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Procº nº 779/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por apenso à execução ordinária pendente pelo 3º Juízo do Tribunal Cível do Tribunal de comarca de Cascais que N....,Ldª, moveu contra C...,Ldª, veio o Banco E...,Ldª, reclamar créditos, garantidos por hipoteca, no montante de Esc. 1.275.312.465$00, além de juros vincendos à taxa de 15%, igualmente reclamando créditos, além de juros, o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo - o deste no montante de Esc. 3.203.750$00 - e a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público - esta quanto a créditos do montante global de Esc. 3.355$00.
Por sentença de 3 de Fevereiro de 1995 foram efectuados o reconhecimento e graduação dos créditos reclamados, tendo o crédito detido pela N.... e que fundamentou a instaurada execução ficado graduado em último lugar, o que motivou que de tal sentença tenha a exequente apelado para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de 17 de Abril de 1997 negou a Relação de Lisboa provimento ao recurso, dele tendo a N..., recorrido de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, inter alia, na alegação que, então, produziu, que 'a norma constante do artigo 10º do D.L. nº 103/80, de 9 de Maio, é inconstitucional por violação do direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20 da Constituição da República Portuguesa', que, '[p]or sua vez, o privilégio mobiliário geral concedido aos créditos por imposto, nos termos do artigo 747º do Código Civil é também inconstitucional, por violação do mesmo preceito constitucional', e que 'as normas que conferem privilégios aos credores-reclamantes em detrimento do crédito do exequente são inconstitucionais, por violação do princípio consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o exequente, se não tiver qualquer privilégio, vê as suas expectativas frustradas por um credor, cujo crédito era até à reclamação de créditos, desconhecido'.
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Novembro de
1997, negou a revista.
E, tocantemente à suscitada inconstitucionalidade do artº 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, disse, por entre o mais, o seguinte, após transcrever o disposto no nº 1 do artigo 20º da Constituição na sua actual versão:-
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3 - É patente o conteúdo de tal norma, para além da salvaguarda do segredo de justiça: não pode alguém, seja rico ou pobre, ficar privado de recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos, nem do respectivo patrocínio judiciário. Em suma: garante-se o direito processual de acção, que se não esgota com a proposição, antes se mantém até à verificação das causas de extinção da instância (...) Decididamente isto nada tem a ver com o caso dos autos, em que a Recorrente até beneficia de apoio judiciário. Prolepticamente, dir-se-á que não se tratando apenas da garantia dos meios de aceder à justiça, mas também do direito da essência do próprio direito, mesmo assim não se vê onde está a inconstitucionalidade. Nenhum direito é recusado à Recorrente: é-lhe reconhecido o acesso ao pagamento, desde que o condicionalismo de facto lho possibilite, ou seja, desde que haja dinheiro da Executada que chegue. Princípios de interesse ordem públicos, ou, se quisermos, interesses sociais ou, então, razões de 'res publica', ou, talvez, melhor, uma república de razões, como diria Rawls, citado por Mendes Machado
(...), justificam a existência dos privilégios creditórios.
4 - O Tribunal Constitucional, implicitamente, tem admitido a constitucionalidade dos privilégios creditórios (...)
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3. É deste acórdão que, pela N...., vem interposto o vertente recurso para o Tribunal Constitucional, por intermédio do qual pretende ver apreciada a (in)constitucionalidade 'da norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº
103/80, de 09.03'.
Rematou a recorrente as alegações por si formuladas do seguinte jeito:-
'a) As disposições legais que conferem privilégios creditórios aos credores-reclamantes, não obstante estes nada terem feito no sentido de conseguir a penhora dos bens que lhes permitirão satisfazer os seus créditos, designadamente a norma constante do artigo 10º do D.L. nº 103/80, de 9 de Março, são inconstitucionais por violação do direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa;
b) 'Obedecendo a uma preocupação de tutela dos interesses do Estado e de outras pessoas colectivas públicas, em detrimento dos interesses dos credores particulares, o nosso legislador tem vindo a criar numerosos privilégios para garantia de dívidas do Estado e de contribuições para a Segurança Social, que subvertem a finalidade do processo executivo, desviando a sua função de realização coactiva do crédito do exequente para a de cobrança, mediante o aproveitamento da actividade deste, desses créditos fiscais e parafiscais' José Lebre de Freitas, A Acção Executiva;
c) É o exequente que desencadeia o processo de reclamação de créditos com a propositura da acção executiva;
d) Se não fosse o exequente a instaurar a acção executiva, os credores-reclamantes, que nada fizeram, apesar de eles próprios também terem fundamentos para intentarem acções contra o devedor, não teriam possibilidades de ver os seus créditos satisfeitos;
e) 'Por lei graduado à frente do exequente, o credor privilegiado, cujo crédito é normalmente desconhecido quando a execução é instaurada, acaba frequentemente por ser o único a ser pago pelo produto da venda dos bens penhorados, enquanto o exequente não consegue encontrar no património do devedor bens que lhe permitam a satisfação do seu direito' José Lebre de Freitas, A Acção Executiva;
f) O exequente acaba, não só, por não conseguir satisfazer o seu crédito, como por ter inúmeros prejuízos não ressarcidos ou compensados, na medida em que teve de pagar preparos, teve de realizar inúmeras diligências no sentido de localizar o executado, localizar os bens deste susceptíveis de serem nomeados à penhora, etc.;
g) 'Esta subversão que o Código quis, na sua época, atenuar constitui violação do direito fundamental de acesso à justiça, pois possibilita a retirada ao exequente da tutela judiciária assegurada pela acção executiva' José Lebre de Freitas, A Acção Executiva;
h) Assim, as normas que conferem privilégios à Fazenda Nacional e à Segurança Social, em detrimento do crédito do exequente, são inconstitucionais, por violarem o direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa'.
De seu lado, o Representante do Ministério Público em funções junto deste Tribunal concluiu a sua alegação dizendo:-
'1º - A norma constante do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, ao conferir às instituições de previdência privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos emergentes de contribuições ao regime geral da previdência - equiparando para este efeito os créditos da previdência aos créditos fiscais, privilegiados nos termos do artigo 736º do Código Civil, não viola o direito de acesso aos tribunais por parte dos credores comuns, nem limita, de forma intolerável ou desproporcionada, o princípio da igualdade nem o direito daqueles à realização forçada dos seus créditos.
2º - Na verdade, tal privilégio fundamenta-se materialmente na relevância constitucionalmente atribuída ao sistema de segurança social e aos fins essenciais que lhe estão cometidos no artigo 63º da Constituição da República Portuguesa.
3º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o recurso'.
Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II
1. Impõe-se, desde logo, sublinhar que - não obstante a recorrente, na sua alegação, ter sustentado que as normas que conferem 'privilégios creditórios aos credores-reclamantes, não obstante estes nada terem feito no sentido de conseguir a penhora dos bens que lhes permitirião satisfazer os seus créditos' - o que unicamente poderá constituir objecto do vertente recurso não é o universo normativo que uma tal conferência estabelece mas sim, e tão só, a norma ínsita no artº 10º do Decreto-Lei nº 103/80.
De facto, foi simplesmente a esta norma que a ora impugnante se reportou no requerimento de interposição de recurso (que é o que delimita o respectivo objecto), não lhe sendo, pois, permitido, na alegação para este Tribunal, alargar o seu âmbito.
Isto posto, passar-se-á à análise da questão do alegado vício de inconstitucionalidade suscitado, o qual, para a recorrente, consistiria na
'violação do direito fundamental de acesso à justiça', que deflui do artigo 20º do Diploma Básico, por banda da norma ínsita no artº 10º do D.L. nº 103/80, que prescreve:-
1 - Os créditos das caixas de previdência por contribuições e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
2. Convirá lembrar que existe a obrigatoriedade de inscrição nas caixas de previdência (cuja referência abrange os centros regionais de segurança social, quer em funcionamento, quer em regime de instalação - cfr. artº 30 do citado diploma), como beneficiários, dos trabalhadores e, como contribuintes, das entidades patronais por aquelas abrangidas nos termos das convenções colectivas de trabalho ou dos diplomas da sua criação, dos seus estatutos e dos despachos de alargamento de âmbito (cfr. artº 1º do dito diploma) e que uns e outras têm de concorrer com as percentagens estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas (nº 1 do artº 5º, ainda do mesmo diploma), devendo as contribuições dos trabalhadores ser descontadas nas respectivas remunerações e pagas pelas respectivas entidades patronais, juntamente com a contribuições por estas devidas, no mês seguinte àquele a que disserem respeito (números 2 e 3 do aludido artº 5º).
Por outro lado, não se passará em claro que o denominado privilégio mobiliário constitui uma forma de garantia especial de cumprimento de obrigações por intermédio da qual é concedido aos credores, tendo em atenção a causa do seu crédito, a faculdade, imposta por lei, de serem pagos preferentemente a outros credores e sem que, para tanto, se torne necessário o registo do seu crédito
(cfr., sobre o tema, Vaz Serra, Privilégios, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 64, 41 e segs., e Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 6ª ed., 1961, 406 e segs.).
Igualmente não se deixará de anotar que o Código Civil, relativamente àquela espécie de garantia especial e tendo em atenção os privilégios que o mesmo elencou (nos artigos 736º e 737º, quanto a privilégios mobiliários gerais, e 738º a 742º, quanto a privilégios imobiliários especiais), veio, no artº 747º, a prescrever a ordem pela qual os mesmos deverão ser graduados.
Também releva recordar que o diploma em que se insere a norma sub iudicio não foi o primeiro a estabelecer tal garantia tocantemente às caixas de previdência, por isso que isso já se encontrava estatuído, ao menos, desde o Decreto-Lei nº 45.266, de 23 de Setembro de 1963 (cfr. seu artº 167º e Alberto Carlos Vaz Serra e Sousa, O privilégio mobiliário geral das caixas sindicais de previdência, na Revista dos Tribunais, 90º, 387 e segs., e, por último - sem se entrar na questão de saber se o privilégio instituído por aquele artº 167º, se haveria, ou não, de ser considerado após a entrada em vigor do Código Civil de
1967 - cfr. o artº 8º do Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de Novembro de 1966 - o Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho).
3. Talqualmente sustenta o representante do Ministério Publico junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, o Tribunal perfilha a óptica segundo a qual não se poderá, como em dado ponto sustenta a recorrente na sua alegação, analisar a questão numa perspectiva da
'utilização quase abusiva, da iniciativa do exequente, pelos credores privilegiados'.
Na verdade, o favor dispensado ao credor privilegiado em ser pago preferentemente a outros credores pelo produto da venda dos bens executados não resulta directamente do ordenamento jurídico adjectivo regulador da forma de intervenção no processo destinado à excussão de bens do devedor, mas sim do ordenamento substantivo que vem a prescrever a faculdade dada ao credor dotado dessa garantia em ser, pelo produto dos bens penhorados, pago antes de o ser o montante correspondente ao crédito do exequente que de qualquer garantia real não desfrute (ou que disponha de garantia de «menor peso legal» do que o atribuído aos privilégios mobiliários).
E, sendo assim, então resulta de modo directo que não se perfila qualquer limitação ao direito de acesso do credor (postado em situação semelhante à da ora recorrente) aos tribunais, pelo que o artigo 20º da Constituição se não mostrará, nesta dimensão, violado. De outro lado, não se pode olvidar que a efectivação processual do «direito substantivo» dos credores munidos de privilégios mobiliários - através do mecanismo da reclamação de créditos consagrada nos artigos 864º e seguintes do Código de Processo Civil - representa, também ela mesma, quanto ao respectivo crédito e para estes, a realização do direito de acesso aos tribunais.
Aliás, dificilmente se vê como, de entre as várias dimensões postuladas pelo direito de acesso aos tribunais (maxime, o «direito a um processo de execução» - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 163), se deva considerar a consagração da efectiva e inelutável obtenção do devido ao credor ou a prioridade de pagamento dos respectivos créditos em detrimento de outros que sejam titulares de garantia substantiva de que o exequente não desfruta.
4. É certo que, excluída as excepções consagradas no nº 2 do artº
604º do Código Civil - exclusão expressamente ressalvada no seu nº 1 - neste
último se estatui que os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para a satisfação integral dos débitos.
A questão que se põe, naturalmente, consistirá em saber se, tomando como referência a excepção concernente aos privilégios mobiliários (pois que, quanto às demais causas legítimas de preferência não são elas questionadas pela recorrente), a respectiva consagração como algo de excludente da condição paritária dos credores, se afigura sem adequado suporte material e, logo, como violador do princípio da igualdade.
A respeito de um tal princípio, existe já uma consolidada jurisprudência deste Tribunal, podendo, neste particular, citarem-se, como exemplo, e por entre muitos, os Acórdãos números 186/90, 187/90 e 188/90
(publicados na 2ª Série do Diário da República de 12 de Setembro de 1990), referindo-se, em dados passos, no último deles:-
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Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário (...). Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, Proíbe- -lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünfliger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Wilkürverbot).
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Também este Tribunal Constitucional vem perfilhando a interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio. Afirma-se, como efeito, no Acórdão nº 39/88 (Diário da República, 1ª série, de 3 de Março de 1988): «O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes, Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º». E, no Acórdão nº 157/88 (Diário da República, 1ª série, de 26 de Julho de 1988), escreve-se: «Retomando aqui, uma vez mais, o entendimento que este Tribunal vem perfilhando (na esteira, de resto, da Comissão Constitucional e da doutrina) acerca do sentido e alcance do princípio da igualdade, na sua função 'negativa' de princípio de 'controle'..., tudo estará em saber se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva
('discricionariedade' legislativa), que se traduzem na ideia geral de proibição de arbítrio. Ou seja: tudo estará em saber se essa desigualdade se revela como
'discriminatória' e arbitrária, por desprovida de fundamento racional (ou fundamento material bastante), atenta a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (e logo o objectivo do legislador) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (isto é, a desigualdade não há-de buscar-se num 'motivo' constitucionalmente impróprio)».............
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Esclareça-se que a «teoria da proibição do arbítrio» não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.
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4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº
103/80, tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante (ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio).
A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta negativa.
Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2 do mesmo artigo).
Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das contribuições impostas para esse fim, designadamente as a cargo ou da responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia - excepção feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de qualquer garantia especial.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
Voto de vencida
Votei vencida, por, no essencial, entender que a norma objecto do presente recurso contraria os princípios constitucionais da protecção da confiança e da proporcionalidade. Viola o princípio da protecção da confiança porque o exequente credor comum vê o seu crédito ultrapassado por outros que sobre ele preferem, sem ter o ónus ou, a mais das vezes, a mera possibilidade de os conhecer quando decide instaurar a acção executiva, da qual frequentemente acaba por não tirar qualquer proveito. Acresce que a preferência, tal como é conferida, não toma em conta a prioridade relativa na constituição dos créditos, não tem limites temporais e não é objecto de publicidade. Infringe o princípio da proporcionalidade porque, apesar das características apontadas, a preferência é absoluta, não permitindo a ponderação concreta do sacrifício sofrido pelos credores em confronto, lesando sempre um deles independentemente das circunstâncias do caso. Note-se que a Segurança Social tem, como qualquer credor, o poder de tomar a iniciativa na instauração das acções executivas para cobrança dos créditos de que é titular. Não está pois em causa, em minha opinião, o direito de acesso à justiça e aos tribunais, mas a própria consistência material do crédito do exequente credor comum, neste ponto acompanhando o acórdão votado. Finalmente, também não creio que possa ser invocado, no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada, o princípio da igualdade, pelas razões apontadas no acórdão. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza