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Processo nº 766/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.1.- A..., identificado nos autos, foi condenado pela autoria de um crime continuado de peculato, previsto e punido pelo artigo 193º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar (CJM), em concurso real com um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 186º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma.
Cumprido, na oportunidade, o disposto no artigo 380º deste Código, veio o arguido suscitar não só o problema da incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Territorial Militar de Lisboa, requerendo a remessa dos autos para o Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, como defender-se por escrito, juntando, a este título, cópia da contestação apresentada no processo pendente do Tribunal de Contas, cujo conteúdo requereu fosse apreciado para sua defesa, simultaneamente formulando acusações a algumas testemunhas arroladas no libelo.
O Juiz Auditor, ao abrigo do nº 1 do artigo 385º do CJM, não só indeferiu a admissão do requerimento destinado a resolver o conflito de jurisdição suscitado, como ordenou o desentranhamento da cópia da contestação aludida e a eliminação da parte da contestação em que se faziam acusações contra superiores, nos termos da segunda parte da alínea b) do nº 1 do artigo 380º do mesmo Código.
Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal Militar, formulando as seguintes conclusões:
'1.- A não admissão do recurso que questiona a incompetência do Tribunal Militar em razão da matéria prejudica gravemente os direitos de defesa do arguido, maxime, a medida concreta da pena eventualmente aplicável ao recorrente tendo em conta a inconstitucionalidade do art. 193º do Código de Justiça Militar e/ou a diferença abismal entre as penas penais civis e penais militares.
2.- O desentranhamento da resposta ao Tribunal de Contas fragiliza a defesa do ora recorrente já que o relatório dimanado do mesmo Tribunal e junto aos autos constitui instrumento acusatório, violando-se flagrantemente o princípio da igualdade de armas na lide - art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
3.- O desentranhamento da parte da contestação que imputa às testemunhas arroladas pela acusação desvirtua o sentido e o alcance das alegações que pretendem sustentar que o recorrente actuou em circunstâncias que diminuem por forma acentuada a ilicitude do facto e a culpa do ora recorrente, o que viola o art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.'
1.2.- O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 23 de Outubro de 1997, negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Ainda inconformado, pretendeu o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional, tendo sido notificado nos termos do artigo nº 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para indicar a norma ou normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade pretende ver apreciadas e, bem assim, a peça processual em que a questão foi suscitada.
Respondendo ao convite feito, veio esclarecer:
a) que pretende ver apreciada a norma do artigo
380º, nº 1, alínea b) - II parte, do CJM, fundamentando-se na
desconformidade dessa norma com as garantias de defesa em processo criminal a que aludem os artigos 13º e 32º, nº 1, da Constituição da República (CR);
b) que pretende ver apreciada a legalidade da deliberação do Supremo no respeitante ao desentranhamento dos autos da resposta do Tribunal de Contas sem a desapensação dos mesmos autos do Relatório emanado deste Tribunal, fundamentando-se na desconformidade do deliberado com o princípio do contraditório previsto no artigo 32º, nº 5, da CR;
c) 'desconformidades' já invocadas nas alegações de recurso para o Supremo, 'sendo certo que no acto da sua prisão preventiva denunciara a quem de direito as co-autorias e cumplicidades dos ilícitos por que vem acusado'.
Não obstante o esclarecimento prestado, entendeu o Juiz Auditor não estarem satisfeitos os requisitos previstos no aludido artigo 75º-A: no seu despacho de 10 de Novembro de 1997 diz que 'o recorrente não arguiu de inconstitucional o artigo 380º, nº 1, alínea b), do CJM e limita-se a invocar a ilegalidade da decisão deste Supremo Tribunal relativamente ao desentranhamento da resposta do Tribunal de Contas', assim não admitindo o recurso, nos termos do nº 2 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
2.1.- É deste despacho que o interessado reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do nº 4 deste artigo 76º.
O Supremo Tribunal Militar, no entanto, por acórdão de
27 de Novembro seguinte, manteve o despacho recorrido.
Escreveu-se no aresto, a propósito:
'É óbvio que não assiste qualquer razão ao reclamante.
Escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Fundamentos da Constituição, 1991, pág. 258): 'Pode-se atacar uma decisão judicial - recorrendo dela para o TC - se ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode impugnar junto do TC uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer motivo a Constituição'.
Ora, o certo é que, relativamente à questão do desentranhamento dos autos da resposta apresentada no Tribunal de Contas, o ora reclamante, nas alegações de recurso para este Tribunal, não arguiu a inconstitucionalidade de qualquer norma,
limitando-se a alegar que aquele desentranhamento violava 'flagrantemente o princípio da igualdade de armas na lide - art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa e, pelo que diz respeito à rejeição da parte da contestação que contem acusações contra superiores hierárquicos do contestante arrolado como testemunha no libelo, é o próprio ora reclamante que invoca o disposto no art.
380º alínea b) do CJM - ver art. 20 da contestação - para justificar as imputações que faz, sendo certo que, nem aí nem posteriormente nas alegações de recurso, suscita a questão da inconstitucionalidade de tal norma o que equivale a dizer que a inconstitucionalidade da norma do mencionado art. 380º nº 1 alínea b) do CJM que o reclamante pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional não foi suscitada durante o processo, isto é, anteriormente à decisão ora impugnada.
Assim sendo, forçoso é concluir que, em qualquer dos casos, se não mostram verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante o qual, por isso, não podia ser admitido.
Pelo exposto, mantem-se o despacho reclamado.'
2.2.- Neste Tribunal Constitucional, ouvido nos termos do nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da 'manifesta improcedência da presente reclamação, já que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que possa constituir objecto idóneo do recurso que interpôs', limitando-se a imputar directamente a certos actos processuais judicialmente ordenados a pretensa violação de certas normas ou princípios constitucionais, sem identificar ou especificar minimamente qual a norma ou interpretação normativa que pretendia questionar 'sub specie constitutionis'.
Por outro lado, acrescenta-se, o despacho impugnado, que ordenou os desentranhamentos aludidos, identificou e fundou-se explicitamente na norma do artigo 380º, nº 1, alínea b), 2ª parte, do CJM pelo que a sua invocação e aplicação pelo acórdão do STM não pode seguramente qualificar-se como 'decisão surpresa', susceptível de legitimar a anómala e excepcional questão de inconstitucionalidade.
Correram-se os demais vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
3.1.- Se bem que notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82 (considerando-se sempre o texto anterior à Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), nunca o recorrente indicou a alínea do nº 1 do artigo 70º desse diploma, ao abrigo da qual pretende recorrer.
Decorre implicitamente da sua actuação, no entanto, e do modo como se exprimiu, que o faz ao abrigo da alínea b) - recurso da decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Nesta perspectiva, se considerará o requerimento de interposição do recurso, supondo-se verificados os requisitos exigíveis para esse efeito.
Ora, constitui jurisprudência uniforme, reiteradamente expressa, deste Tribunal, ser indispensável a congregação de vários pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso de constitucionalidade.
Assim, e sumariamente, é necessário:
a) que a inconstitucionalidade da norma haja sido previamente suscitada pelo recorrente;
b) que a mesma norma tenha sido objecto de aplicação pela decisão recorrida, integrada como suporte da ratio decidendi;
c) que da decisão já não seja admissível recurso ordinário.
Por sua vez, a natureza normativa de controlo de constitucionalidade implica, desde logo, que o objecto do recurso seja constituído por normas jurídicas e não por decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não constitucionalmente sindicáveis.
Sendo este o entendimento pacificamente aceite (cfr., por todos, o acórdão nº 35/92, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Maio de 1992), torna-se manifesta a inadmissibilidade de recurso de constitucionalidade, na medida em que se reporta a uma decisão judicial, e não a uma norma, quando põe em causa a 'legalidade da deliberação' do tribunal recorrido, ao ordenar o desentranhamento dos autos de peças processuais oriundas do Tribunal de Contas - assim, alegadamente, 'fragilizando a defesa do ora recorrente' - ou quando determina o desentranhamento da parte da contestação que imputa acusações às testemunhas arroladas pela acusação - assim violando o nº 1 do artigo 32º da Constituição. E o mesmo se dirá quando se impugna o decidido tocantemente à competência dos tribunais militares, dada a incidência sobre a medida concreta da pena, de muito maior gravidade na justiça castrense, impli cando a inconstitucionalidade do artigo 193º do Código de Justiça Militar
(questão, de resto, que terá sido depurada do objecto do recurso de constitucionalidade, segundo transparece da reacção ao convite efectuado nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82).
3.2.- Pode, no entanto, entender-se que, relativamente à norma constante da alínea b), segunda parte, do nº 1 do artigo 380º do CJM, o recorrente suscitou a questão da sua constitucionalidade em termos adequados - não obstante não parecer ser esse o juízo sustentado pelo Juiz relator no tribunal a quo, no despacho subsequente ao que ordenou a observância do disposto no artigo 75º-A
(fls. 267) quando refere não ter o recorrente arguido a inconstitucionalidade dessa norma.
De qualquer modo, mesmo que assim fosse, a suscitação sempre seria intempestiva, ou seja, não equacionada previamente, durante o processo, no sentido acolhido uniformemente pela jurisprudência deste Tribunal: antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão respeita (cfr., por todos, o acórdão nº 352/94, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994).
Na verdade, nas alegações apresentadas perante o Supremo, o recorrente não levantou o problema, só o tendo feito, pela vez primeira, quando, convidado nos assinalados termos do artigo 75º-A, veio dizer que pretendia apreciar a conformidade da norma com os princípios da igualdade e das garantias de defesa em processo criminal, consagrados nos artigos 13º e 32º, nº 1, da CR, não sendo exacto que o tenha feito nas conclusões 2ª e 3ª das alegações de recurso para esse Alto Tribunal, como pretende (transcritas supra, no ponto 1.1.).
E se, ainda na sequência da jurisprudência deste Tribunal, se considerar que a interpretação da locução durante o processo só sofrerá restrições em situações excepcionais, anómalas, em que o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida decisão final (cfr. citado acórdão nº
352/94), o certo é que, no caso vertente, nada impediu o recorrente de ter equacionado a questão anteriormente a esse momento quando é certo que o juiz instrutor se alicerçou expressamente, nesta parte, na invocada norma para decidir como decidiu. Ou seja, não existe qualquer 'decisão-surpresa', como bem observa, no seu parecer, o Ministério Público.
4.- Em face do exposto, indefere-se a reclamação.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Maio de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida