401º, n.º 1, al. b) do C.P.P..'
4. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. O recurso que o ora reclamante intentou interpor foi fundado no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro que prevê o recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Constituem requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional:
· a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, das normas constitucionalmente impugnadas;
· a impugnação da sua constitucionalidade durante o processo; e
· o esgotamento dos recursos ordinários. Ora, como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, a questão de constitucionalidade não foi atempadamente suscitada, conforme exige o artigo
70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, a questão de constitucionalidade objecto do recurso que se pretendeu interpor só foi levantada no próprio recurso para o Tribunal Constitucional, e não antes, durante o processo, por forma a que o tribunal recorrido se pronunciasse sobre ela.
É que a falta de legitimidade do denunciado para recorrer foi expressamente sustentada pelo representante do Mínistério Público no tribunal de 1ª instância, na resposta apresentada ao recurso interposto para a Relação, tendo tal intervenção processual sido notificada ao mandatário do reclamante sem que este tenha suscitado ulteriormente, e antes da prolação do acórdão da Relação que julgou o recurso, a questão da constitucionalidade invocada agora perante o Tribunal Constitucional. Esta razão seria bastante para considerar inviável o recurso, podendo dispensar-se a averiguação de outros pressupostos, bem como a reapreciação da existência de legitimidade para recorrer, que serviu de base ao indeferimento do requerimento de interposição de recurso: é que a reapreciação desse despacho, aqui operada, não é dirigida, verdadeiramente, à sua fundamentação, mas à presença dos requisitos que permitiriam ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade que se pretendeu trazer-lhe.
6. Diga-se, todavia, ainda assim, que pode duvidar-se de que o presente recurso se funde numa inconstitucionalidade normativa, Como se sabe, o nosso sistema de controlo da conformidade constitucional incide apenas sobre normas e não sobre decisões. Como escreve Armindo Ribeiro Mendes
(Relatório de Portugal à I Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, in Documentação e Direito Comparado, n.º
71/72, 1997, p. 710):
'O Tribunal Constitucional português não dispõe de competências destinadas à protecção contenciosa específica de direitos fundamentais, do tipo da Verfassungsbeschwerde alemã, do recurso de amparo espanhol, ou de diversos institutos desenvolvidos em países ibero-americanos (amparo; mandado de segurança; mandado de injunção; habeas corpus). Não obstante propostas de consagração na Constituição desde 1989, não logrou acolhimento até ao presente a ideia de um mecanismo de defesa contra actos judiciais ou administrativos inconstitucionais para a protecção específica de direitos fundamentais.' Ora, resulta claro da reclamação interposta que o que se contesta não é a redacção das normas que se pretendeu impugnar, nem sequer uma sua interpretação, mas sim o recorte da situação de facto do reclamante e sua recondução à hipótese de tais normas, como se comprova da transcrição das conclusões de tal reclamação já efectuada supra (ponto 2). Ou seja, como escreveu o reclamante a propósito do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 401º do Código de Processo Penal – norma esta, aliás, não impugnada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (no qual apenas se refere a alínea b) do n.º 1 desse artigo):
'Seria, no modesto entendimento do ora reclamante, algo estranho e paradoxal que o legislador tivesse pretendido, por um lado, alargar tão consideravelmente as hipóteses de recorrer (até a pessoas e entidades que poderão nem sequer revestir a qualidade de detido, ou de denunciado (vs. o proprietário de um objecto declarado perdido a favor do estado) e, por outro lado, negasse ao denunciado o direito de se opôr e de impugnar uma decisão que lhe é desfavorável.' Facto é, porém, que apesar de a parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 401º do Código de Processo Penal ser invocada no despacho de sustentação proferido pelo M.º Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Faro em 11 de Novembro de 1997, o Tribunal da Relação de Évora entendeu, no exercício dos seus poderes de revista, que
'sem margem para dúvidas, resulta do artigo 401º nº1 b) que só o arguido – além do assistente – tem legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas'. Ocorre que tal interpretação da norma coincide inteiramente com o seu teor literal e nada teria, em si, de inconstitucional, independentemente das restantes alíneas do referido número. Existindo estas, pode questionar-se a bondade de tal interpretação em face delas, embora não seja esta a instância adequada para o reapreciar. Não dispondo o Tribunal Constitucional de competências para tutela de direitos lesados por actos judiciais, não lhe cabe, por tal via indirecta, constituir-se em instância de reapreciação das decisões da ordem comum dos tribunais. Conclui-se, portanto, preliminarmente, que se suscitou uma questão de aplicação do direito: não se pôs em causa um certo sentido de um norma mas sim o recorte dos factos que levou à sua não aplicação: como o reclamante salientou, estava
'convicto de que foi efectivamente constituído na qualidade de arguido nos autos de inquérito' e as notificações que lhe foram feitas 'traduzem um inequívoco reconhecimento judicial da qualidade de arguido'. O que se discute não é o direito mas a situação de facto que o torna (não) aplicável e a sua subsunção às normas referidas. Também por esta via se deveria, portanto, concluir pela não admissão do recurso. Aliás, como se salienta, por exemplo, no Acórdão n.º 367/94, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994:
'ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do texto do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores de direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, afrontar a Constituição'. Quando assim não seja, a questão de inconstitucionalidade,
'não pode ter-se por suscitada em termos processualmente adequados'. Ora, ambas as normas impugnadas no requerimento de interposição do recurso – as das alíneas b) do n.º 1 do artigo 401º e b) do artigo 61º do Código de Processo Penal (só essas, e não também a alínea d) do n.º 1 do referido artigo 401º, porque o requerimento de interposição do recurso delimita o seu objecto, podendo posteriormente ser este restringido, mas não alargado: cfr. Acórdão n.º 20/97, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Março de 1997) – se referem expressamente ao arguido, sendo certo que foi por se ter entendido que o ora reclamante o não era que lhe não foram aplicadas. Isto significa, assim, que o ora reclamante não encontra nessas normas qualquer sentido inconstitucional, a não ser no que implica deixarem-no de fora do seu perímetro de aplicação – ele pugna pela aplicação dessas normas à sua situação de denunciado. Mas um tal sentido nunca é verbalizado como sentido da referida alínea b), uma vez que, face à norma residual da parte final da alínea d) do n.º
1 do artigo 401º, a não subsunção ao disposto na alínea b) do mesmo normativo do Código de Processo Penal implicaria a subsunção alternativa àquela alínea. Pelo que, a ser viável uma 'reconstrução normativa' de um problema criado na fase da aplicação do direito atinente ao direito do ora reclamente de interpor recurso, sempre ele teria de ser referenciado ao n.º 1 do artigo 401º no seu todo – e não apenas à alínea b), única mencionada no requerimento de interposição de recurso.
7. Em síntese: o Tribunal não pode tomar conhecimento do presente recurso, não só por a questão que o recorrente levanta dizer respeito à situação de facto que o recorrente pretende reconduzir às normas referidas, como, decisivamente, por a questão de inconstitucionalidade não ter sido suscitada atempadamente, como exige o artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado e condenando-se o reclamante em custas, nos termos dos artigos 84º, n.º 4 da Lei do Tribunal Constitucional e 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, sendo a taxa de justiça fixada em 10 UC. Lisboa,2 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa