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Procº nº 376/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA. FALTA DEC. De VOTO M- Pinto
I
1. J. L. interpôs para o Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho proferido em 9 de Agosto de 1993 pelo Secretário Adjunto do Ministro da Administração Interna que lhe indeferiu o recurso hierárquico do despacho do Brigadeiro Comandante Geral da Guarda Fiscal que, por sua vez, também indeferira a reclamação de despacho proferido pelo Comandante de Batalhão daquela Guarda e por intermédio do qual lhe fora aplicada a sanção disciplinar de cinco dias de detenção pela indiciada prestação, pelo recorrente, de declarações perante uma estação emissora de televisão, não tendo sido superiormente autorizado a prestá-las.
Por acórdão de 28 de Setembro de 1995, proferido pela 1ª Subsecção da 1ª Secção daquele Supremo Tribunal, foi negado provimento ao recurso, o que motivou o impugnante a do assim decidido recorrer para o Pleno da aludida 1ª Secção.
Em 19 de Março de 1999 lavrou o Pleno daquela 1ª Secção aresto concedendo provimento ao recurso.
Para tanto, discreteou-se assim, em dados passos:-
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Por seu lado, a lei infringida por que o agravante foi punido é a constante do número 27º do artigo 3º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal - EMGF - aprovado pelo DL 374//85, de 20 de Setembro, vigente ao tempo, que impõe ao militar da GF o dever de ‘Não intervir, sem prévia autorização, em órgãos de comunicação social, em assuntos relativos à política interna ou externa da Nação, à defesa nacional ou que se relacionem com o serviço da Guarda Fiscal’.
Não contesta o recorrente, nem as declarações por que foi inculpado, nem a ausência de prévia autorização para as proferir, tão pouco a adequação constitucional, do ponto de vista material, daqueles normativos, aliás longamente salvaguardados no acórdão recorrido.
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O comando constitucional que nos importa para o julgamento é o do artigo 270º da CRP que enuncia as restrições, pelos motivos largamente discorridos na secção, ao exercício de determinados direitos pelos militares e agentes militarizados.
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Uma dessas restrições é a constante do dever 27º do artigo 3º do EMGF, já transcrito.
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Ora é patente que o dever 27º do artigo 3º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal, aprovado pelo DL 374/85, de 29 de Setembro, expressa uma forte restrição ao direito de expressão livre do pensamento.
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Porém, a nosso ver, uma questão prévia se põe que prejudica o juízo de constitucionalidade que se pudesse operar acerca da conformidade material da norma, não obstante pacífica para a secção e para os demais intervenientes processuais, salvo o recorrente, embora em matriz de legalidade, na interpretação que faz do nº 27º do artigo 3º do EMGF, com apelo ao juízo sobre o comportamento concreto eventualmente desviante.
É que a situação excepcional da restrição e dos agentes a quem se aplica é de tal modo gravosa aos alicerces da cultura democrática em que assenta do estado de Direito que é o nosso, que o legislador constitucional, além de exigir uma enumeração casuística com assento na própria Constituição e ainda a limitar aos princípios da necessidade, da exigibilidade e da proporcionalidade, afinal os vectores da proibição do excesso, impôs do mesmo passo uma reserva de lei absoluta da Assembleia da República e uma maioria qualificada de dois terços para a aprovarem, nos termos da alínea p) do artigo 167º e 171º, nº 5, respectivamente.
Que não foi cumprida no caso.
Ou seja: a restrição à livre expressão do pensamento contida no nº 27 do artigo 3º do EMGF, se bem que excepcionalmente admitida para os militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo pelo artigo
270º da CRP, sem embargo tinha que constar de lei da Assembleia da República e ter sido aprovada por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções. Diferentemente, vem aprovada pelo Governo nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da CRP, ou seja, no uso da competência legislativa própria dele.
O nº 27 do artigo 3º do EMGF é assim organicamente inconstitucional.
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2. É da recusa de aplicação, operada pelo acórdão de que parte se encontra transcrita, que, pelo Ministério Público e pelo Ministro da Administração Interna, vem interposto o vertente recurso, fundado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Determinada a feitura de alegações, rematou o Ministério Público a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
' O nº 27 do artigo 3º do Estatuto Militar da Guarda Fiscal, restringindo a livre expressão do pensamento, é organicamente inconstitucional por não constar de Lei da Assembleia da República, nem ter sido aprovada por maioria de dois terços dos deputados, nos termos da alínea p) dos artigos 167º e 171º, nº 5 da Constituição (artigos 164º, alínea o) e 168º, nº 4, na redacção da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro)'.
Por seu lado, o Ministro da Administração Interna concluiu a alegação por si formulada dizendo:-
' 6.1 A restrição à liberdade de expressão, nomeadamente a proibição de fazer declarações públicas, aos órgãos de comunicação social, sobre assuntos de serviço, está prevista nos artigos 31º., nºs. 1 a 3, da Lei nº. 29/82, de 11 de Dezembro - Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas - e no artigo 4º., nºs. 1 e 28, do Regulamento Disciplinar Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 142/77, de 9 de Abril;
6.2 Os referidos normativos eram directamente aplicáveis ao pessoal militar da ex- -Guarda Fiscal, por força do disposto nos artigos 32º., nº. 1, e 69º., nº.
1, da Lei nº. 29/82 (LDNFA) e dos artigos 1º., 4º., nº. 1, e 16º. da Lei nº.
11/89, de 1 de Junho (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar);
6.3 A circunstância de o Governo ao editar a Lei Orgânica da Guarda Fiscal
(Decreto-Lei nº. 373/85 - artigo 12º., nº. 1) e o Estatuto do Militar da Guarda Fiscal (Decreto-Lei nº. 374/85 - artigo 3º., nº. 27), ter, em cumprimento daqueles normativos, inserido, unicamente por razões de ordem sistemática e de unidade do regime estatutário, a referida restrição à liberdade de expressão, sem nada inovar quanto ao seu âmbito de aplicação, não pode servir de fundamento para sustentar a inconstitucionalidade orgânica da previsão do citado nº. 27 do artigo 3º. do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal'.
O recorrido J. L., por seu turno, não apresentou alegação.
Cumpre decidir.
II
1. A norma da qual foi recusada a aplicação e em que se fundou o despacho aplicador da sanção disciplinar ao ora recorrido (nº 27º do artº 3º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal aprovado pelo Decreto-Lei nº 374/85, de 20 de Setembro) estipula que [o] militar da Guarda Fiscal, além de estar sujeito aos regulamentos militares constantes da Lei Orgânica da Guarda Fiscal e à regulamentação fiscal-aduaneira e de controle de fronteiras, tem ainda o dever de [n]ão intervir, sem prévia autorização, em órgãos de comunicação social, em assuntos relativos à política interna ou externa da Nação, à defesa nacional ou que se relacionem com o serviço da Guarda Fiscal.
O acórdão ora sub iudicio descortinou nessa norma um vício de inconstitucionalidade orgânica, posição que foi sufragada pelo recorrente Ministério Público, que se limitou a louvar-se nas considerações desse aresto.
Já o recorrente Ministro da Administração Interna sustenta uma outra
óptica, de harmonia com a qual, existindo no ordenamento jurídico infra-constitucional normação de onde se retira a existência da restrição ao direito de liberdade de expressão contida no norma em apreço, a circunstância de a mesma constar de um diploma emitido pelo Governo sem estar parlamentarmente credenciado não acarretará aquele vício, por isso que o respectivo conteúdo em nada inova.
Vejamos, pois.
2. A Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro - Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas -, ao dispor sobre as restrições aos exercício de direitos por militares, veio, no tocante ao direito de expressão, prescrever que os militares e agentes militarizados não podem fazer declarações públicas de carácter político ou quaisquer outras que ponham em risco a coesão e disciplina das Forças Armadas ou desrespeitem o dever de isenção política e apartidarismo dos seus elementos (nº 2 do artº 31º), não podendo igualmente sem autorização superior, fazer declarações públicas que abordem assuntos respeitantes às Forças Armadas (nº 3 daquele artº 31º).
Essa mesma Lei, no nº 1 do seu artº 69º, veio consagrar que, entre outros, era aplicável o disposto no artigo 31º aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana e na Guarda Fiscal.
3. A questão que há, desde logo em primeiro passo, que enfrentar, reside em saber, atenta a postura assumida na sua alegação pelo Ministro da Administração Interna, se o normativo em crise pode, sem mais, ser perspectivado como tendo um conteúdo totalmente idêntico ao que se lobriga nos números 2 e 3
(e no momento releva este último número) do artº 31º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.
É que, se se der resposta positiva a essa questão, seguir-se-á, naturalmente, o equacionamento daqueloutra consistente em saber se, nessa hipótese, será cabido sustentar a eventual inconstitucionalidade orgânica divisada no acórdão impugnado.
3.1. A restrição ao exercício do direito de livre expressão do pensamento contida no nº 3 do citado artº 31º reporta-se à feitura, sem autorização superior, de declarações públicas que abordem assuntos respeitantes
às Forças Armadas, pelo que, por um lado, se é conduzido a sustentar que uma tal proibição não só se dirige aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e contratados em serviço efectivo das Forças Armadas, como também aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Fiscal, por força da norma transitória vertida no nº 1 do artº 69º já mencionado (e independentemente de, agora, se ponderar se porventura uma tal aplicação é, do ponto de vista material, conforme à Lei Fundamental); e, por outro, que atendendo à literalidade do preceito, a estes
últimos é vedada aquela feitura se reportada a assuntos concernentes às Forças Armadas.
Na verdade, o dito nº 1 do artº 69º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, ao comandar a aplicação do disposto no seu artº 31º aos militares e agentes militarizados da Guarda Fiscal, não utiliza qualquer expressão de onde se possa retirar a intenção do legislador de querer significar que as restrições aí contidas seriam devidamente adaptadas aos assuntos pertinentes a este corpo de segurança.
Ora, o que na norma em crise se estatui, para o que ora releva, é a proibição, dirigida aos militares da Guarda Fiscal, de, sem prévia autorização, intervirem em órgãos de comunicação social em assuntos relacionados com o serviço naquela Guarda.
Convir-se-á, desta arte, que o âmbito dessa norma não é coincidente com o do nº 3 do artº 31º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.
3.2. Mas, se isso é assim relativamente a tal Lei, impõe-se, por outro lado, saber se outro tanto sucede tendo por referência a disposição constante do nº 28º do artº 4º do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril - que estatui que é dever do militar
[n]ão se servir dos meios de comunicação social ou de outros meios de difusão para tratar de assuntos de serviço(...) -, a qual é aplicável aos militares da Guarda Fiscal ex vi do nº 1 do artº 12º do Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro.
Suposto que se conclua que a norma do nº 28º do artº 4º do Regulamento de Disciplina Militar tem âmbito idêntico ao do da norma sub specie, entende-se, porém, mesmo face a tal suposição, que nem assim se impõe dar resposta ao problema equacionado pelo recorrente Ministro da Administração Interna, no particular acima indicado (que, recorde-se, consiste na defesa de uma tese segundo a qual, não sendo inovatória a norma em apreço, pois que se limitaria a reproduzir uma outra já existente no ordenamento jurídico infra-constitucional - editada sem padecer do vício de inconstitucionalidade orgânica - não sofreria aquela desta espécie de vício).
É que, o Decreto-Lei nº 373/85 - onde se insere a norma do nº 1 do artº 12º, que torna aplicável aos militares da Guarda Fiscal as restrições ao exercício de direitos por militares, o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar - foi editado pelo Governo nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição (na versão decorrente da Revisão Constitucional de 1982), ou seja, no exercício sua competência legislativa concorrente, não sendo, pois, precedido de autorização parlamentar.
De outra banda, viu-se já que a restrição à livre expressão de pensamento constante do nº 3 do artº 31º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas não tem o mesmo âmbito do apresentado pela norma ora sindicada, pois que naquela se não divisa a proibição de declarações públicas que abordem assuntos relativos ao serviço da Guarda Fiscal.
Sendo assim, um dever, tal como o ínsito no nº 28º do artº 4º do Regulamento de Disciplina Militar - porque, indubitavelmente, se pode caracterizar como uma restrição àquele direito, direito este que, por seu turno e também inquestionavelmente, é um dos direitos do catálogo dos direitos, liberdades e garantias consagrados constitucionalmente -, para que pudesse ser aplicado a uma categoria de cidadãos que, aquando da sua consagração, lhe não era oponível, haveria de constar de diploma emitido com base na base na competência cometida pela Lei Fundamental à Assembleia da República [cfr. artº
168º, nº 1, alínea b), da Constituição - versão resultante da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro].
Vale isto por dizer que se não pode, para os efeitos que ora nos relevam e na suposição acima indicada, ter por válida a aplicação do dever do nº
28º do artº 4º do Regulamento de Disciplina Militar aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em exercício efectivo na Guarda Fiscal, pelo que não será também por esta via que é equacionável o problema colocado na alegação do recorrente Ministro da Administração Interna e a que se fez referência.
4. Aqui chegados, cumpre concluir que o dever cuja infracção foi assacada ao recorrido deve ser perspectivado como decorrendo, e tão só, da norma em análise que, aliás, não somente não deixou de ser a convocada como suporte jurídico da decisão disciplinar que veio a ser impugnada, como foi aquela - que sendo perspectivável como aplicada ao caso pelo acórdão recorrido- cuja aplicação foi recusada.
Pois bem.
Viu-se já que o mencionado dever não pode senão ser considerado como uma restrição a um direito fundamental, justamente o que se prescreve no nº 1 do artigo 37º da Constituição, ou seja, o direito que todos têm de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio.
E, como matéria tocante a direitos, liberdades e garantias, a edição normativa a ela respeitante há-de integrar-se naquilo a que Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 670) apelidam de 'nível mais exigente' do alcance da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, no qual 'toda a regulamentação legislativa' aí se insere, tanto mais que nos postamos perante uma restrição.
Ora, constando a norma em análise de um diploma editado pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa concorrente e sem precedência de credenciação parlamentar, concluído que foi que o dever por ela imposto - que, afinal, vem representar uma restrição a um direito fundamental constitucionalmente consagrado - se não pode sequer considera como algo que, antes da respectiva edição, já se encontrava previamente estabelecido no ordenamento jurídico aplicável aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Fiscal, ser-se-á levado ao entendimento de a mesma enferma de inconstitucionalidade orgânica.
III
Em face do exposto, decide-se:-
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea b) da versão da Constituição decorrente da Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, a norma constante do nº 27º do artº 3º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal aprovado pelo Decreto-Lei nº
374/85, de 20 de Setembro, e, em consequência,
b) Negar provimento aos recursos. Lisboa, 5 de Abril de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, por entender - contrariamente ao que se sustenta no acórdão, que o disposto no nº 1 do artigo 69º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, ao mandar aplicar o artigo 31º do mesmo diploma aos militares e agentes militarizados da Guarda Fiscal - como da Guarda Nacional Republicana -, se há-de entender como impondo as necessárias adaptações, puramente literal ,desse preceito).