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Proc.Nº 400/97 Sec. 1 Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - A Federação Portuguesa de Futebol (adiante, FPF) moveu ao árbitro J. P. um processo disciplinar por factos relacionados com o envio à FPF do boletim do encontro nº ..., S../SF.., realizado em Angra do Heroísmo, no dia ..., a contar para o Campeonato Nacional da 2ª divisão B.
Na resposta à acusação, o referido árbitro, além de arrolar testemunhas, requereu que a inquirição de algumas delas fosse realizada na sede da respectiva Associação de Futebol, ou seja, na Associação de Futebol do Porto, nomeadamente nos Serviços do respectivo Conselho de Arbitragem.
Face a tal requerimento, o inquiridor mandou apresentar os autos ao Conselho de Disciplina. Aqui foi lavrado o seguinte despacho:
'Autoriza-se a inquirição das testemunhas na sala da Associação Distrital respectiva, desde que pago o competente preparo para despesas'.
Na sequência deste despacho, o arguido foi notificado para efectuar o preparo de 35.000$00 para despesas. Não se conformando com tal decisão do Conselho de Disciplina, o arguido dela interpõe recurso para o Conselho de Justiça da FPF, logo apresentando a respectiva fundamentação e conclusões.
O arguido, nas alegações, suscitou logo a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 129º, nº6, 2ª parte, do Regulamento Disciplinar da FPF, na medida em que a exigência do prévio pagamento de despesas no âmbito de um processo disciplinar é um meio e um acto que viola o direito à defesa do arguido no processo disciplinar - facto este que viola os princípios
ínsitos nos artigos 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
O Conselho de Justiça da FPF, por acórdão de 14 de Junho de 1996, decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Notificado desta decisão, o arguido pretendeu interpor recurso da mesma para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº1 do Artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por na decisão ter sido aplicada norma cuja inconstitucionalidade tinha sido suscitada durante o processo.
Todavia, o Conselho de Justiça da FPF, por acórdão de 10 de Setembro de 1996, decidiu não admitir o recurso por entender que 'o recurso só é admissível relativamente a decisões dos tribunais - nº1 do referido artigo
70º' e, 'depois, porque se considerar o acórdão recorrido como uma decisão jurisdicional, dela cabe recurso para os tribunais públicos (artigo 25º da Lei de Bases do Sistema Desportivo)'.
É desta decisão que vem apresentada a presente reclamação.
2. - O Ministério Público teve vista dos autos e aí expendeu a seguinte posição:
'A presente reclamação parece-nos claramente improcedente, desde logo, por se não mostrarem esgotados os recursos ordinários possíveis - pressuposto essencial do tipo de recurso de fiscalização concreta interposto. Na verdade - e face ao disposto no nº1 do artigo 25º da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro - a regra é serem impugnáveis, nos termos gerais de direito, as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo. A única excepção, decorrente do preceituado no nº2 daquele artigo, reporta-se a decisões sobre questões estritamente desportivas, reportadas à violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar. Ora, é evidente que a questão de inconstitucionalidade suscitada, referente à norma do artigo 129º, nº6, do Regulamento disciplinar da FPF, interpretada em termos de se exigir ao arguido, em processo disciplinar, o pagamento das despesas decorrentes da inquirição, na área de outra associação distrital, de testemunhas por ele arroladas, não é subsumível à previsão constante do citado nº2 do artigo 25º. Não está, por um lado, obviamente em causa, a apreciação de uma violação de natureza técnico--desportiva; e, por outro lado, embora a referida questão de inconstitucionalidade apareça inserida no âmbito de um processo disciplinar, não constitui - ela mesma - uma decisão de carácter disciplinar, mas uma questão que, aliás, na perspectiva do próprio reclamante, tem a ver essencialmente com a problemática do direito de acesso à justiça e das garantias de audiência e defesa do arguido no âmbito do processo disciplinar. Cumpria, pois, ao reclamante ter esgotado os recursos ordinários possíveis, nos termos do nº1 do artigo 25º da citada Lei nº 1/90'.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
3. - Segundo o reclamante, nos termos dos Estatutos da FPF não é possível o recurso das decisões do Conselho de Justiça da FPF para os Tribunais comuns, uma vez que, de acordo com a Lei de Bases do Sistema Desportivo (adiante, LBSD) tal recurso para os tribunais apenas cabe relativamente aos processos ou questões de natureza não estritamente desportiva. Ora, o reclamante defende que, no caso concreto, estando em causa um processo disciplinar a um árbitro desportivo por não cumprimento dos seus deveres relacionados com as suas funções, as questões em causa no recurso são de âmbito meramente desportivo.
O reclamante refere, aliás, no requerimento que, aparentemente, o Conselho de Justiça terá mudado de opinião, relativamente a um outro Acórdão que terá proferido - e que o reclamante ainda não conhece. Entende, no entanto, que não pode estar sujeito a uma «situação dúbia» e, por isso, continua a sufragar o 'entendimento segundo o qual as questões em causa não são de «NATUREZA NÃO ESTRITAMENTE DESPORTIVA» e, como tal, não são passíveis de ser questionadas em sede de Tribunal Administrativo'.
Por isso, considerando que não existe fundamento para a decisão do Acórdão do Conselho de Justiça da FPF que ordena o pagamento de uma importância determinada como «condição» para que a instrução do processo disciplinar seja concluída, é que formulou a presente reclamação.
4. - Nos termos do que se dispõe nos nºs 1 e 4 do artigo
76º da Lei do Tribunal Constitucional (adiante, LTC), compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso, cabendo reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho que indefira o requerimento de interposição do recurso.
A reclamação tem, assim, por objecto, reapreciar o despacho que não admitiu o recurso. Importa, por isso, analisar os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, quando interposto ao abrigo do preceituado na alínea b), do nº1, do artigo 70º da LTC.
De acordo com o estabelecido neste preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. É, assim, indispensável que a questão de constitucionalidade seja reportada a uma norma e tenha sido levantada por forma a que sobre ela possa recair uma decisão, sendo também necessário que a decisão tenha aplicado tal norma.
Acresce ainda que os recursos interpostos ao abrigo da alínea b) invocada só podem ser admitidos quando as decisões de que se recorre já não admitem recurso ordinário, ou porque a lei o não prevê ou porque se esgotaram todos os que estavam previstos. Isto é, a lei exige o esgotamento dos meios de impugnação da decisão que a lei prevê para se poder então interpor o recurso de constitucionalidade da última decisão legalmente possível.
5. - Voltando ao caso em apreço, é manifesto que o reclamante suscitou durante o processo a questão de inconstitucionalidade da norma que pretendia ver apreciada por este Tribunal através do recurso cuja decisão de inadmissão fundamenta a presente reclamação, pois a suscitou logo no recurso para o Conselho de Justiça da FPF.
Porém, tal como no acórdão reclamado se refere, o recorrente e ora reclamante não esgotou previamente todos os recursos legalmente previstos.
Com efeito, em matéria de «Justiça desportiva», o nº1 do artigo 25º da LBSD, estabelece a regra geral: as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo são impugnáveis, nos termos gerais de direito. A excepção vem consagrada logo no nº2 do preceito: não são impugnáveis nem susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas, isto é, as que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar.
No caso, a norma em relação à qual o reclamante suscitou uma questão de constitucionalidade é a norma do nº6 do artigo 129º do Regulamento Disciplinar da FPF, norma esta que faz depender a audiência de testemunhas arroladas pelo arguido de um processo disciplinar, em outro local que não seja a sede da FPF, do prévio pagamento pelo arguido das despesas ocasionadas com a deslocação do instrutor.
Ora, é manifesto que, respeitando embora a um processo disciplinar, esta norma não se reporta a qualquer questão «estritamente desportiva» pois nem visa sancionar qualquer violação de norma de natureza técnica nem tem carácter disciplinar, uma vez que não se assume como «sanção» para o arguido. Com ela apenas se pretende garantir que o arguido tenha maior facilidade em se defender pela audição das testemunhas na Associação distrital a que pertence, embora com a contrapartida de ter de suportar, se for ele a requerer tal diligência, os custos da deslocação do instrutor.
Assim, independentemente de se apurar qual a natureza da entidade que proferiu a decisão recorrida - questão que não se torna necessário analisar, neste momento - sendo certo que não está em causa neste recurso uma questão estritamente desportiva (no entendimento do Conselho de Justiça da FPF), pelo que, à face da Lei de Bases do Sistema Desportivo, da decisão proferida havia recurso, nos termos gerais de direito, não estando assim esgotados os meios de recurso previstos, pelo que, ao recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante, falta a verificação de um dos pressupostos legais da sua admissibilidade.
Tanto bastará para que se não possa tomar conhecimento do recurso interposto, o que significa que a presente reclamação tem de ser indeferida, mantendo-se a decisão reclamada.
6. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
8 UCs.
Lisboa, 1998.07.02 Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto (com declaração de voto que junto). Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto Tenho dúvidas quanto ao sentido da expressão 'questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar', constante do artigo 25º, n.º 2, da Lei de Bases do Sistema Desportivo. A meu ver, no presente caso os recursos teriam como fundamento a violação de normas de carácter disciplinar - embora de direito adjectivo. Todavia, porque não está em causa uma 'questão estritamente desportiva', como também exige a referida disposição, acompanhei a decisão de indeferimento da presente reclamação por falta de esgotamento dos recursos legalmente previstos. Paulo Mota Pinto