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Proc. Nº 107/98
1ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Ao abrigo do disposto no artigo 85º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, M... apresentou reclamação extraordinária na Repartição de Finanças de Portimão contra a liquidação da contribuição industrial do grupo A, do exercício de 1983, no montante de 400 955$00, acrescido de 13 226$00 de juros compensatórios, com fundamento em alegada violência de lei e injustiça grave e notória, por não ter sido considerado como custos e perdas daquele exercício o montante de 936 810$00, correspondente ao valor de furto de que o reclamante fora vítima.
Indeferida aquela reclamação extraordinária pelo Director de Finanças do Distrito de Faro, o reclamante interpôs, sucessivamente, recursos hierárquicos para o Subdirector-Geral das Contribuições e Impostos e para o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, os quais também vieram a ser indeferidos. E deste último despacho, datado de 23 de Novembro de 1989, recorreu contenciosamente para o Supremo Tribunal Administrativo.
Nas suas alegações, o recorrente formulou a seguinte conclusão:
Deve ser anulado o despacho de Sua Exª o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 23 de Novembro de 1989, com o fundamento em violação de lei, por ofensa à norma contida no artigo 26º do Código de Contribuição Industrial, e, por consequência, ser aceite como custos os valores das mercadorias roubadas ou furtadas.
2. No seu parecer, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso, pelos fundamentos seguintes:
Resulta dos art.ºs 88º e 85º al. d) do C.P.C.I. que, em casos como o dos autos, o recurso para este S.T.A. só é possível se o fundamento respectivo for a violência por parte dos agentes ou autoridades fiscais, ou preterição de formalidade essencial ou denegação de acção judiciária.
Como se vê da petição e das conclusões das alegações, o fundamento do recurso «sub judice» é a violação do artº 26º do C.C. Industrial por erro de interpretação.
Significa o exposto que o fundamento do recurso não está previsto na lei.
3. Na sua resposta, o recorrente, citando alguma doutrina (Vítor Faveiro, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I vol., págs. 532/533, Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, Código de Processo das Contribuições e Impostos, pág. 37), suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 88º do CPCI, por contrariedade com o artigo 268º, nº 4, da Lei Fundamental.
4. Por acórdão de 11 de Junho de 1997, o STA julgou improcedente aquela questão prévia suscitada pelo Ministério Público, considerando, para tanto, que, como «o acto recorrido é um acto administrativo, definitivo e executório, é óbvio que a limitação prevista no artigo 88º do CPCI viola aquele preceito constitucional [artigo 268º, nº 4, da Constituição]. Assim, o artº 88º do CPCI, na medida em que limita o recurso contencioso dos actos administrativos
às hipóteses previstas na al. d) do art. 85º do CPCI, é inconstitucional».
Admitido, assim, o recurso, o acórdão concedeu provimento ao mesmo, quanto à questão de fundo, e anulou, em consequência, o despacho impugnado do Secretário dos Assuntos Fiscais.
5. Dessa decisão recorreu o Ministério Público para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da LTC, com fundamento na recusa de «aplicação, por inconstitucionalidade, do artº 88º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, por violação do artº 268 nº 4 da Constituição».
Por sua vez, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais interpôs recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, nos termos do disposto no artigo 102º da LPTA.
Admitidos ambos os recursos, por despacho de 9 de Julho de 1997, veio o Ministério Público reclamar do mesmo para a conferência, nos termos do artigo 300º, nº 3, do CPC, «porquanto, ao admitir também o recurso interposto para o Pleno da Secção violou-se [...] o disposto no artº 75º [da LTC] [...], nos termos do qual o recurso interposto e admitido para o Tribunal Constitucional interrompe o prazo para a interposição do recurso para o Pleno, o qual só pode ser interposto depois de cessada a interrupção».
6. Por acórdão, em conferência, de 10 de Dezembro de 1997, o STA decidiu revogar aquele despacho e admitir o recurso interposto pelo Ministério Público, «com as consequências previstas no art. 75º, n. 1, da Lei do Tribunal Constitucional».
Já neste Tribunal, o Ministério Público produziu alegações, que concluiu pela forma seguinte:
A norma constante do artigo 88º do Código de Processo de Contribuições e Impostos ao limitar o direito ao recurso contencioso relativamente às decisões ministeriais, que dirimem definitivamente reclamações extraordinárias deduzidas, colide frontalmente com o direito à tutela jurisdicional efectiva dos administrados, presentemente consagrada no nº 4 do artigo 268º da Lei Fundamental.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
7. Estabelecia o artigo 88º do Código de Processo das Contribuições e Impostos:
A decisão sobre a reclamação extraordinária é susceptível de recurso hierárquico, só podendo, porém, recorrer-se da decisão ministerial para o Supremo tribunal Administrativo se o fundamento da reclamação for o da alínea d) do artigo 85º.
§ único Havendo recurso hierárquico para o director de finanças, é aplicável à sua decisão o disposto no § único do artigo 80º. Para esse efeito, será exercida pelo director-geral das Contribuições e Impostos a competência atribuída naquele preceito aos directores de finanças.
Por seu turno, dispunha o artigo 85º do mesmo Código:
A reclamação extraordinária só poderá ser deduzida quando o contribuinte alegue:
a) Ter sido tributado sem fundamento algum e não dever presumir a colecta ou as inscrições que lhe serviram de base;
b) A inexistência de facto tributário, consequente de decisão judicial;
c) A duplicação de colecta;
d) Ter havido, por parte dos agentes ou autoridades fiscais, alguma violência, preterição de formalidades essenciais ou denegação de acção judiciária;
e) Ter ocorrido na tributação qualquer caso de injustiça grave ou notória.
§ único. Haverá duplicação de colecta quando, estando paga por inteiro uma contribuição ou imposto, se exigir da mesma ou de diferente pessoa uma outra de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
Estamos, pois, perante questão em tudo semelhante à que este Tribunal teve ocasião de apreciar, nomeadamente nos Acórdãos nº 114/89, nº
429/89, nº 437/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs.
641 e segs., 1237 e segs. e 1291 e segs., respectivamente) e nº 312/92 (ibidem,
23º vol., págs. 303 e segs.), a propósito de outras disposições das leis fiscais que impediam ou limitavam a certos vícios a possibilidade de impugnação contenciosa.
Como se pode ler no referido Acórdão nº 312/92:
A garantia de recurso contencioso foi mantida na 2ª revisão constitucional, promovida pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho. O legislador substituiu então a noção de «actos administrativos definitivos e executórios» pela de «actos administrativos lesivos», determinando, no nº 4 do artigo 286º, que «É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Esta evolução legislativa foi já entendida como uma «ampliação da possibilidade de recurso contencioso contra actos ilegais (mesmo que não definitivos e não executórios) lesivos de direitos legalmente protegidos...» e como uma quebra da «...barreira formalista que impediu durante anos os administrados de atacarem um acto claramente ilegal, antes de a Administração ter concluído todas as ‘fases preparatórias’ e antes de ao mesmo ser conferido carácter executório» (cfr. José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional,
1989, p. 20; sobre a matéria, cfr. Rogério Soares, Scientia Iuridica, XXXIX, pp.
25 e segs., Mário Torres, ibidem, pp. 36 e seg.s, e Gomes Canotilho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 123º, p. 19).
Mas, mesmo sem averiguar se o novo conceito de «actos administrativos lesivos» é mais compreensivo, como parece, do que o antigo conceito de «actos administrativos definitivos e executórios» - isto é, se são passíveis de recurso contencioso, presentemente, actos administrativos não definitivos e executórios
-, facilmente se conclui, no caso em apreço, que o acto impugnado continua a caber no âmbito da garantia constitucional.
Ora, o mesmo ocorre no caso em apreço. Efectivamente, também aqui o acto de que se pretende recorrer «constitui acto administrativo definitivo e executório e é, eventualmente, lesivo de direitos ou interesses legalmente protegidos», sendo certo que, mesmo na versão originária da Constituição,
«decorria a ilegitimidade de qualquer disposição da lei ordinária que declarasse irrecorrível determinado acto administrativo definitivo e executório, ou restringisse o direito de impugnação contenciosa desse acto, ou de parte desse acto, ou o limitasse a alguns dos seus vícios», já que se afigura «óbvio que, constitucionalmente, o recurso não pode deixar de abranger todos os aspectos juridicamente relevantes para apurar da legalidade do acto administrativo em causa» (Acórdão nº 429/89, cit., págs. 1243 e 1245).
8. Nem se diga, em sentido contrário, que a reclamação extraordinária já consiste, em si mesma, num meio adicional de defesa do contribuinte, apenas admissível em certos casos de ilegalidade mais grave, uma vez que, em regra, o contribuinte deverá fazer uso da reclamação ordinária, cuja resolução é sempre susceptível de impugnação judicial.
Com efeito, o que para o caso importa é que, tendo a lei previsto aquele meio extraordinário sobre o qual recai necessariamente um acto administrativo, então esse mesmo acto administrativo não pode deixar de ficar sujeito a recurso contencioso, nos termos gerais.
9. A última revisão constitucional, constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, introduziu nova redacção ao nº 4 do artigo 268º, que passou a ser a seguinte:
É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.
Não existem razões para se adoptar posição diversa da constante da jurisprudência constitucional citada, que mantém a sua actualidade face à nova versão do texto constitucional, já que este em nada diminuiu – antes pelo contrário – as garantias de recurso contencioso.
III – DECISÃO
10. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 268º da Constituição, a norma constante do artigo 88º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, na parte em que limita o recurso das decisões ministeriais para o Supremo Tribunal Administrativo aos casos em que o fundamento da reclamação tiver sido o previsto na alínea d) do artigo 85º do mesmo Código;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso. Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Luis Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa