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Processo n.º 202/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, por acórdão proferido pela 3.ª Vara Criminal de Lisboa, em 15 de janeiro de 2013, foi o arguido e ora recorrente A. condenado pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, e de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B, na pena de dois anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena unitária de dois anos e seis meses de prisão.
Inconformados, o arguido e o Ministério Público interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 12 de junho de 2013, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido e procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogando a condenação pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, condenou o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do referido do Decreto-Lei, na pena de cinco anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão.
Requerida a reforma do acórdão pelo arguido, o Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho de 10 de outubro de 2013, indeferiu o requerido.
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, após ter sido admitido no Tribunal da Relação de Lisboa, foi rejeitado por decisão sumária, proferida no Supremo Tribunal de Justiça em 16 de janeiro de 2014. Dessa decisão sumária, reclamou o arguido/recorrente para a conferência do STJ que, por acórdão de 29 de janeiro de 2014, julgou improcedente a reclamação apresentada e confirmou a decisão sumária de rejeição do recurso.
2. Irresignado, o arguido interpôs recurso para este Tribunal, através de requerimento com o seguinte teor:
«A. arguido nos autos à margem referenciados não se conformando com O ACÓRDÃO de 29/01/2014 que negou o procedimento da reclamação apresentada pelo arguido confirmando a decisão sumária de rejeição do recurso, o que se traduz na violação do nº 1 do art 32º da Constituição da Republica Portuguesa.
Vem dele interpor,
Recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Assim requer a Vªs Exas.
Que admitam o presente recurso.»
Fez acompanhar esse requerimento de peça processual, que intitulou de “motivações do recorrente”.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
3. Neste Tribunal, o Relator proferiu a decisão sumária n.º 190/2014, pela qual decidiu não conhecer do recurso, no essencial, pela seguinte ordem de razões:
«3. Considerando que o recorrente apresentou as alegações de recurso juntamente com o requerimento de interposição, importa preliminarmente apreciar a validade dessa peça, no âmbito da tramitação dos recursos de constitucionalidade.
Conforme resulta expressamente dos artigos 75.º-A, nºs 1 e 2, 78.º-A, n.º 5, e 79.º, todos da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC), as alegações nos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade ou da legalidade são sempre produzidas no Tribunal Constitucional, após despacho do Relator junto deste Tribunal nesse sentido, e apenas quando não deva proferir-se decisão sumária no sentido da impossibilidade de conhecimento do recurso.
Daqui decorre que as alegações apresentadas pelo ora recorrente são extemporâneas, e, por isso, inatendíveis (nesse sentido, Acórdão n.º 61/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
4. O artigo 75.º-A da LTC, nos seus n.ºs 1 a 4, define os requisitos formais do requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Assim, seja qual for o tipo de recurso interposto, deve o recorrente indicar obrigatoriamente a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto, assim como a norma ou interpretação normativa que constitui objeto de tal recurso e cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende fazer sindicar pelo Tribunal Constitucional (n.º 1).
No caso, o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, limitou-se a identificar a decisão que pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional e a indicar a norma constitucional que considera violada, incumprindo claramente o disposto no referido n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Porém, in casu, não é equacionável facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tais deficiências, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que o requerimento de interposição de recurso fosse aperfeiçoado de forma satisfatória, sempre o recurso não prosseguiria, por inverificação de, pelo menos, um dos pressupostos de admissibilidade, que não pode ser suprido e que sempre determinaria a impossibilidade de conhecimento de mérito, como se passa a explicitar .
5. Com efeito, considerando o requerimento de interposição de recurso em conjugação com a decisão recorrida – que corresponde ao acórdão que, julgando improcedente a reclamação apresentada pelo arguido, confirma a decisão sumária de rejeição do recurso -, verifica-se que a única hipótese equacionável, com sentido útil, de admissibilidade do recurso é a da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, porquanto, por um lado, o recorrente indica a norma constitucional que considerada violada, por outro lado, não houve recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade e, por último, não menciona o recorrente qualquer decisão anterior que tenha julgado inconstitucional norma aplicada pela decisão recorrida.
Cabe, pois, apreciar o requerimento de interposição de recurso à luz da aludida alínea b) n.º 1 do artigo 70.º da LTC; aliás, a indicada na motivação de recurso que acompanha o requerimento de interposição, se esta fosse de atender.
6. É pressuposto específico de admissibilidade e conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Como se escreveu no Acórdão n.º 269/94 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir”, o que reclama que o recorrente identifique, de modo expresso, direto, claro e percetível, a norma ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma que tem por violador da Lei Fundamental.
No caso presente, o recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade na reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, peça que era a processualmente idónea para suscitar tempestivamente a questão de constitucionalidade.
Falece, pois, o pressuposto insuprível de prévia suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, o que determina a ilegitimidade do recorrente (alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º, ambos da LTC).
7. Impõe-se, assim, concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do recurso, proferindo, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, decisão sumária»
4. Mais uma vez, o recorrente não se conformou e apresentou reclamação para a Conferência, nos seguintes termos:
«(...) 3.º Ora sucede que na douta decisão são considerados dois pontos que fundamentaram tal rejeição:
a )-extemporaneidade das alegações apresentadas, por incumprimentos dos requisitos formais do art 75 A nº 1 a nº 4 LTC
b )-falta do conhecimento do mérito por apreciação ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art 70º LCT; atendendo a não ter sido suscitada no âmbito do processo a questão de inconstitucionalidade
4º Em concreto e considerando esta segunda parte, o reclamante fundamenta a sua posição invocando a dispensa do ónus da suscitação prévia face a que a tratar-se de uma 'decisão-surpresa', da parte do Supremo Tribunal de Justiça e daí não ter suscitado qualquer violação constitucional antes de ter tomado conhecimento de tal prolação. (Acórdão nº 190/2014 de 26 de fevereiro, da 3ª secção TC)
5º Atendendo a que caso só existisse efetiva extemporaneidade das alegações apresentadas, estas seriam supridas em sede de notificação para seu aperfeiçoamento nos termos do nº 6 do art 75º A da LTC.
Termina pelo deferimento da reclamação.
5. Notificado, o Ministério Público tomou posição no sentido do indeferimento da reclamação, salientando que o despacho reclamado não assentou na extemporaneidade da apresentação das alegações e que o recorrente não suscitou, no momento processual próprio, qualquer questão de inconstitucionalidade. No que concerne à invocação de “decisão surpresa”, refere que o acórdão recorrido confirmou a decisão sumária sem novos fundamentos, para além de que a questão de irrecorribilidade do acórdão da Relação consta do parecer emitido pelo Ministério Público e que, uma vez dele notificado, o recorrente nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Vem o recorrente reclamar da decisão sumária n.º 190/2014, que concluiu pelo não conhecimento do recurso em virtude de não ter sido previamente suscitada, perante o Tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade.
6.1. Verifica-se que o recorrente esgrime contra rejeição fundada em “extemporaneidade das alegações apresentadas”, o que associa a “incumprimento dos requisitos formais do artigo 75.º A n.º 1 a 4 LTC”, mas, claramente, a decisão reclamada não assume esse sentido. Tais disposições dizem respeito aos requisitos do requerimento de interposição de recurso, como expressamente se indica no parágrafo inicial do ponto 4, não se confundindo com a afirmação de extemporaneidade da apresentação de alegações, afirmada no ponto anterior, por o respetivo prazo – e cabimento processual – apenas se iniciar após despacho do Relator.
Importa acrescentar que também a norma constante do n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, invocada pelo recorrente, ora reclamante, na parte final da reclamação, diz respeito a convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, e não ao aperfeiçoamento das conclusões.
6.2. Afastada essa via argumentativa, desconforme com os fundamentos da decisão de não conhecimento do recurso reclamada, deparamos com a menção a que a decisão recorrida assume a condição de “decisão-surpresa”, justificativa de que o recorrente não tivesse suscitado qualquer questão de constitucionalidade antes de ter tomado conhecimento da sua prolação.
Porém, feita essa afirmação, o recorrente dispensa-se de concretizar em que consistiu a surpresa, ou seja, qual a dimensão normativa integrante da ratio decidendi cuja mobilização não era previsível ou que, atendendo à posição processual do recorrente e características da lide, não era exigível que articulasse junto do Tribunal a quo.
Ora, como bem observa o Ministério Público, não existe aqui razão para dispensar o recorrente do ónus de suscitação prévia imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC. O recurso incide sobre decisão do STJ que confirmou decisão sumária sem lhe acrescentar qualquer novo fundamento, pelo que não se vê qual a norma ou interpretação normativa aplicada como determinante do julgamento cuja constitucionalidade não pudesse ter sido equacionada e colocada à apreciação do Tribunal a quo no momento da elaboração da reclamação. Mesmo que o recorrente não pudesse razoavelmente antecipar o juízo de inadmissibilidade do recurso constante da decisão sumária – o que não acontece, pela centralidade que assume a discussão das vias de recurso penal para o Supremo Tribunal de Justiça – seguramente que, uma vez proferida a decisão sumária, o critério decisório que veio a ser reafirmado no acórdão recorrido revelou-se em toda a sua expressão normativa, sem qualquer margem para surpresa. Nada obstava, então, a que o aqui reclamante suscitasse no momento processual próprio, correspondente à reclamação prevista no artigo 417.º, n.º 8 do CPP, questão de constitucionalidade, pugnando pela não aplicação da norma ou interpretação normativa desconforme com a Constituição. O que reconhecidamente não teve lugar.
Cabe, pelo exposto, manter a decisão de não conhecimento do recurso e concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão
7. Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada;
b) Condenar o reclamante nas custas, fixando-se em 20 (vinte) Ucs a taxa de justiça devida, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Lisboa, 26 de março de 2014.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.