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Proc. n.º 224/01 Acórdão nº 98/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por apenso a uma acção executiva que lhe moveu J..., H... deduziu, no Tribunal Judicial de Chaves, oposição à execução por embargos, nos termos do disposto nos artigos 813º, alínea g), e 816º do Código de Processo Civil.
Alegou o executado e embargante que, no processo principal a que se encontrava apensa a execução, havia sido condenado a pagar ao exequente determinada quantia, sucedendo porém que tal dívida se extinguira por compensação. E sendo tal compensação um facto extintivo da obrigação exequenda, devia ser consequentemente declarada extinta a execução.
2. Por despacho de 27 de Abril de 1999 (fls. 14-15) foram os embargos rejeitados, pelos seguintes fundamentos:
“Nos moldes do preceituado pelo artº 813º do CPC, é fundamento de oposição por intermédio de embargos (quando a execução se funde – como sucede nos autos em apreço – em sentença), qualquer facto extintivo [...] da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo declarativo correspondente e seja susceptível de prova documental. Portanto (e em tese geral) o fundamento invocado nos autos, poderia (apesar de em concreto não poder, como mais à frente melhor explicitaremos) justificar a interposição dos presentes embargos. Não obstante, a lei (civil e processual) é mais exigente, não se bastando com a singela verificação de tal requisito substantivo:
É que não é suficiente invocar (como o faz o embargante) para que se decida pela efectividade da compensação – como forma extintiva da obrigação – que a mesma tenha sido exercitada por intermédio de declaração daquele primeiro ao aqui embargado (artº 848º/1 do C.Civ), uma vez que é o próprio diploma civil que nos indica existirem dívidas que são insusceptíveis de compensação. Entre estas, constam os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos (artº
853º/1-a) do C.Civ.). Ora, o aqui embargante foi condenado a pagar a quantia acima aludida, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito de processo crime e pela prática por banda do mesmo, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos melhor identificados na mesma ([...] sendo certo que em tal sentença se refere de modo expresso e concreto, o dolo do agente). E desse modo, dúvidas não existem [...] que o crédito do exequente, aqui embargado, proveniente como é da prática de acto ilícito e doloso do executado, aqui embargante, é insusceptível de extinção por compensação. Assim sendo, facilmente se conclui pela manifesta improcedência dos embargos instaurados, atenta a impossibilidade de compensação (facto extintivo invocado nos autos) do crédito objecto da acção executiva (artº 817º/1, alínea c) do CPC).”
3. Não se conformando com o referido despacho, H... dele interpôs recurso de apelação (ou o que fosse julgado competente) para o Tribunal da Relação do Porto (fls. 17-18). O recurso, que era de agravo, foi admitido por despacho de fls. 19.
Nas suas alegações (fls. 22 e seguintes), H... concluiu do seguinte modo, para o que aqui releva:
“[…]
13 - […] a interpretação levada a cabo pelo Mmo. Juiz a quo do preceito em causa, ao invés de proteger, como pretende a lei, as pessoas que são credoras de quaisquer quantias, da possibilidade de o seu devedor vir invocar, para extinguir a sua dívida, um crédito resultante de facto ilícito doloso por si praticado, permitiria a qualquer credor que fosse, simultaneamente, devedor por ter praticado facto ilícito doloso, exigir todo o montante do seu crédito, depois se vendo se assumiria, como era seu dever, o débito que tinha.
14 - O instituto da compensação, para além de constituir uma causa de extinção das obrigações visa, igualmente, a satisfação dos créditos, sendo instrumental do direito de propriedade na sua configuração constitucional.
15 - A interpretação assumida pelo Mmº. Juiz a quo, não permitindo que a vítima do alegado acto ilícito doloso (Exequente/Agravado) veja extinta a dívida que tem para o Agravante, nomeadamente pelo instituto da compensação, não lhe permite garantir o seu direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, na medida em que lhe aponta como obrigação paga a totalidade do que deve, não curando de saber se recebe aquilo a que, alegadamente, tem direito.
[…]
17 - Aliás, não se compreende que não seja possível a compensação quando a lei permitiria ao Executado/Agravante, para satisfação do crédito do Exequente, a nomeação do seu próprio crédito sobre este à penhora, observados que fossem os restantes requisitos processuais […].
18 - Ou seja, não se compreende como o crédito do Agravante pode operar a extinção do crédito do Agravado por nomeação à penhora e posterior venda judicial em execução, e não o possa fazer por compensação.
19 - A interpretação dada, do preceito em causa, pelo Mmo. Juiz a quo, tornaria a aludida norma inconstitucional por violação, nomeadamente, dos artigos 13º,
18º, 62º e 204º da Constituição da República Portuguesa.
[…].” O recorrido J... produziu também alegações (fls. 33 e seguintes), requerendo que fosse negado provimento ao recurso.
Por despacho de fls. 38, foi mantido o despacho recorrido.
4. Por acórdão de 15 de Maio de 2000 (fls. 263 e seguintes), o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido, com a seguinte argumentação:
“[…] Os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos não podem ser objecto de compensação. Obviamente, que a lei ao aludir a créditos, fá-lo na perspectiva do compensante já que, como é obvio, a compensação pressupõe, entre duas pessoas, a reciprocidade de créditos e débitos. A razão de ser da incompensabilidade de créditos, provenientes de facto ilícito doloso, tem na sua base uma razão de ordem moral. Entende-se que seria injusto que o compensante, autor de um facto ilícito cometido intencionalmente, pudesse colher vantagens disso, impondo ao seu credor o pagamento indirecto à custa de um acto que a lei reputa censurável.
[…] O embargante foi condenado a indemnizar o embargado, em 15.500 contos, pelo facto de ter emitido um cheque sem provisão a favor deste. Tal tipo de crime foi cometido com dolo consubstanciado no facto de o sacador do cheque saber que não dispunha no banco sacado de fundos que permitissem o pagamento. O facto de onde promana essa obrigação é, pois, um facto ilícito doloso. Mesmo dando como certo que o embargante disporia de um contra-crédito superior a este montante sobre o embargado, não lhe é lícito opor-lhe a compensação. Ao rejeitar os embargos por ser manifesta a improcedência da oposição do executado – art. 817º, nº 1, c) do Código de Processo Civil – o despacho recorrido decidiu correctamente. Entende o agravante que, a entender-se como entendeu o despacho recorrido, sairão feridos os princípios constitucionais da igualdade – art. 13º da CR; – os atinentes aos direitos liberdades e garantias – art. 18º; – da propriedade privada art. 62º; envolvendo a aplicação daquele normativo do Código Civil, infracção de princípios consignados na CR – art. 204º. Argumenta, essencialmente, que o instituto da compensação é instrumental do direito de propriedade, direito que será violado, já que o embargante seria obrigado a pagar ao seu credor a totalidade da dívida sem possibilidade de abater o contra-crédito que sobre ele detém. Não se vê onde o regime do art. 853º nº 1, a) do Código Civil afronte os princípios da igualdade, da propriedade privada e viole direitos fundamentais que a CR protege. A razão da «discriminação legal», impondo casos em que a compensação não é admitida, é fundada em circunstâncias que visam conceder – de modo materialmente fundado – protecção aos credores, ressalvando situações que redundariam em injustiça material, se os créditos provenientes de factos ilícitos, fossem tratados igualmente em relação a créditos que não teriam essa «mácula», fazendo assim com que o devedor satisfizesse indirectamente o seu débito e colhesse, indirectamente, vantagem de um facto ilícito doloso que cometeu. Inexiste qualquer inconstitucionalidade. O princípio da igualdade impõe o tratamento igual de situações iguais, e o tratamento diferenciado de situações diversas, que postulam outro tratamento.
[…].”
5. Hermínio Moreira Pinto requereu o esclarecimento do mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto (fls. 275 e seguintes).
Por acórdão de 18 de Setembro de 2000 (fls. 286-287), o Tribunal da Relação do Porto atendeu parcialmente a reclamação, somente no concernente a um invocado lapso de escrita. Lê-se no texto desse acórdão:
“[…] cremos que o Acórdão é claro, quando considera que para haver compensação têm de existir, entre duas pessoas, reciprocamente créditos e débitos. Não podem extinguir-se por compensação créditos provenientes de factos ilícitos dolosos – art. 853º, nº 1, a) do Código Civil. O agravante cometeu um facto ilícito doloso que determinou a sua condenação a pagar ao exequente a quantia de 15.500 contos, por emissão de cheque sem provisão. Na carta a que se alude no ponto 4), da matéria de facto, escrita pelo embargante-recorrente, ele, alegando que o exequente-embargado lhe deve
34.589.265$00 afirma vir, através da carta – «... declarar a compensação da quantia de 34.589.265$00, com aquela em que fui injustamente condenado no processo crime referido, neste momento de 22.778.630$00...». O executado-embargante pretende compensar com aquela quantia, emergente de facto ilícito doloso, a quantia que, alegadamente, deve ao embargado. O que se diz no Ac. é que o agravante não pode invocar, para efeitos de compensação, a quantia que foi condenado a pagar ao embargado, porque, na perspectiva do compensante, tal quantia provém de facto ilícito doloso. Como se diz, claramente, no Acórdão reclamado, citando os tratadistas Professores Almeida Costa e Antunes Varela é que a «ratio legis» do normativo em causa, é proibir que o autor de facto ilícito doloso aproveite o benefício da compensação. O Agravante pretende tirar proveito do instituto da compensação trazendo para o
«acerto de contas» uma quantia de que é devedor, proveniente de facto ilícito doloso, o que a lei não consente.”
6. Hermínio Moreira Pinto interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 853º do Código Civil, “dada a interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida”, por violação das normas constantes dos artigos 13º, 18º, 62º e 204º da Constituição
(fls. 302-303).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 324 e v.º.
Já no Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 328 e v.º, convidando o recorrente a explicitar qual a interpretação atribuída no acórdão recorrido à norma do artigo 853º, n.º 1, alínea a), do Código Civil que considera inconstitucional e que pretende que este Tribunal aprecie, qual a norma ou princípio constitucional que considera violado por tal norma, com essa interpretação, bem como qual a peça processual em que suscitou a inconstitucionalidade dessa interpretação normativa.
A fls. 329 e seguintes, veio o recorrente completar o requerimento de interposição do recurso. Em síntese, e no que para tal efeito releva, disse o recorrente o seguinte:
a) O acórdão recorrido é o da Relação do Porto, de fls. 263 a 270, esclarecido pelo acórdão de fls. 286; b) O recorrente levantou a questão da constitucionalidade na motivação do recurso “Alegações que apresenta H..., no Recurso de Agravo em que é Agravante”, enviado sob correio registado a 14.09.1999; c) A interpretação normativa cuja apreciação pelo Tribunal Constitucional o recorrente requer viola as normas dos artigos 13º, 18º, 27º, 62º e 204º da Constituição; d) A interpretação cuja apreciação se requer é a que entende ser inadmissível a compensação como forma extintiva da obrigação que impende sobre o recorrente (e que é uma obrigação decorrente da prática, por si, de um facto ilícito doloso), compensação essa realizada com um crédito legal e legítimo que o recorrente tem sobre o recorrido; e) Trata-se, em suma, da interpretação segundo a qual se não podem extinguir por compensação com um crédito lícito, os débitos provenientes de factos ilícitos dolosos.
7. O recorrente apresentou depois as alegações de fls. 334 e seguintes. Decorrido o prazo, o recorrido não alegou (fls. 352).
Por despacho de fls. 352 v.º, foi ordenada a notificação do recorrente para apresentar as conclusões das alegações que produzira junto deste Tribunal, sob pena de não se conhecer do recurso.
O recorrente apresentou as conclusões que seguem (fls. 354 a 360):
“1º O artº 853 n.º 1 alínea a) do C. Civil é inconstitucional na interpretação que lhe é dada quer pelo douto acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 15/05/2000 quer pelo despacho recorrido proferido, no mesmo sentido e em 1ª instância, pelo Tribunal de Chaves.
2º Interpretação que violou os artigos 13º, 18º, 27º, 62º e 204º da Constituição da República Portuguesa.
3º Por ter considerado ser inadmissível a compensação como forma extintiva da obrigação que impende sobre o recorrente (uma obrigação decorrente da prática de um facto ilícito doloso por si praticado), compensação essa realizada com um crédito legal e legítimo que o recorrente tem sobre o recorrido J....
4º A interpretação que o recorrente entende levar à inconstitucionalidade do artigo 853º, 1 a) do Código Civil, se assim interpretado, é a que defende que alguém titular de um crédito obtido licitamente não pode utilizar tal crédito para extinguir (total ou parcialmente) uma dívida que tem para com outrem, proveniente da prática de um facto ilícito doloso.
5º Tal interpretação não permitiria ao titular de um crédito lícito (ou de origem lícita) que fosse simultaneamente devedor de uma quantia proveniente da prática de um facto ilícito doloso garantir o seu direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, na medida em que lhe apontaria, como obrigação, pagar a totalidade do que deve, não curando de saber se recebe aquilo a que tem direito.
6º No caso concreto tal interpretação é ainda mais grave na medida em que, caso a compensação não fosse possível e tal interpretação fosse mantida, não poderia o recorrente (titular de um crédito lícito) utilizar tal crédito para extinguir uma dívida proveniente da prática de um facto ilícito doloso (que, além do mais o recorrente afirma não ter praticado), sendo a extinção de tal dívida essencial para assegurar a sua liberdade no âmbito do processo criminal de que o processo onde o despacho de rejeição liminar de embargos foi proferido é apenso.
7º No presente caso, tal interpretação levaria a que o recorrente, titular de um direito de crédito lícito, não pudesse utilizar tal crédito para pagar aquilo que o tribunal considerou que ele devia, deixando a liberdade do recorrente nas mãos do recorrido que, se pretender, não lhe paga o que lhe deve e assim o impede de cumprir aquilo que o tribunal, no âmbito do processo criminal (o processo principal 85/96 do 2º Juízo de Chaves), considerou como suas obrigações e condições de suspensão de execução da sua pena.
8º A posição ora defendida encontra também fundamento na análise ao elemento literal, ao elemento sistemático e ao denominado «pensamento legislativo» da norma em causa.
9º A douta decisão recorrida estabelece, não uma distinção entre «créditos provenientes de factos ilícitos dolosos» e «créditos não provenientes da prática de factos ilícitos dolosos», conforme impõe o artigo 853º, 1 a) do Código Civil, mas sim uma tripla distinção, que a torna violadora do princípio da igualdade
(artº 13º da C.R.P.) a) entre «titulares de um crédito em que o débito (que se pretende compensar) seja proveniente da prática de facto ilícito doloso» e «titulares de um crédito em que o débito (que se pretende compensar) não seja proveniente da prática de facto ilícito doloso»; b) entre «titulares de um débito em que o crédito (que se pretende compensar) seja proveniente da prática de facto ilícito doloso» e «titulares de um débito em que o crédito (que se pretende compensar) não seja proveniente da prática de facto ilícito doloso»; c) entre «compensante credor de indemnização pelos danos provenientes do facto ilícito doloso» e «compensante devedor de indemnização pelos danos provenientes do facto ilícito doloso».
10º Sustenta assim a interpretação sub judice uma distinção – não entre créditos
– mas entre «partes» donde a violação daquele preceito constitucional.
11º Mas também o artº 18º da C.R.P. é violado, pois que a referida interpretação implica uma restrição (recorde-se que muito para lá do que o próprio texto da lei o faz), do direito à igualdade e do direito à propriedade privada.
12º O que só seria justificável caso fosse necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
13º Ora, não existem direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que justifiquem que ao devedor de quantia proveniente da prática de facto ilícito doloso, que seja simultaneamente credor de quantia de origem lícita, seja imposto, como refere o douto acórdão recorrido, que «terá, nesses casos, de cumprir a obrigação de indemnização e de correr, quanto à cobrança do seu crédito, os riscos que suportam todos os demais credores».
14º O artigo 853º 1, a) do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, fere igualmente o disposto no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa.
15º Basta, na verdade, constatar, para se verificar da inconstitucionalidade invocada, estarmos em presença de um caso em que a liberdade do compensante, credor de obrigação proveniente de facto lícito mas devedor de obrigação proveniente de facto ilícito, está dependente da verificação do cumprimento por este da sua obrigação (como condição de suspensão de pena).
16º Ao não lhe ser permitido realizar a compensação, apenas porque (como o refere o douto acórdão recorrido) se entende que «terá, nesses casos, de cumprir a obrigação de indemnização e de correr, quanto à cobrança do seu crédito, os riscos que suportam todos os demais credores», e no caso de a obrigação que teria de cumprir ser de dimensão tão elevada que o mesmo não a consegue cumprir se não conseguir receber da outra parte aquilo a que tem direito, estaríamos perante um caso em que tal indivíduo veria a sua liberdade atingida sem que tal fosse justificado por qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido.
17º Mas também o artº 62º da C.R.P. é violado com a interpretação defendida.
18º Pois pretende retirar ao credor de obrigação proveniente de facto lícito que seja simultaneamente devedor de obrigação proveniente de facto ilícito uma garantia fundamental do seu crédito: a possibilidade de o compensar com o crédito da outra parte.
19º Em violação da Constituição da República Portuguesa, e de um dos direitos fundamentais dos cidadãos portugueses.
20º Há assim que aceitar a admissibilidade da compensação no caso dos autos, interpretando correctamente o artigo 853º 1 a) do Código Civil.
21º A previsão do artigo 853º, nº 1, do Código Civil que refere:
«1. Não podem extinguir-se por compensação: os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos». Não abrange o caso em apreço.
22º De facto, o crédito de Esc. 34.589.265$00 (trinta e quatro milhões, quinhentos e oitenta e nove mil, duzentos e sessenta e cinco escudos) de que o recorrente era titular, sobre o recorrido J..., até à data da compensação operada, não era proveniente de qualquer facto ilícito doloso praticado, nem por um nem por outro (cfr. o teor do documento junto ao requerimento mandado desentranhar pelo despacho do Tribunal de 1ª Instância de Chaves).
23º Não se encontrando abrangida pela pretendida exclusão da compensação.
24º A tanto nos leva a análise dos elementos literal, sistemático e teleológico de tal preceito (cfr. artº 9º C. Civil).
25º Concorda o recorrente com Antunes Varela [...] quando diz que «a razão de ser da al. a) do nº 1 obsta à compensação na hipótese de o crédito do compensante provir também de um facto ilícito doloso...» (o que não é o caso!).
26º Diferente posição levaria, aliás, a pressupor que o legislador não teria sabido exprimir adequadamente o seu pensamento (cfr. art. 9º nº 3 do C. Civil).
27º Acresce que, o artigo 853º, 1, além da alínea a), inclui outras duas alíneas, cuja análise vai ao encontro do entendimento do recorrente.
28º Finalmente, analisando teleologicamente o referido preceito e as consequências da posição inversa, mais clara se torna a razão do recorrente.
29º A exclusão da compensação no caso em apreço, teria como consequência imediata a possibilidade de o recorrente exigir do recorrido J... a totalidade daquele montante, não obstante saber que ele próprio (recorrente), era também devedor do recorrido (embora ponha em causa a justeza da dívida, e contra ela não abdicando de se opor por todos os meios legais ao seu alcance).
30º Cumpre salientar, a este propósito, que o instituto da compensação, para além de constituir uma causa de extinção das obrigações visa, igualmente, a satisfação dos créditos, sendo instrumental do direito de propriedade na sua configuração constitucional.
31º Assim, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente.
32º Julgando-se a norma do artigo 853º, 1, a) do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, inconstitucional,
33º Por violação, nomeadamente, do disposto nos artigos 13º, 18º, 27º e 62º da Constituição da República Portuguesa, assim se fazendo justiça.”
O recorrido foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 690º, n.º 5, do Código de Processo Civil, mas não respondeu (fls. 364).
Cumpre apreciar.
II
8. Determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 853º do Código Civil que se não podem extinguir por compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos.
O recorrente pretende a apreciação da conformidade constitucional desta norma, numa dada interpretação, que é, em síntese, a seguinte: a obrigação decorrente da prática de um facto ilícito doloso não pode extinguir-se por compensação realizada com um crédito lícito.
Os argumentos utilizados pelo recorrente para sustentar a tese da inconstitucionalidade da referida interpretação normativa são, em síntese, os seguintes:
a) Tal interpretação normativa não permite ao titular de um crédito lícito ou de origem lícita garantir o seu direito de propriedade, já que lhe impõe o pagamento da totalidade da sua dívida proveniente da prática de facto ilícito doloso, abstraindo da circunstância de receber ou não aquilo a que tem direito
(cfr. conclusão 5ª, de fls. 355, conclusões 17ª a 19ª, de fls. 358, e conclusão
30ª, de fls. 359 e 360); b) A extinção da dívida do recorrente é essencial para assegurar a sua liberdade no âmbito do processo criminal de que é apenso o processo em que foi proferido o despacho de rejeição liminar de embargos (cfr. conclusões 6ª e 7ª, de fls. 355, e 14ª a 16ª, de fls. 357 e 358); c) Tal interpretação normativa viola o princípio da igualdade, porque estabelece uma distinção entre titulares de créditos, consoante a proveniência do débito que se pretende compensar, bem como entre titulares de débitos, consoante a proveniência do crédito que se pretende compensar e, ainda, entre compensantes, consoante sejam credores ou devedores de indemnização por facto ilícito doloso (cfr. conclusões 9ª e 10ª, de fls. 356); d) Tal interpretação normativa viola também o artigo 18º da Constituição, dado que implica uma restrição, muito para lá do que o texto legal o faz e injustificada, do direito à igualdade e do direito à propriedade privada (cfr. conclusões 11ª a 13ª, de fls. 356 e 357); e) A norma do artigo 853º, n.º 1, alínea a), do Código Civil não abrange o caso dos autos, pois que o crédito do recorrente sobre o recorrido não era proveniente de qualquer facto ilícito doloso (cfr. conclusões 8ª, de fls. 356, e
20ª a 28ª, de fls. 358 a 359); f) A exclusão da compensação no caso em apreço teria como consequência imediata a possibilidade de o recorrente exigir do recorrido a totalidade do seu crédito, não obstante saber que era também devedor do recorrido (cfr. conclusão
29ª, de fls. 359).
9. Emergindo o presente recurso de uns autos de embargos de executado, é evidente que nele não podem ser apreciadas questões que não podiam ter estado – e, consequentemente, não estiveram – em discussão nesses autos. De todo o modo, a apreciação de tais questões pelo Tribunal Constitucional significaria a consideração de uma interpretação normativa não acolhida na decisão recorrida, que, por um lado, em nada influiria no sentido da decisão recorrida e que, ao mesmo tempo, largamente extravasaria a competência decisória do Tribunal Constitucional.
Assim, a questão de saber se o recorrente necessitava de utilizar o crédito que afirma deter sobre o recorrido para extinguir a dívida que tem (embora conteste a respectiva justeza) para com este, bem como a questão de saber se a não consideração, pelo tribunal recorrido, de tal crédito do recorrente, impediu o recorrente de cumprir as obrigações que lhe foram impostas como condição de suspensão de execução de pena (supra, 8., b)), foram obviamente questões não consideradas pelo tribunal recorrido, que se limitou a aferir se a compensação podia, no caso dos autos, funcionar como causa extintiva da obrigação que sobre o recorrente impendia, sem curar de saber se o recorrente podia socorrer-se de outro meio de extinção da sua obrigação ou se da compensação dependia a liberdade do recorrente.
Não tendo o tribunal recorrido apreciado tais questões, não pode também o Tribunal Constitucional apreciá-las, porque o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – é um recurso de uma decisão que tenha aplicado uma norma (ou uma norma, em certa interpretação) e, como se disse, a consideração de tais questões pelo Tribunal Constitucional significaria a apreciação de uma interpretação normativa não acolhida pelo tribunal a quo. Para além disso, não tem o Tribunal Constitucional naturalmente competência para averiguar matéria como aquela que o recorrente aduz: o facto de a extinção da dívida do recorrente para com o recorrido depender da possibilidade de aquele utilizar, através do mecanismo da compensação, o crédito que tem sobre este; o facto de a sorte do recorrente no processo criminal depender do pagamento a que proceda o recorrido; o próprio facto da existência do crédito do recorrente sobre o recorrido.
Por todas estas razões, não tem relevância, para a apreciação da questão de fundo, o argumento segundo o qual a extinção da dívida do recorrente seria essencial para assegurar a sua liberdade no âmbito do processo criminal de que é apenso o processo em que foi proferido o despacho de rejeição liminar de embargos (supra, 8., b)).
Também se mostra irrelevante o argumento segundo o qual a exclusão da compensação no caso em apreço teria como consequência imediata a possibilidade de o recorrente exigir do recorrido a totalidade do seu crédito, não obstante saber que era também devedor do recorrido (supra, 8., f)). Na verdade, tal possibilidade não foi nem nunca poderia ter sido considerada pelo tribunal recorrido, pelo singelo motivo de que, nos autos de embargos de executado de que emergiu o presente recurso, não foi o recorrido quem pretendeu valer-se da compensação. Como tal, não pode o Tribunal Constitucional conhecer da subjacente questão. Para além disso, se tal possibilidade tivesse sido vedada ao recorrido, seria a ele que incumbiria suscitar a respectiva questão de constitucionalidade, por ser a única e eventual parte prejudicada: ao recorrente faltaria sempre a legitimidade para o efeito.
Finalmente, acrescente-se que a interpretação da norma do artigo 853º, n.º 1, alínea a), do Código Civil que o recorrente entende ser a única defensável – a de que a norma do artigo 853º, n.º 1, alínea a), do Código Civil não abrange o caso dos autos, pois que o crédito do recorrente sobre o recorrido não era proveniente de qualquer facto ilícito doloso (supra, 8., e)) – não pode, como é evidente, ser controlada no seu mérito hermenêutico pelo Tribunal Constitucional: a este Tribunal compete apenas, nos recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, verificar a conformidade constitucional de interpretações normativas adoptadas em decisões judiciais, sem proceder à interpretação autêntica de leis. O argumento segundo o qual na decisão recorrida se não teria perfilhado a melhor interpretação da mencionada norma do Código Civil não constitui, pois, um argumento no sentido da desconformidade constitucional dessa norma.
10. Vejamos agora o argumento segundo o qual a interpretação normativa em causa não permitiria ao titular de um crédito lícito ou de origem lícita garantir o seu direito de propriedade, já que lhe imporia o pagamento da totalidade da sua dívida proveniente da prática de facto ilícito doloso, abstraindo da circunstância de receber ou não aquilo a que tem direito (supra,
8., a) e d)).
Relativamente a este argumento, dir-se-á que a circunstância de a compensação não poder operar, num processo pendente, como forma de extinção da obrigação do réu – no caso dos autos, do executado – não inibe o réu (ou o executado) de fazer valer o seu próprio crédito num outro processo, e até mesmo antes de o autor ou o exequente fazer valer o seu, na acção emergente da prática do facto ilícito. Aliás, situação análoga se verifica quando, numa acção declarativa, o réu se propõe obter a compensação mas não estão reunidos os requisitos de admissibilidade da reconvenção previstos no n.º 3 do artigo 274º, ou no n.º 1 do artigo 98º, ambos do Código de Processo Civil: a extinção do crédito do réu não decorre obviamente da inadmissibilidade da reconvenção no processo pendente, pelo que o réu sempre poderá exigi-lo num outro processo.
Não se vislumbra, assim, qualquer violação do direito de propriedade na circunstância de a compensação não poder funcionar como causa de extinção de uma obrigação proveniente da prática de facto ilícito doloso, como é aquela que sobre o recorrente impende. Tal hipótese só poderia ser ponderada se a exclusão da possibilidade de compensação significasse, não apenas o genérico risco de não satisfação integral do crédito daquele que pretende valer-se da compensação (e que é um risco de qualquer credor), mas a extinção do próprio crédito lícito de que o recorrente se arroga, extinção essa que em momento algum foi afirmada pelo tribunal recorrido.
11. Alega ainda o recorrente que a interpretação normativa perfilhada na decisão recorrida viola o princípio da igualdade, porque estabelece uma distinção entre titulares de créditos, consoante a proveniência do débito que se pretende compensar, bem como entre titulares de débitos, consoante a proveniência do crédito que se pretende compensar e, ainda, entre compensantes, consoante sejam credores ou devedores de indemnização por facto ilícito doloso
(supra, 8., c) e d)). Segundo o recorrente, a violação do princípio da igualdade materializar-se-ia na circunstância de a interpretação normativa em crise proceder a uma distinção, não entre “créditos”, mas entre “partes”.
Dado que este argumento, assim exposto, se revela incompreensível, cumpre analisar o alegado a fls. 337 a 340, onde o recorrente expõe o seu raciocínio.
E esse raciocínio assenta na premissa de que a norma do artigo 853º, n.º 1, alínea a), do Código Civil apenas visa impedir que alguém utilize um crédito proveniente da prática de facto ilícito doloso por si praticado, para fazer extinguir um débito que tinha para com a outra parte, e que é proveniente de facto lícito. Assim, por exemplo, tal norma visaria impedir que o mutuante extinguisse qualquer obrigação que tivesse para com o mutuário, por compensação com as quantias que, nos termos de um contrato de mútuo usurário, lhe cabiam, a fim de não impor ao mutuário o ónus de recorrer aos meios judiciais para recuperar os montantes de que, de forma usurária, se viu privado. Desse modo, tal norma protegeria os credores da possibilidade de o seu devedor vir invocar, para extinguir a dívida, um crédito resultante de facto ilícito doloso por si praticado.
Partindo de tal premissa, conclui o recorrente que a decisão recorrida, ao não sufragar a interpretação normativa que verdadeiramente corresponderia ao espírito do legislador, teria perfilhado uma interpretação normativa permissiva da apontada desigualdade de tratamento entre as partes.
Como já acima se disse, não compete ao Tribunal Constitucional proceder a uma interpretação autêntica da indicada norma do Código Civil. Sempre se dirá, todavia, que se não alcança a razão pela qual a distinção entre créditos não consubstancia, na perspectiva do recorrente, uma violação do princípio da igualdade, mas já a consubstanciaria a distinção entre titulares de créditos, ou entre titulares de débitos, ou entre compensantes, sendo certo que esta última distinção assenta também – e é o recorrente a dizê-lo – na diversa proveniência do débito (ou do crédito): o mesmo é dizer, assenta também numa distinção entre créditos e não numa distinção entre pessoas. Do mesmo modo se não alcança o motivo pelo qual a protecção do mutuário, vítima de usura, em relação ao mutuante – no exemplo dado pelo recorrente –, não viola o princípio da igualdade, mas já o violaria a protecção de qualquer outro devedor em relação ao seu credor, quando aquele tenha sido vítima de facto ilícito doloso praticado por este: do princípio da igualdade não se extrai certamente tal tratamento privilegiado da vítima de usura em relação, nomeadamente, à vítima de um crime de emissão de um cheque sem cobertura.
Portanto, e em suma, não tem qualquer razão o recorrente quando utiliza a mencionada argumentação para sustentar a violação do princípio da igualdade.
Como assinalava Vaz Serra (“Compensação”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 31, Julho, 1952, págs. 13 e seguintes): “A compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor. E funda-se ainda em se julgar equitativo que se não obrigue a cumprir aquele que é, ao mesmo tempo, credor do seu credor, visto que o seu crédito ficaria sujeito ao risco de não ser integralmente satisfeito, se entretanto se desse a insolvência da outra parte” (págs. 13-15). E continuava o mesmo autor: “[...] afigura-se razoável que se impeça o devedor de uma dívida resultante de esbulho ou subtracção ilegal de se valer da compensação para evitar o pagamento dessa dívida. O autor do esbulho ilegal não merece a protecção que a compensação lhe daria, mesmo que à obrigação de restituir se tenha substituído a de indemnizar. [...] Parece mesmo que deveria ir-se mais longe e excluir a compensação contra quaisquer créditos derivados de factos ilícitos dolosos. Na verdade, não parece haver motivo para limitar a exclusão às hipóteses de subtracção ou retenção ilegítimas e dolosas, pois, se o crédito resulta de outro facto ilícito doloso, verifica-se a mesma razão para impedir a compensação contra esse crédito.” (págs. 86-88).
E, como se afirma no acórdão recorrido (fls. 268), “[...] seria injusto que o compensante, autor de um facto ilícito cometido intencionalmente, pudesse colher vantagem disso, impondo ao seu credor o pagamento indirecto à custa de um acto que a lei reputa censurável”. Tal injustiça justifica a solução legal, que retira ao devedor o benefício da compensação em atenção à origem ilícita do crédito que detém contra o seu credor e não em atenção a qualquer qualidade pessoal, não podendo portanto considerar-se desrazoável ou arbitrária, à luz do disposto nos artigos 13º e 18º da Constituição.
12. Finalmente, assinale-se que improcede totalmente a referência, feita pelo recorrente, à violação do artigo 204º da Constituição pela interpretação normativa em crise. Na verdade, este preceito constitucional não contém um critério aferidor da conformidade constitucional de normas ou de interpretações normativas, mas um mandamento dirigido aos juízes aquando do proferimento de decisões, pelo que não faz sentido afirmar que uma determinada norma legal contraria tal preceito.
13. A solução a que aqui se chegou corresponde à decisão tomada pelo Tribunal Constitucional no processo nº 142/01 (acórdão nº 535/2001, publicado no Diário da República, II, nº 47, de 25 de Fevereiro de 2002, p. 3639 s), que concluiu igualmente no sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 853º, nº 1, alínea a), do Código Civil. III
14. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 853º do Código Civil, interpretada no sentido de que a obrigação decorrente da prática de um facto ilícito doloso não pode extinguir-se por compensação realizada com um crédito lícito;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida quanto à questão de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa