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Proc. 387/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - J... e JG..., identificados nos autos, foram condenados, em processo comum que correu termos na 8ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, por acórdão de 28 de Maio de 1996, como autores materiais, nos seguintes termos:
a) o primeiro, pelo crime de prisão ilegal, previsto e punido pelo artigo 417º, nº 1, do Código Penal (texto de 1982), na pena de 2
(dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
b) o segundo, na pena de 2(dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo referido crime, e na de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de ofensas corporais previsto e punido pelo artigo 142º, nº 1, do mesmo texto, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos de prisão.
2. - Inconformados, recorreram ambos para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 20 de Novembro de 1997, negou provimento aos recursos.
Na respectiva motivação, o arguido J... defendeu o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426º do Código de Processo Penal – CPP), por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
[alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP), ou, se assim não se entender, a redução da medida da pena em, pelo menos, um ano e a suspensão da execução da mesma, por apelo ao disposto nos artigos 48º e 72º do Código Penal (de 1982); o arguido JG..., por seu turno, deduziu a nulidade do acórdão - na medida em que o grau de alcoolémia que na altura apresentava e o tempo de doença sofrido pelo ofendido não foram objecto de prova pericial - pugnando igualmente pela insuficiência da matéria de facto provada e pela contradição insanável da fundamentação ou do erro notório na apreciação da prova, advogando a repetição do julgamento ou, ao menos, a redução da medida concreta das penas, suspendendo-se a sua execução.
O Supremo, no entanto, e na parte que ora interessa, afirmou, ao julgar improcedente o recurso:
'[...] o recorrente JG... começa por defender que se verifica a nulidade da decisão (na medida em que foi dada como provada uma determinada taxa de alcoolémia do recorrente com base nas declarações dos arguidos e no depoimento das testemunhas, quando essa matéria só poderia ser dada como verdadeira por prova pericial ou por testemunho médico).
É manifesta a falta de razão do recorrente quanto a este ponto, uma vez que a prova do estado de alcoolémia das pessoas é feita com recurso a meios técnicos
(análise do artigo expirado, análise do sangue, etc.), e, quando porventura, não conste de um documento específico que indique a hora, o número do aparelho utilizado, os resultados, etc., também com recurso a prova testemunhal ou declarativa, a produzir na audiência, tanto mais que, se porventura o teste da alcoolémia não for feito logo dentro de poucas horas após os factos, a prova da existência de um estado de embriaguês pode vir a ser feita posteriormente, embora sem possibilidade de determinação do respectivo grau. Ora, o recorrente, como resulta da decisão (e, inclusivamente, do processo disciplinar apenso), foi submetido ao exame do ar expirado na própria esquadra a que pertencia, e o respectivo aparelho acusou uma taxa de alcoolémia de 6,50g/l
(6,90 no dizer do próprio recorrente...), e o Tribunal ateve-se certamente ao resultado desse exame que lhe terá sido referido pelas pessoas em cujos depoimentos e declarações baseou a sua convicção, conforme indicou na fundamentação do decidido. Não se pode, assim, falar em nulidade da decisão, uma vez que a existência de um exame desse tipo e dos seus resultados ficou demonstrada pela participação oficial do ocorrido, feita pela autoridade competente, e foi posteriormente comprovada no julgamento pelos meios orais adequados.'
3. - Ambos os arguidos pediram o esclarecimento do acórdão, mediante a explicitação dos fundamentos de direito na parte respeitante aos meios de determinação da taxa de alcoolémia de cada um, uma vez que - defendem - os valores obtidos só poderiam ser alcançados mediante exame pericial e não por qualquer outro meio, pelo que terá sido feita uma interpretação do artigo 155º do CPP que não está de harmonia com o nº 1 do artigo 32º da Constituição da República (CR).
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 26 de Fevereiro de 1998, decidiu, no entanto, nada haver a esclarecer (mormente face à passagem acima transcrita do acórdão aclarando), indeferindo os pedidos formulados.
4. - Reagiram os arguidos interpondo recurso do acórdão de 26 de Fevereiro de 1998 com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Pretendem ver apreciada a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 151º do Código de Processo Penal, na interpretação adoptada, que permite que a prova de alcoolémia seja feita por testemunho não qualificado, não obstante a exigência de prova pericial prevista nessa norma, assim infringindo as garantias de defesa previstas no nº 1 do artigo 32º da CR.
Admitido recurso, nas alegações oportunamente apresentadas os arguidos concluiram do seguinte modo:
'1º - A prova de alcoolémia no sangue dos arguidos foi feita na audiência de discussão e julgamento pelo tribunal colectivo pelo recurso a prova testemunhal.
2º - Essa prova implica uma apreciação técnica ou científica de factos.
3º - Trata-se duma prova pericial à luz do artº 151º do CPP.
4º - Essa prova tem de ser expressa através de relatório pericial conforme dispõe o artº 157º do CPP.
5º - O tribunal de 1ª instância fez errada interpretação (implícita) do artº
151º citado.
6º - O STJ, no acórdão recorrido, sufragou essa orientação.
7º - Tal interpretação configura um juízo de inconstitucionalidade. Na verdade,
8º - Tal interpretação é contrária à garantia de defesa inscrita no artº 32º, nº
1 da CRP.
9º - Essa garantia é reforçada com a exigência da licitude das provas postulada no artº 32º, nº 8 da CRP.
10º - A inconstitucionalidade dessa interpretação tem como consequência a revogação do acórdão recorrido do STJ,
11º - Com ma consequente anulação do acórdão da 1ª instância,
12º - E subsequente repetição da audiência de discussão e julgamento,
13º - Com a apresentação, nessa audiência, do relatório pericial da alcoolémia no sangue dos arguidos.
14º - Termos em que deve ser revogado o acórdão recorrido.'
Contra-alegou o magistrado do Ministério Público neste Tribunal, o que fez formulando as seguintes conclusões:
'1º - Os arguidos não suscitaram durante o processo, isto é, antes da prolação da decisão recorrida, podendo perfeitamente fazê-lo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que possa servir de suporte ao recurso de fiscalização concreta, interposto nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
2º - Termos em que não deverá dele conhecer-se, por falta dos respectivos pressupostos de admissibilidade.'
Ouvidos sobre a deduzida questão prévia, vieram os recorrentes responder, manifestando-se no sentido da sua improcedência: por um lado, defendendo a tempestividade da suscitação que consideram feita durante o processo, na medida em que têm como incontestável que a noção de decisão final se prende com a de trânsito em julgado, prevista no artigo 677º do Código de Processo Civil; por outro lado, alegando terem sido confrontados com uma interpretação normativa inesperada por parte do Supremo, que não seria de admitir, dado consubstanciar conflito directo com os princípios que presidem às garantias de defesa constitucionalmente previstas mas que logo equacionaram nos pedidos de aclaração feitos, se bem que considerem ser questão já subjacente no recurso interposto da decisão da 1ª instância.
Dispensados os vistos dada a simplicidade da questão, cumpre decidir.
II
1. - O objecto do recurso é constituído pela interpretação que os recorrentes alegam ter sido dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 151º do Código de Processo Penal.
Dispõe-se neste preceito:
'A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos e artísticos.'
Como já se registou, pretende-se que o Supremo terá interpretado esta norma num sentido colidente com as garantias constitucionais de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental, na medida em que se contentou com prova feita por testemunho não qualificado, não obstante a exigência de prova pericial prevista na norma em causa.
2. - Coloca-se, no entanto, preliminarmente, a questão da possibilidade de conhecer do objecto do recurso, por inverificação de todos os seus pressupostos de admissibilidade.
Com efeito, a questão de constitucionalidade foi suscitada pela primeira vez no pedido de aclaração do acórdão do Supremo, se bem que lhes sobejasse plena oportunidade para o terem feito no recurso da decisão da 1ª instância, limitando-se então, a propósito da questão da prova do estado de embriaguês dos arguidos - e só um deles - a requerer a nulidade da decisão inicial.
Ora, observa a este respeito o Ministério Público, para além da questão ser 'artificiosamente reportada a uma implícita aplicação do artigo 151º do CPP', carece manifestamente de sentido, 'por ser evidente que não há nenhuma proibição de prova que impeça o apuramento do estado de manifesta embriaguês de um arguido através do seu comportamento, com base na prova testemunhal e por declarações e nas regras da experiência', sendo manifesto que o Supremo se limitou a fazer aplicação e interpretação normativas estritamente coincidentes com as que já constavam do acórdão condenatório proferido na 8ª Vara Criminal, e inquestionável que a questão podia ter sido levantada no momento oportuno.
Constitui jurisprudência reiterada, impressiva e uniforme do Tribunal Constitucional que os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da sua Lei Orgânica são admissíveis se congregarem necessariamente alguns pressupostos, um dos quais consiste na suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo, entendendo-se por esta locução que tal pressuposto seja tomado não em sentido puramente formal, que permita a suscitação até à extinção da instância, mas sim em sentido funcional, em que a arguição de inconstitucionalidade deve ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda dela possa conhecer. Ou seja, deve a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal a quo sobre a mencionada questão.
E porque, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da sentença e visto que a eventual aplicação de norma constitucional não integra erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, entende-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade, não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade.
Só assim não acontecerá em casos muito particulares, em que o recorrente não usufruíu de oportunidade processual para a suscitação atempada da questão ou quando a aplicação normativa ou a interpretação concedida sejam de tal modo anómalas ou imprevisíveis que se entenda não ser razoável exigir do recorrente o ónus de considerar antecipadamente semelhante hipótese.
No caso sub judicio mostra-se evidente que os recorrentes podiam (e deviam) ter equacionado a questão de inconstitucionalidade nas respectivas motivações de recurso para o Supremo - ou seja, durante o processo - uma vez que nada impediu de assim o terem feito, tendo optado por centrar a sua argumentação na lógica do reenvio - para realização de novo julgamento.
Assim sendo, a suscitação da questão no incidente de aclaração é obviamente intempestiva, até pela simples razão de não se detectar uma decisão 'surpresa', reiterando o Supremo o entendimento que a 1ª instância já concedera (de resto, na linha jurisprudencial desse Alto Tribunal).
Finalmente, e para responder ao avançado argumento da suscitação implícita, que a motivação de recurso do arguido suportaria subjacentemente, dir-se-á que não só da leitura dessa peça processual não é lícito retirar tal conclusão como, em todo o caso, também a jurisprudência do Tribunal tem unanime e firmemente entendido que as questões de constitucionalidade, além de suscitadas nos parâmetros temporais explicitados, devem ser equacionadas adequadamente, isto é, em termos claros, directos e operativos, de modo a não restarem dúvidas ao tribunal que vai proferir a decisão que deve tomar conhecimento dessas questões. O que, manifestamente, não
é o caso dos autos.
Em face do exposto, e uma vez que, nos termos do nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82, o despacho que admitiu inicialmente o recurso não vincula o Tribunal Constitucional, chega-se à conclusão de que o recurso não pode ser recebido pela não verificação de um dos seus pressupostos.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, por não se verificarem todos os respectivos pressupostos processuais.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 6____ unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida