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Proc. nº 21/98 Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. AM..., tendo sido condenado, no Tribunal de Círculo de Anadia, na pena de oito anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, quando se achava acusado de tentativa de homicídio, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, questionando, inter alia, o facto de lhe não ter sido facultada a possibilidade de se defender relativamente à convolação jurídica feita, e pedindo o reenvio do processo para novo julgamento.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Março de 1997 - depois de ponderar que, 'para garantir o direito de defesa do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República, se torna necessário anular a decisão para que o tribunal a quo, antes de decidir, informe o arguido da possibilidade que divisa de alteração da qualificação jurídica dos factos em relação à
que foi apontada na acusação, dando em seguida oportunidade de defesa ao arguido em relação a essa possível qualificação, decidindo em seguida, sem qualquer limitação pelas considerações expendidas que hão-de considerar-se prejudicadas por tal anulação [...] - anulou a decisão recorrida, para que fosse 'concedida ao arguido a oportunidade de defesa no que concerne à nova qualificação jurídica provável dos factos'.
2. Na 1ª instância, o juiz, por despacho de 27 de Março de 1997 - para além de designar data para novo julgamento - ordenou a notificação do arguido para lhe comunicar a possível alteração da qualificação jurídica dos factos de que estava acusado. E, logo no início da audiência de julgamento, o arguido pôs em causa o facto de ela ser feita com a participação dos juízes que tinham proferido a sentença anulada, uma vez que - disse- tal facto violava as garantias de defesa, 'resultando desse modo desconforme à Constituição com a interpretação dos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal que o permita'.
O Tribunal Colectivo, depois de consignar que a
'inconstitucionalidade deveria ter sido suscitada dentro do prazo legal a contar da notificação do acórdão pelo STJ', ordenou a continuação da audiência de julgamento e deu a palavra
ao defensor do arguido, 'para querendo oferecer novos elementos de prova ou requerer o que tiver por conveniente em face do novo e mais grave enquadramento criminal dos factos ao arguido imputados'.
O defensor do arguido limitou-se a dizer que, 'em relação à nova qualificação jurídico-penal dos factos, e por se tratar de matéria de direito não oferece nova prova nem sequer qualquer outra diligência probatória sem prejuízo de posterior arguição de inconstitucionalidade'.
3. Proferida a sentença, recorreu o arguido, de novo, para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, entre o mais, que 'interpretar o artigo 426º do Código de Processo Penal como possibilitando que, fora das circunstâncias referidas no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, um arguido seja novamente julgado pelo mesmo tribunal que, relativamente ao mesmo caso, já o sentenciou anteriormente (e viu a sua decisão superiormente anulada), é interpretar-se tais normativos de modo desconforme à Constituição da República Portuguesa'; e sustentando, bem assim, que 'a interpretação dada aos artigos
358º, 359º e 379º do Código de Processo Penal, que permita que seja o tribunal que condenou já o arguido (por qualificação
jurídico-penal diversa daquela de que o arguido foi acusado e que, por isso, viu a sua decisão anulada) o mesmo a sentenciar novamente o arguido viola o artigo
32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Novembro de
1997, negou provimento ao recurso, tendo sublinhado que não podia 'atacar-se de inconstitucional uma providência que teve origem precisamente na inconstitucionalidade da sua omissão'. Providência que - disse - 'cabia necessariamente [...] na competência do próprio tribunal recorrido e não na de outro'.
4. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Novembro de 1997, que vem o presente recurso, interposto pelo arguido ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma que se extrai da leitura conjugada dos artigos 4º,
426º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, e 730º e 731º, nº 2, do Código de Processo Civil, segundo a qual há-de ser o tribunal, que condenou o arguido por crime diverso daquele por que estava acusado sem lhe dar oportunidade de se defender dessa nova qualificação jurídico-criminal dos factos, que o deve sentenciar novamente, uma vez anulada a decisão em
via de recurso, comunicando-lhe, desta feita, previamente, a referida alteração da qualificação jurídico-penal.
Neste tribunal, o recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1. A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se tendo sido o arguido condenado por um Tribunal pela prática de um crime diverso daquele pelo qual vem acusado, sem que lhe fosse dada oportunidade de defesa relativamente a essa nova qualificação jurídico-penal dos factos e, anulada essa decisão por tribunal superior, para que o arguido se possa pronunciar quanto à nova qualificação, a questão que se coloca, repete-se, é saber se respeita a Constituição ser o mesmo Tribunal (leia-se os mesmos juízes), que o condenou anteriormente, a sentenciá-lo novamente comunicando-lhe, desta feita previamente, a referida alteração da qualificação jurídico-penal;
2. Prescreve o artº. 426º do Cód. Processo Penal que: 'sempre que por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º não for possível decidir da causa, o Tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificáveis na decisão de recurso'. Entende o Supremo Tribunal de Justiça que, sendo o recurso interposto pela prática de uma nulidade insanável (a falta de comunicação prévia ao arguido de alteração da qualificação jurídico-penal pela qual foi, a final, condenado), e não se subsumindo tal circunstancialismo ao previsto no nº 2 do artº. 410º do Cód. Processo Penal, devem ser os mesmos juízes que condenaram, praticando tal nulidade, anteriormente o arguido os mesmos a, comunicando-lhe previamente a referida alteração da qualificação jurídico-penal, sentenciá-lo novamente. Tal entendimento, tal interpretação dos arts. 426º e 410º do Cód. Processo Penal, é inconstitucional por violar o art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
3. O artº. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao prescrever que: 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso', traduz uma deliberada e radical opção
jurídico-constitucional que inelutavelmente se deve impôr não apenas ao legislador ordinário como também ao julgador;
4. Os direitos do arguido resultam prejudicados se (como é o caso), anulado um acórdão, aquele vier a ser submetido novamente ao julgamento daqueles julgadores que sobre ele já realizaram todo o percurso intelectivo-cognoscitivo que culminou no acórdão anulado [...] pois os julgadores não poderão deixar de ter presente toda a matéria e juízos já expendidos anteriormente, pelo que a nova apreciação judicativa estará sempre prejudicada [...]. Ora, verem-se estes, depois, obrigados pelo tribunal superior a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídico-penal é igual, passe a ironia, a perguntar ao arguido 'se tem algo a dizer antes de ser condenado';
5. Os arts. 730º e 731º, nº 2, do Cód. Processo Civil que regem casos de reforma de acórdãos em matéria cível não são aplicáveis à matéria sub judice, a qual, sendo constitucionalmente tutelada, não é resolúvel com esquemas operativos concebidos para a resolução de meras questões cíveis;
6. A aplicação ao caso sub judice dos referidos arts. 730º e 731º, nº 2, do Cód. Processo Civil, bem como a interpretação do art. 4º do Cód. Processo Penal que tal permita é, pois, inconstitucional por violação do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal formulou as seguintes conclusões:
1º - Não tendo sido oportunamente impugnada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que determinou a reforma da decisão anulada pelo próprio tribunal recorrido, que a havia proferido, não é possível, em recurso interposto de decisões que se limitaram a acatar e cumprir o caso julgado formal daquela emergente, questionar a natureza e o âmbito de tal anulação, pretendendo sustentar que o Supremo Tribunal de Justiça deveria ter optado antes pelo regime do reenvio do processo para novo julgamento.
2º - Na verdade, foi aquele primeiro aresto do Supremo Tribunal de Justiça que aplicou efectivamente as normas questionadas como inconstitucionais, limitando-se as decisões ulteriormente proferidas nos autos a esclarecer e fazer notar que havia sido perfeitamente cumprido o inicialmente determinado pelo Supremo.
3º - Termos em que não deverá conhecer-se do recurso ora interposto.
Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio ele dizer que a mesma improcede.
5. Cumpre decidir. E, desde logo, se deve conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
6. A questão prévia:
6.1. O Ministério Público sustenta não dever conhecer-se do recurso, uma vez que - disse - 'foi o acórdão de 5 de Março de 1997 que 'aplicou' as normas agora questionadas sob o prisma da sua 'constitucionalidade', limitando-se as decisões ulteriormente proferidas (o despacho de fls. 408v., aliás, nem sequer impugnado pelo recorrente e o segundo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça) a esclarecer e fazer notar que a questão suscitada se devia considerar 'arrumada' em consequência do inicialmente decidido pelo Supremo'.
6.2. O recorrente, de sua parte, com interesse para a decisão da questão prévia suscitada, limitou-se a dizer que, 'quanto à inconstitucionalidade dos referidos artigos 410º, nº 2, e 426º do Código de Processo Penal', suscitou a sua 'inconstitucionalidade nas alegações apresentadas com a petição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça'; e, quanto à 'inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 4º do Código de Processo Penal e aos artigos 730º e 731º, nº
2, do Código de Processo Civil, no acórdão de 20 de Novembro de 1997, deve [...] considerar-se o recorrente dispensado do disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, in fine por não ter tido oportunidade processual de suscitar a questão antes da decisão recorrida'.
6.3. Não restam dúvidas de que foi no acórdão de 5 de Março de 1997- e não no de 20 de Novembro de 1997 - que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que devia ser o tribunal a quo, cuja decisão anulou, a proferir a nova sentença, devendo, 'antes de decidir', informar o arguido 'da possibilidade que divisa de alteração da qualificação jurídica dos factos em relação à que foi apontada na acusação'. Ou seja: foi no acórdão de 5 de Março de 1997 que o Supremo, em vez de lançar mão dos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal e ordenar o reenvio do processo para repetição do julgamento pelo
tribunal colectivo mais próximo, optou por determinar a reforma da decisão, que anulou, encarregando disso o próprio tribunal recorrido. Foi, aí, por isso, que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou o artigo 4º do Código de Processo Penal, ou seja, que lançou mão dos artigos 730º e 731º, nº 2, do Código de Processo Civil.
No acórdão de 20 de Novembro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça limitou-se a explicitar a razão por que optou pela anulação da sentença (e não pela anulação do julgamento), ordenando a sua reforma, em vez do reenvio do processo.
Escreve ele: O princípio da plenitude da assistência dos juízes [...] tem consagração nos artigos 730º, nº 1, e 731º, nº 2, do Código de Processo Civil. Esse regime é aplicável no processo penal, por força do artigo 4º do CPP, e apenas sofre desvio nos casos de reenvio previstos nos artigos 431º e 436º do mesmo Código. Em todos os outros casos, v.g. de nulidade a ser suprida no tribunal recorrido, intervêm na decisão a reformar os mesmos juízes, sempre que possível. Não se trata de um novo julgamento, mas da reforma da decisão anulada (na expressão do artigo 731º, nº 2, CPC), expurgada que seja dos vícios que a inquinam. E não existe aí qualquer violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, relativo às garantias de defesa. Precisamente porque o acórdão deste Supremo de 5/3/97 entendeu que o acórdão anterior do Colectivo violava essas garantias de defesa (por não ter sido comunicada ao arguido a nova incriminação, para que dela se pudesse defender) é que anulou a respectiva decisão (e não o julgamento), a fim de que o tribunal recorrido suprisse a omissão, tudo de harmonia com a doutrina do Tribunal Constitucional que contrariou o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de
27/1/93, publicado no Diário da República, de 10 de Março de 1993.
E, mais adiante, acrescentou: O acórdão deste Tribunal de 5/3/97 e o subsequente acórdão do Colectivo, agora em recurso, obedeceu à doutrina estabelecida no acórdão (com força obrigatória geral) do Tribunal Constitucional (in Diário da República, de 5 de Agosto de
1997) no sentido de que a alteração da qualificação jurídica dos factos só é vedada ao tribunal quando, podendo conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, não seja este prevenido da nova qualificação e não se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa. Ora, como se viu, o Supremo anulou a primeira decisão do Colectivo precisamente para que a convolação para figura criminal mais grave fosse precedida da comunicação da nova incriminação ao arguido, para que este dela se defendesse. Doutrina que decorre, aliás, dos artigos 358º e 359º do CPP e não viola o art.
32º, nº 1, da CRP (v. o falado acórdão do TC, de 25/6/97).
O acórdão ora sob recurso (o acórdão de 20 de Novembro de 1997) não podia, aliás, fazer coisa diferente do que fez (a saber: explicitar a razão por que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 5 de Março de 1997, optou pelo modus agendi que se deixou apontado).
É que, este último aresto, não tendo sido impugnado, transitou em julgado. E, por isso, ficou definitivamente arrumada, no processo, a questão de saber qual o tribunal que devia sentenciar o arguido, depois de ele ser, previamente, advertido da possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos por que estava acusado: esse tribunal era o
tribunal de 1ª instância recorrido, e não outro para o qual o processo devesse ser reenviado.
Sendo isto assim, tudo quanto o Supremo Tribunal de Justiça disse, no acórdão de 20 de Novembro de 1997, a propósito da constitucionalidade da solução por que optou no acórdão de 5 de Março de 1997, não constitui ratio decidendi do improvimento do recurso interposto do acórdão da 1ª instância proferido por último. A razão desse improvimento (ou seja: a razão por que o Supremo Tribunal de Justiça não atendeu a pretensão, formulada no recurso, de que fosse outro tribunal, que não o tribunal de 1ª instância recorrido, a sentenciar o arguido) reside no facto de, atento o efeito preclusivo do caso julgado formal, essa questão se encontrar, para si próprio, definitivamente arrumada no processo.
No contexto do acórdão recorrido, as considerações tecidas a propósito da referida questão de constitucionalidade não passam, pois, de obiter dicta, insusceptíveis de abrir a via do recurso de constitucionalidade. Este só podia ter sido interposto do acórdão de 5 de Março de 1997. Não o tendo sido, ficou definitivamente arrumada no processo a questão de constitucionalidade que o presente recurso nos propõe.
Dizer isto é concluir, com o Ministério Público, que o Tribunal não pode conhecer do recurso interposto, uma vez que o acórdão recorrido não aplicou as normas que o recorrente pretende agora ver apreciadas sub specie constitutionis.
6.4. Concluindo: há, por isso, que atender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide atender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e não conhecer do recurso, condenando o recorrente nas custas, com taxa de justiça que se fixa em oito unidades de conta.
Lisboa, 20 de Maio de 1998 Messias Bento Luis Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa