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Procº nº 106/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por sentença proferida em 22 de Junho de 1996 pelo Juiz do 2º Juízo de competência especializada Criminal do Tribunal de comarca de Paredes foi M... condenado na pena de três meses de prisão substituídos por multa à taxa diária de 400$00, a que corresponderam, em alternativa, sessenta dias de prisão, e em trinta dias de multa à mesma taxa, o que perfez a multa
única de 48.000$00, correspondentes a oitenta dias de prisão alternativa, por isso que foi considerado como tendo praticado factos que foram subsumidos à autoria de um crime de exploração ilícita de jogo previsto e punível pelo nº 1 do artº 108º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.
Não se conformando com o decidido recorreu aquele arguido, e apenas sobre a questão de direito, para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na motivação que então produziu, sustentado, essencialmente, que a sua conduta não integrava o tipo legal de ilícito que conduziu à condenação, pois que teria havido na decisão impugnada erro quanto à 'determinação do regime jurídico aplicável'.
O representante do Ministério Público junto daquele 2º Juízo, na resposta à motivação apresentada pelo recorrente, defendeu que deveria ser negado provimento ao recurso, já que foi correcto o enquadramento jurídico levado a cabo na sentença sob censura, por isso que o nº 3 do artº 161º do mencionado decreto- -lei afastava do conceito de «modalidades afins» de jogo de fortuna ou azar máquinas que desenvolvessem jogos como o poker, tese que também foi acolhida pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto no «parecer» que exarou nos autos.
2. O Desembargador Relator do aludido Tribunal de 2ª instância, porque entendeu que, ex vi do nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal, o recurso devia ser rejeitado dada a sua manifesta improcedência, determinou que os autos fossem continuados com «vista» aos juízes adjuntos, devendo ser presentes à primeira «conferência».
Por acórdão de 27 de Novembro de 1996, foi o recurso rejeitado por manifesta improcedência, e isso, em síntese, porque se entendeu que a máquina de jogo em causa nunca poderia, atenta a matéria de facto dada por assente na sentença impugnada, ser considerada como desenvolvendo uma
«modalidade afim» de jogo de fortuna ou azar, face ao prescrito no nº 3 do já citado artº 161º
3. O recorrente, após ter sido notificado desse acórdão, veio arguir uma irregularidade processual consistente em, tendo tal aresto, na sua perspectiva, de ser considerado um 'acórdão-de--julgamento' (já que dirimiu um 'conflito de qualificações jurídicas concorrentes à disciplina jurídico-sancionatória dos factos assentes'), não podia ter sido proferido sem que se tivesse procedido à audiência a que se reportam os artigos 421º e seguintes do Código de Processo Penal. Acrescentou o arguente que, a entender-se que seria possível lavrar-se um 'acórdão-de-rejei- ção' nos casos de manifesta improcedência da pretensão deduzida no recurso, ainda que isso implicasse uma apreciação do mérito dele, o que demandaria, nesse entendimento, a 'ausência de necessidade de uma discursividade reflexiva e problemática para chegar da pretensão do recurso à estatuição judicativa negativa', então esse entendimento repousaria numa interpretação do nº 1 do artº 420º daquele corpo de leis ferida de inconstitucionalidade material por ofensa do números 1 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental e nº 1, do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Por acórdão de 29 de Janeiro de 1997 foi a arguição considerada improcedente. Para tanto, em síntese, considerou-se:-
que 'a figura da rejeição do recurso, ..., não significa «a possibilidade dos tribunais superiores selecionarem as causas que lhe hão-de ser submetidas mas sim um regime simplificado de decisão quando seja manifesto que o recurso, por razões processuais ou de mérito, não pode proceder»;
que, face à matéria de facto fixada, não se anteviam quaisquer dúvidas quanto à decisão que, in casu, o tribunal haveria de tomar;
não se vislumbrava haver preterição dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, já que, para 'a decisão não foram consideradas, sequer, as alegações do delegado do Procurador da República junto do Tribunal recorrido, quer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto', que, de todo o modo, nem sustentaram qualquer tese de rejeição do recurso.
4. É do acórdão de 29 de Janeiro de 1997 que vem, pelo arguido, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, no qual se visa a norma do último segmento do nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal.
Na alegação que produziu, concluiu o recorrente:-
'1. O Tribunal a quo levou pressuposto um entendimento do art. 420º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, segundo o qual o recurso pode ser julgado sem precedência de audiência, sob invocação de rejeição, quando, não obstante a problematicidade das questões nele suscitadas, o Tribunal de recurso, em razão da sua própria atitude a-proble- mática e a-crítica, reconduza esse julgamento à noção de
'manifesta improcedência'.
2. Tal entendimento está ferido de inconstituciona- lidade orgânica, porquanto:
a) sendo o processo criminal matéria de competência reservada relativa da Assembleia da República, nos termos do art. 168º, nº 1, al. c) e
b) tendo a autorização legislativa conferida pela Lei nº 43/86 fixado como sentido e alcance 'a possibilidade do recurso ser liminarmente rejeitado por manifesta falta de fundamento' (cfr. artº 2º, al. 70),
c) o Governo excedeu tal limite, ao estatuir no art. 420, nº 1 do Cód. Proc. Penal, a possibili- dade de rejeição por 'manifesta improcedência'.
3. Assim, traduzindo-se a falta de fundamento (a que se refere a autorização legislativa) na inexistência de razões adequadas à pretensão deduzida - idóneas para a atingir independentemente do mérito que o juízo decisório lhes venha a atribuir - e a improcedência na existência de um fundamento idóneo, mas prudencialmente avaliado e preterido (em favor de outros que disputavam o juízo decisório),
- o art. 420º, nº 1 ao permitir que um recurso em que existe fundamento seja rejeitado por um juízo antecipatório sobre a validade desse fundamento, excede manifestamente o sentido e alcance daquela autorização legislativa, que apenas permitia a rejeição quando, na apreciação da admissibilidade do recurso, se verificasse que ele carecia de fundamento, ou seja, que as razões invocadas não eram idóneas para lograr a pretensão.
4. O entendimento do art. 429º, nº 1 adoptado pelo Tribunal a quo está igualmente ferido de inconsti- tucionalidade material, pois que
a) preterindo o direito de audiência no julgamento do recurso (e as suas modalidades formais de mediação e oralidade) o Tribunal a quo não assegurou o contraditório nem o princípio da igualdade de armas, decorrências imediatas do art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa;
b) abrindo o sentido da norma sob censura à preterição de tais direitos, viola-se igualmente o art. 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (recebida na ordem jurídica portuguesa pela Lei nº 65/78) que integra os direitos fundamentais por força do art. 16º da C.R.P.'.
Por seu turno, o Ex.mo representante do Ministério Público em funções neste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:-
'1º
A norma constante do nº 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, na parte em que faculta ao tribunal - em recurso que versa exclusivamente sobre questões de direito e em que os sujeitos processuais já tiveram plena oportunidade de, na motivação e na resposta ao recurso, exporem o seu entendimento sobre as questões jurídicas suscitadas - a sua liminar rejeição, em conferência e por unanimidade, quando entenda que as razões aduzidas pelo recorrente são manifestamente improcedentes, não viola o princípio constitucional das garantias de defesa.
2º
Na verdade, estas não compreendem seguramente a obrigatória realização de uma audiência de julgamento no tribunal 'ad quem' em todos os recursos que versem exclusivamente sobre matéria de direito, com vista à produção de alegações orais, complementares da motivação aduzida aquando da interposição do recurso.
3º
A referida norma em nada afronta o teor da Lei de Autorização legislativa, pelo que não ocorre qualquer violação de lei com valor reforçado, nem se verifica a apontada inconstitucionalidade orgânica.
4º
Termos em que improcede o presente recurso'.
Cumpre decidir.
II
1. Assinale-se, em primeiro lugar, que, não obstante a questão de constitucionalidade referente ao nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal não ter sido suscitada pelo recorrente antes da prolação do acórdão de 27 de Outubro de 1996 (por isso que o foi unicamente em requerimento posterior a tal prolação e que consubstanciou a arguição de irregularidade processual consistente na omissão da realização da audiência a que se reportam os artigos 421º e seguintes do mesmo copo de leis), isso não constitui obstáculo a que se conheça do vertente recurso.
Na realidade, por um lado, a decisão ínsita em tal acórdão - qual seja a de rejeitar o recurso em virtude de se ter entendido que era manifesta a sua improcedência - foi prolatada sem que, antecedentemente ao seu proferimento, tivesse sido dada ao recorrente qualquer indicação nesse sentido, razão pela qual, em princípio, o mesmo não contaria com ela. Por outro lado, complementarmente e no que mais releva, o que há que não passar em claro é que foi no requerimento de arguição de irregularidade processual que o ora recorrente se colocou numa posição segundo a qual, justamente pela circunstância de uma dada interpretação normativa ser, a seu ver, feridente da Constituição, isso implicaria a ocorrência daquela irregularidade - susceptível de influenciar na decisão da causa, com evidente reflexo no aresto proferido -, o que motivou que, sobre essa questão, se viesse a pronunciar o Tribunal da Relação do Porto, enfrentando e decidindo a questão de constitucionalidade que, nesse particular, lhe fora posta (cfr., por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal nº 176/ /88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., 555 e segs, 318/90, idem, 17º vol., 249 e segs., e 355/93, idem, 25º vol., 829 e segs.).
2. Isto posto, incumbe tratar agora da alegada inconstitucionalidade da norma ínsita no nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal, na parte em que, como se refere o Ex.mo representante do Ministério Público na sua alegação, faculta ao tribunal superior - em caso de recurso versando unicamente matéria de direito e em que as «partes» já tiveram oportunidade de expor, nas respectivas motivações, o seu posicionamento quanto a tal matéria - rejeitar esse recurso, quando entenda que as razões aduzidas pelo recorrente são manifestamente improcedentes.
O preceito em que aquela norma se comporta apresenta o seguinte teor:- ARTIGO 420.º
(Rejeição do recurso)
1. O recurso é rejeitado sempre que faltar a motivação ou for manifesta a improcedência daquele.
2.............................................
...................................................
Fundamenta o recorrente a contraditoriedade da norma sub iudicio com a Lei Fundamental em dois vícios, sendo um de natureza orgânica e outro de natureza material.
3. Tocantemente ao primeiro, fundou-se na circunstância de, dispondo-se na «alínea» 70 do nº 2 do artº 2º da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro (lei por intermédio da qual foi concedida ao Governo autorização para aprovar um novo Código de Processo Penal e revogar a legislação então vigente sobre essa matéria - cfr. seu artº 1º), que um dos sentidos daquela autorização era o da 'Introdução de um princípio de tramitação unitária para todas as espécies de recurso e consagração, para todos eles, da possibilidade de este ser rejeitado por manifesta falta de fundamento', então a norma em apreço, constante do Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, ao consagrar a rejeição do recurso por manifesta improcedência, teria extravado tal sentido.
Entende o Tribunal que ao recorrente não assiste, neste ponto, qualquer razão.
3.1. Efectivamente, de um ponto de vista semântico-jurí- dico, não se lobriga diferença entre a rejeição por manifesta falta de fundamento e a rejeição por manifesta improcedência, quando em causa está um recurso circunscrito a uma questão de direito.
É que, se após a apresentação da motivação, as razões jurídicas a ela carreadas não têm suficiência para suportar uma alteração da subsunção jurídica levada a efeito na decisão de que se recorre, e isso em face dos preceitos normativos que a tanto conduziram - ou de uma interpretação seguida quanto a eles (nomeadamente uma interpretação que, consolidadamente, tem vindo a ser seguida na jurisprudência dos tribunais superiores) - o recurso, forçosamente, carecerá de fundamento. A reapreciação jurídica pretendida por seu intermédio não tem, assim, razão de ser ou, se se quiser, não apresenta fundamento bastante e, consequentemente, a impugnação não poderá ser visualisado como algo de procedente.
Ora, se a Lei nº 43/86, por entre outros, teve por escopo a consagração de um sistema de harmonia com o qual os tribunais superiores poderiam - presentes que estivessem os requisitos formais de índole processual - proceder como que a uma «rejeição liminar» dos recursos quando as respectivas razões pelas quais foram interpostos não apresentassem fundamento bastante (nesta asserção se contendo o acima exemplificado), «rejeição» essa que haveria necessariamente de acarretar um menor ritualismo comparativamente aos casos em que não seja evidente aquela falta de fundamento, então há que concluir que, de modo claro, o legislador parlamentar, ao redigir, da forma como redigiu, a «alínea» 70 do nº 2 do artº 2º da mencionada Lei, seguramente não quis afastar os casos em que, numa apreciação sumária levada a efeito pelo tribunal superior, fosse desde logo nítido que as razões de direito em que se estribava o recurso não podiam, por infundamentadas, proceder.
Dizer isto é, pois, o mesmo que afirmar que os sentido e alcance, quanto ao particular em causa, contido na dita «alínea» 70 do nº 2 do artº 2º são de tal sorte que comportam perfeitamente o que se prescreveu na final do nº 1 do artº 420º ora sub specie constitucionis.
O escopo acima mencionado, que até aí não tinha tradução na legislação adjectiva (excepção feita ao que se prescrevia no nº 2, parte final, do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção inicial) e à qual não são estranhos desideratos de celeridade processual, designadamente quando se revelam infundadas pretensões de reapreciação pelos tribunais superiores de decisões lavradas pelos tribunais inferiores (sendo de sublinhar que o intento de obter uma justiça pronta não deixa de ser um valor constitucionalmente relevante), veio, paulatinamente, a ter consagração nas reformas adjectivas, estatuindo-se hoje regras como as constantes da parte final do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82 (redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro) e no artº 705º do Código de Processo Civil após a redacção conferida pelos Decretos-Leis números 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro.
Não se antevê, desta arte, que o Governo, ao editar o Código de Processo Penal, tivesse - quanto ao nº 1 do seu artº 420º e ao consagrar a possibilidade de rejeição do recurso nos casos de manifesta improcedência das questões jurídicas que o recorrente desejou serem, e tão só elas, reapreciadas pelo tribunal superior - desbordado a autorização que lhe foi concedida pela aludida norma da Lei nº 43/86, por isso que aquela possibilidade já ali se continha.
O que vale por dizer que o Tribunal não divisa, neste ponto, enfermar a norma em apreço do vício de inconstitucionalidade orgânica.
4. Um outro vício, como se viu, descortinou o ora impugnante quanto à norma de que se cura.
Segundo ele, essa norma (e com a dimensão já assinalada) ofenderá as garantias de defesa que o processo criminal deverá, por força do mandato constitucional, assegurar, vertidas, por entre o mais, na observância do princípio do contraditório, maxime aquando da audiência de julgamento ou no iter decisório que deve ser observado para se alcançar uma decisão que venha a afectar ou possa afectar a posição do arguido.
Em abono dessa conclusão, citou o recorrente, para além dos ditames constantes dos números 1 e 5 do artigo 32º do Diploma Básico, o artº
6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Neste particular realce-se que, se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num sentido de aplicação directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não olvidar que, se dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais já se retirarem, em todas as sua vertentes (aqui se incluindo as que se extraiam de uma interpretação efectuada, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 138, 'de acordo com as regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fundamentais'), os alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo, pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das coisas, destituído de sentido (cfr., por entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal números 14/84, ponto 2.2., parte final, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., 339 e segs. e 222/ /90, idem, 16º vol., 635 e segs.).
Parafraseando, e com a adaptação que se imporá, os autores e obra citados - que se reportam, não à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mas sim à Declaração Universal dos Direitos do Homem e a propósito do nº 2 do artigo 16º da Constituição - esta questão 'é praticamente irrelevante, pois a Constituição não só consumiu a Declaração - sendo muitas das disposições constitucionais reprodução textual, ou quase textual, de disposições daquela - mas também inclui direitos não referidos na Declaração'
Pois bem.
Visto o teor do nº 1 do artº 16º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (recte, o seu primeiro período, segundo o qual '[t]oda a pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer dos direitos dela e obrigações civis, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela'), e o que se estatui nos números 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, não se passando em claro o que se comanda nos seus artigos 205º, números 1 e 2, 206º e 209º, não se detecta que a estas prescrições o falado artº 16º nº 1 adiante o que quer que seja de molde a servir de integração ou subsídio a uma interpretação que elas não comportassem já.
Daí que, na apreciação do invocado vício de inconstitucionalidade material, não necessite o Tribunal de apelar àquela norma de direito internacional, havendo de buscar como parâmetros, para o efeito, as garantias consagradas no aludido artigo 32º.
4.2. Quanto a este aspecto, não se afigura problemática a solução a dar à questão de saber se a possibilidade, conferida ao tribunal superior, de rejeitar em conferência um recurso criminal - que somente versa sobre matéria de direito - com base na sua manifesta improcedência, tendo tido as «partes», antecedentemente à decisão que exercita aquela possibilidade, oportunidade de exporem o seu ponto de vista tocantemente a tal matéria, é algo que conflitua com as garantias de defesa do arguido e com a subordinação ao princípio do contraditório, umas e outra postuladas pelos números 1 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Não se pode, em primeira linha, deixar de ponderar que, em verdade, aquilo que, essencialmente, a norma em crise vem a alterar quanto à tramitação processual, confrontadamente com os casos em que há lugar ao prosseguimento do recurso (e, repete-se, estando em causa um recurso limitado tão só à matéria de direito), resume-se na não realização da audiência a que se reporta o artº 422º do Código de Processo Penal e, logo, com dispensa das alegações orais (in specie, do representante do recorrente e do Ministério Público).
Ora, como sublinha o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, 'é manifesto que não pode considerar-se ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa a existência, em todos os casos, - e versando o recurso apenas sobre questões de direito - de uma audiência de julgamento do recurso, a realizar em termos de mediação e oralidade' (cfr., sobre «manifesta improcedência» e «rejeição do recurso», Manuel Simas Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 5º, 2º, Abril--Junho).
Aliás, a audiência de julgamento a que se refere o nº 5 do artigo 32º do Diploma Básico tem, em conexão com o princípio do contraditório a que deve obedecer e tendo como referente de destino o arguido, o significado de o mesmo dever nela intervir, expondo o seu ponto de vista quanto à imputações que lhe são dirigidas pela acusação, podendo contraditar as provas que contra si foram apresentadas, apresentar novas provas e pedir novas diligências, para além, claro, do debate sobre a questão-de-direi- to (sobre o direito de audiência globalmente considerado cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 154 e segs.). E daí que se possa dizer que, de um ponto de vista imediato, a audiência ali falada se reporta à audiência de discussão e julgamento realizada na 1ª instância.
Nada na Constituição impõe, desta sorte, que nos recursos em matéria criminal que versem somente sobre matéria de direito deva haver lugar a uma audiência subordinada aos princípios da imediação e da oralidade. Mister é, isso sim, que, em nome e perante o ditame do nº 1 do artigo
32º, ao arguido sejam asseguradas todas as garantias de defesa, o que implica, desde logo, que ao mesmo haja de ser dada oportunidade de discretar sobre a indicada matéria, permitindo-se-lhe, pois, a explanação dos seus pontos de vista sobre ela.
Sendo assim, segue-se saber se, da forma como se encontra gizado o sistema de rejeição do recurso por manifesta improcedência, tal como in casu ocorreu (ou seja, pela circunstância de o tribunal superior, num juízo liminar, conquanto de mérito, ter entendido não poderem ser procedentes as razões jurídicas invocadas na impugnação), vai preterir o princípio do contraditório, este na perspectiva invocada.
A resposta a esta questão tem de ser negativa.
Na realidade, visando o recurso interposto pelo arguido
- que, aceitando a matéria de facto dada por demonstrada na sentença prolatada na 1ª instância, unicamente se não conformou com o enquadramento jurídico levado a cabo em tal decisão - que o tribunal superior venha, no fundo, a acolher a sua perspectiva de direito, obviamente que haverá, como se viu, que conceder-lhe oportunidade de expor a sua argumentação tendente a convencer este último órgão de administração de justiça da propriedade ou da bondade daquela perspectiva.
Só que essa oportunidade lhe é inequivocamente concedida pelos preceitos adjectivos regentes do recurso.
De facto, ex vi do nº 3 do artº 411º do Código de Processo Penal, o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado
(sendo que, no caso de ter havido interposição por declaração na acta, a motivação pode ser apresentada no prazo de dez dias contados da data daquela interposição). Ora, nessa motivação haverá o impugnante de enunciar especificamente os fundamentos da sua discordância relativamente à decisão que intenta submeter à censura do tribunal superior e, circunscrevendo-se o recurso a matéria de direito, as conclusões que terá de formular deverão indicar as normas jurídicas violadas, ou o sentido em que, na óptica do recorrente, tais normas deveriam ter sido interpretadas ou aplicadas e/ou ainda, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma que, ainda naquela óptica, o deveria ter sido (cfr. artº 412º do mesmo Código).
Não se pode, em consequência, dizer que o sistema não proporcione ao arguido recorrente uma oportunidade - e de peso -para discretar as razões-de-direito que, no seu entendimento, seriam adequadas para porventura levar a uma decisão diferente daquela que foi tirada na 1ª instância. De onde haver de aceitar--se que a contraditoriedade (ou, se se quiser, a contraposição dialéctica que ao arguido se deve reconhecer) não deixa de ser exercitada com suficiência pelo dito sistema.
Simplesmente, o que já não é exigível é que o posicionamento do arguido (ou mais concretamente, a exposição das sua razões) se faça ad libitum ou imoderadamente, visando impor-se um sistema que lhe permita, por variadas vezes, a reiteração dessas razões, assim como também não é exigível que, para a defesa do seu ponto de vista, se tenha de proporcionar-lhe oportunidade para, além do que foi escrito na motivação, explanar, oralmente e perante o tribunal superior, esse mesmo ponto.
E, idêntica, mas seguramente, o princípio do contraditório não deve ser considerado como postulando a imposição de acolhimento, pelo tribunal superior, das razões perfilhadas quanto à questão-de-direito pelo arguido, designadamente quando aquele tem, dessa questão, um entendimento firme que, perante a pretensão deduzida no recurso, o leva desde logo e numa sumária apreciação, a concluir pela sua improcedência.
Não se mostram, desta arte, violados pela norma em crise (na dimensão já referida), os princípios consignados nos números
1 e 5 do artigo 32º da Constituição.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 12 de Maio de 1998 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida