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Proc. nº 649/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses aplicou ao arguido A..., já que se encontrava indiciada a prática de um crime de homicídio, previsto e punível nos termos do artigo 131º do Código Penal, a medida de coacção de prisão preventiva.
A..., invocando o desconhecimento dos indícios existentes nos autos que determinaram a aplicação da prisão preventiva, requereu ao Juiz de Instrução Criminal a consulta dos autos na secretaria do tribunal.
O Ministério Público ordenou a notificação do arguido para que este indicasse as cópias, extractos ou certidões que pretendia consultar, com as limitações constantes do nº 2 do artigo 89º do Código de Processo Penal.
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A..., em resposta, afirmou, através de requerimento dirigido de novo ao juiz, que 'a matéria respeitante à liberdade do arguido é da competência exclusiva do Juiz de Instrução', reiterando o que anteriormente havia requerido.
O Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses, por despacho de 24 de Outubro de 1997, considerou que no caso dos autos não há lugar a qualquer intervenção do Juiz de Instrução, na medida em que o requerente veio unicamente pedir a consulta do processo. Afirmou também que compete ao Ministério Público, como autoridade judiciária que dirige o inquérito, pronunciar-se sobre a consulta requerida. Acrescentou, ainda, que o argumento assente na circunstância de estar em causa matéria respeitante à liberdade do arguido não colhe, uma vez que não foi negado ao defensor o acesso
às peças processuais a que lhe é permitido ter acesso, nos termos do artigo 89º, nº 2, do Código de Processo Penal. Em consequência, indeferiu o requerido, determinando a remessa dos autos à delegação do Ministério Público, para os fins tidos por mais convenientes.
2. A... requereu a aclaração do despacho de 24 de Outubro de 1997, pedindo ao Juiz de Instrução Criminal que esclarecesse se o despacho aclarando
'é tão-só de declaração de incompetência para se pronunciar sobre o requerido ou se também conheceu, no mesmo, do seu mérito'.
O Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses, por despacho de 30 de Outubro de 1997, indeferiu o
3 requerimento de aclaração. Para tanto, considerou que no despacho de 24 de Outubro de 1997 se decidiu indeferir o requerido, 'porque se entendeu que os autos se encontravam na fase de inquérito, pelo que pertencia ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária que preside a esta fase processual, ordenar ou permitir que fosse dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo do acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade, nos termos do artigo 86º, nº 4, do Código de Processo Penal'.
O Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses esclareceu ainda que, tendo sido alegado pelo requerente que devia ser o Juiz de Instrução Criminal a decidir sobre a requerida consulta aos autos uma vez que estava em causa a liberdade do arguido, 'ao Juiz de Instrução Criminal apenas competia intervir nas situações previstas na lei, designadamente, nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal'.
3. A..., dirigindo-se de novo ao Juiz de Instrução Criminal, requereu 'certidão das peças processuais donde constem os elementos de facto que foram alicerce das conclusões de que há perigo de fuga do arguido e da sua intenção de - uma vez posto em liberdade - perturbar o decurso do inquérito, designadamente no que toca à aquisição, conservação e veracidade da prova'.
O Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses proferiu o seguinte despacho datado de 11 de Novembro de 1997:
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'Em conformidade com o já decidido nestes autos a fls. 66 e 67 - despacho de 24 de Outubro de 1997 -, indefere-se o requerido'.
4. A... interpôs recurso de constitucionalidade do despacho de 11 de Novembro de 1997, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando que o juiz a quo aplicou norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 121/97 (D.R., II Série, de 30 de Abril de 1997).
Junto do Tribunal Constitucional, o arguido apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
Artigo 1º - É inconstitucional o nº 2 do artigo 89º do Código de Processo Penal se interpretado - como foi o caso - de que sempre e em qualquer circunstância, e sem necessidade de fundamentação concreta, é vedado o acesso aos autos ao advogado do arguido preso preventivamente em tudo o que extravase os casos tipificados nesse normativo legal, por violação dos arts. 20º, nº 1,
28º, nº 1 e 32º, nºs 1 e 5, todos da Constituição.
Artigo 2º - Os direitos fundamentais são sempre materiais, pelo que não pode a lei ordinária anulá-los, devendo ser interpretada com um sentido que respeite esses direitos.
Artigo 3º - Toda e qualquer compressão a um direito fundamental só é admissível e legal se ao serviço de outro valor com dignidade constitucional e nos termos previstos na lei fundamental.
Artigo 4º - E para poder operar tem que expres-samente ser invocada na decisão jurisdicional em causa.
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Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, tendo tirado as seguintes conclusões:
Não deve conhecer-se do recurso por este ter sido interposto de um despacho que não constitui uma decisão relativamente às normas que o acórdão nº
121/97, do Tribunal Constitucional, julgou inconstitucionais, por violação dos artigos 20º, nº 1, e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição.
Respondendo à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente propugnou o conhecimento do objecto do recurso, com o fundamento de que o Juiz de Instrução Criminal da Comarca de Marco de Canaveses, tendo indeferido o requerido, procedera, necessariamente, a uma apreciação de mérito do pedido.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. O Ministério Público sustenta que o Tribunal Constitucional não deverá tomar conhecimento do objecto do recurso, em virtude de considerar que a decisão recorrida não fez aplicação da dimensão normativa julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 121/97. Com efeito, o Ministério Público afirma, nas suas contra-alegações, que o juiz a quo decidiu apenas a questão relacionada com a intervenção do Juiz de Instrução Criminal na fase do inquérito, não tomando posição quanto ao pedido de
6 consulta dos autos formulado pelo arguido.
O recorrente, por seu turno, considera que a decisão recorrida conheceu do mérito do requerido, uma vez que indeferiu o pedido da consulta dos autos.
A apreciação da questão prévia suscitada pelo Ministério Público impõe uma análise substancial do sentido decisório do despacho recorrido. Para que se possa concluir que o juiz apreciou o mérito do pedido formulado pelo ora recorrente, não basta constatar que 'houve um indeferimento do requerido', sendo antes necessário averiguar se a decisão recorrida efectivamente se pronunciou sobre a consulta dos autos pretendida. Só assim será possível apurar se foi ou não feita aplicação da norma julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 121/97.
7. A decisão recorrida (despacho de fls.26) 'indeferiu' o requerimento de fls.24 e 25, no qual se pedia a passagem de certidão de determinadas peças processuais. Tal decisão remeteu a respectiva fundamentação para o anteriormente decidido a fls.66 e 67 (fls. 19 e 20 dos presentes autos).
No despacho de 24 de Outubro de 1997 (fls. 19 e 20), o Juiz de Instrução Criminal de Marco de Canaveses considerou que na fase de inquérito pertence ao Ministério Público a direcção dos autos (artigo 263º do Código de Processo Penal). Considerou também que 'o segredo de justiça tem como finalidades fundamentais facilitar os objectivos da perseguição e repressão criminais, com salvaguarda da dignidade da magistratura e a preservação da vida privada do próprio arguido', podendo a
7 autoridade judiciária que preside à fase processual facultar a consulta dos autos, nos termos do artigo 86º, nº 4, do Código de Processo Penal. De seguida concluiu que 'no caso dos autos, não há lugar a qualquer intervenção do Juiz de Instrução - que só deverá ocorrer nos termos dos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal - uma vez que o requerente veio pedir unicamente a consulta do processo, pelo que apenas ao Ministério Público compete pronunciar-se sobre o mesmo, como autoridade judiciária que preside à fase processual em que os autos se encontram'. Em consequência, indeferiu o requerido, determinando a remessa dos autos à delegação do Ministério Público, para os fins tidos por mais convenientes.
Verifica-se assim que não houve materialmente qualquer pronúncia sobre o pedido de passagem de certidões que o ora recorrente formulou, tendo o Juiz de Instrução Criminal apenas declarado que na fase de inquérito não detém competência para decidir sobre o requerimento que lhe foi dirigido. A questão jurídica decidida foi pois a da competência do Juiz de Instrução para intervir no inquérito naquele preciso acto, e não a dos limites do acesso pelo arguido a elementos dos autos durante a fase do inquérito.
No Acórdão nº 121/97, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 86º, nº 1 e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas por despacho do Juiz de Instrução, no sentido de não poder ser autorizada, fora das situações previstas no artigo 89º, nº 2, do referido Código, a consulta do processo, na fase de
8 inquérito, para poder ser impugnada a medida de coacção de prisão preventiva, por violação das disposições dos artigos 20º, nº 1, e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição, lidas articuladamente.
Estava então em causa o recurso de uma decisão do Juiz de Instrução que indeferiu um pedido de consulta dos autos de inquérito, em virtude de não se verificar nenhuma das situações expressa e taxativamente previstas (no entendimento do tribunal a quo) no artigo 89º, nº 2, interpretado em articulação com o artigo 86º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal. A norma jurídica cuja conformidade à Constituição se apreciou foi a que estabelece limites à consulta dos autos pelo arguido na fase de inquérito, impedindo-o de ter acesso aos elementos que lhe permitem avaliar, para efeito de recurso, os fundamentos da decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Nos presentes autos, como se referiu, o despacho recorrido não se pronunciou sobre a possibilidade de o arguido ter acesso aos autos durante a fase de inquérito. O Juiz de Instrução Criminal de Marco de Canaveses apenas se declarou incompetente para apreciar o requerimento no qual se pede a passagem de certidões das peças processuais de onde constem os elementos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido.
Há, nessa medida, que concluir que a decisão recorrida não aplicou a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 121/97, mas uma norma ou interpretação normativa segundo a qual o Juiz de Instrução não tem competência para se pronunciar sobre o acesso aos autos na
9 fase do inquérito, em situações como a presente.
8. É verdade que no Acórdão nº 121/97 o Tribunal Constitucional decidiu a questão de constitucionalidade então suscitada num processo em que foi o juiz de instrução criminal a autoridade judiciária que apreciou o requerimento de consulta dos autos.
Contudo, não está em causa no presente processo [porque se trata de um recurso interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional] a apreciação da conformidade à Constituição da interpretação dos artigos 263º, 268º e 269º do Código de Processo Penal, no sentido de o juiz de instrução criminal não ter competência, na situação sub judicio, para intervir no inquérito quando for requerida pelo arguido a consulta dos autos para impugnação da decisão de aplicação da prisão preventiva (dimensão normativa fundamento da decisão recorrida).
Assim, o Tribunal Constitucional não se pronunciará sobre tal questão.
9. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que o Tribunal possa tomar conhecimento do seu objecto, que a decisão recorrida tenha feito aplicação de norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
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Como se demonstrou, a decisão recorrida não fez aplicação da norma julgada inconstitucional no Acórdão nº 121/97.
Conclui-se, portanto, pela procedência da questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
Lisboa, 6 de Maio de 1998 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa