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Proc.Nº 810/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A. foi julgado e condenado, no Tribunal de Círculo de Braga, em cúmulo jurídico, na pena de 4 anos, seis meses e dez dias de prisão, pela prática, em co-autoria, do crime previsto e punido pelos artigos 306º,1.3, b) e 5, em conjugação com o 297º, 2, c),g) e h), todos do Código Penal.
Não se conformando com tal decisão, interpôs recurso do acórdão condenatório, mas o recurso foi declarado sem efeito, por despacho de 18 de Abril de 1995, por não ter sido dado cumprimento ao preceituado no artigo 192º do Código das Custas Judiciais (adiante,CCJ).
Notificado do despacho que não admitiu o recurso, o arguido apresentou uma reclamação nos termos do disposto no artigo 405º do Código de Processo Penal de 1987 (adiante, CPP), dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ), que a apreciou depois de o juiz reclamado ter sustentado a sua decisão de dar sem efeito o recurso.
O despacho do Presidente do STJ, que decidiu a reclamação é do seguinte teor:
'A. interpôs recurso do acórdão de fls. 105, o qual foi admitido.
Posteriormente, não pagou a taxa devida pela interposição, tendo por despacho de fls. 135 sido dado sem efeito o recurso.
Notificado, veio reclamar do despacho, que o Exmo Juiz sustentou.
Tudo visto.
Não pode questionar-se ser devida taxa de justiça, pela interposição do recurso - cfr. os artigos 191 e l92º do Código das Custas Judiciais.
Por outro lado, a reclamação é apresentada contra despacho que não admitiu o recurso, situação não contemplada no artigo 4O5º do Código de Processo Penal, que apenas se refere ao despacho que não admitir ou que retiver o recurso.
Daí que a reacção contra tal despacho devesse ser feita através da interposição de recurso ordinário - artigos 399º e 410º do Código de Processo Penal.
O meio usado para tal é, pois, inadmissível.
Por outro lado, o imposto a que alude o artigo 192º do Código das Custas Judiciais é distinto do mencionado nos artigos 513º do Código de Processo Penal, que respeita ao imposto devido a final.
E não se diga que, assim, fica prejudicado o direito constitucional de defesa.
É que, a existir impossibilidade de satisfazer a taxa, por razões económicas, sempre o reclamante poderá recorrer ao instituto de apoio judiciário tanto mais que não vem alegada qualquer impossibilidade de contacto com a seu defensor.'
Notificado desta decisão de indeferimento da reclamação apresentada, o arguido veio formular um pedido de «correcção» da decisão, tendo simultaneamente pedido a sua alteração por entender que a interpretação feita do artigo 405º do CPP era inconstitucional, por negar as garantias de defesa do arguido, tendo ainda, no mesmo requerimento, sugerido que a reclamação fosse considerada como recurso, ou, se ainda assim não fosse entendido, então pretendia arguir a nulidade da decisão por existência de contradição entre a decisão e os fundamentos e ainda por não se ter pronunciado sobre questões que devia ter apreciado; finalmente, para o caso de tal não ser atendido, o arguido pretende interpor recurso para este Tribunal.
O Presidente do STJ, por despacho de 6 de Novembro de 1996 decidiu indeferir o requerimento de «correcção» por o mesmo ter sido apresentado fora de prazo, mas admitiu o recurso de constitucionalidade interposto.
2. - Neste Tribunal foram produzidas as pertinentes alegações, tendo o arguido concluído as suas pela forma seguinte:
'1 - O disposto no artº 192º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Dec. - Lei nº44.329, de 8.5.1962, com as alterações introduzidas, viola as disposições combinadas dos artºs 18º, nº2 e 3, e 32º, nº1, da Constituição da república Portuguesa.
2 - Assim foi já decidido no douto Acórdão desse Venerando Tribunal, no Procº 137/95, publicado no DR II, de 19.7.96.
3 - Tal vício resulta do facto de existir uma situação mais favorável à defesa no processo civil do que no processo crime, ficando assim o arguido desfavorecido na sua defesa.
4 - Por outro lado, não atender ao mérito do pedido feito aos Venerandos Conselheiros, devido à incorrecta identificação do articulado como reclamação, em vez de Recurso, verificados que estavam todos os requisitos do recurso, viola também as mesmas citadas disposições, uma vez que a incorrecta identificação do articulado não obsta à sua apreciação enquanto recurso, uma vez que nunca se diz que o recurso deve conter a palavra recurso, tendo mais uma vez sido cerceada a garantia de defesa do arguido.'
Também o Ministério Público apresentou alegações, nas quais suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, tendo formulado a seguinte síntese conclusiva:
'1º
Sendo a reclamação interposta pelo arguido julgada improcedente com um duplo e autónomo fundamento - o erro, considerado oficiosamente insuprível, na forma de processo, por se ter usado o meio previsto no artigo 405º do Código de Processo Penal, em vez de se impugnar, mediante recurso, a decisão que julgara deserto o recurso originariamente interposto; e, por outro lado, o efeito preclusivo decorrente da aplicação do artigo 192º do código das Custas Judiciais - e tendo-se requerido tardiamente o suprimento ou correcção do aludido erro na forma do processo - não há utilidade no conhecimento da questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais.
2º
Na verdade, qualquer que fosse a decisão a proferir sobre tal matéria, sempre subsistiria intocada a decisão proferida na reclamação, com base no primeiro e autónomo fundamento apontado para a respectiva improcedência.
3º
Caso assim se não entenda, deverá julgar-se inconstitucional a norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal «a quo» e no prazo de 7 dias, da taxa de justiça devida pela interposição do recurso da sentença penal condenatória do arguido, determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, com que se proceda à prévia advertência de tal cominação ao arguido.
4º
Termos em que, procedendo a questão prévia suscitada, não deverá conhecer-se do mérito do presente recurso.'
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Importa, antes de mais, apreciar a questão da procedência ou improcedência da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, começando por analisar os seus fundamentos.
Como resulta de anterior transcrição, foram duas as considerações invocadas na decisão da improcedência da reclamação deduzida pelo arguido:
- o erro na forma de impugnação de decisão recorrida, considerado não oficiosamente suprível, traduzido na circunstância de se haver usado meio processual inidóneo - a reclamação - em vez de se ter optado pelo que seria próprio, numa hipótese com a configuração da dos autos, em que não houve indeferimento do requerimento de interposição do recurso, sendo antes proferido despacho que o julgou deserto, por não pagamento tempestivo da taxa de justiça devida: o meio processual idóneo deveria ter sido a normal interposição de recurso, nos termos dos artigos 399º e 410º do Código de Processo Penal;
- o efeito preclusivo, absolutamente cominatório e irremediável, associado ao não pagamento daquela taxa de justiça, nos termos do citado artigo 192º do Código das Custas Judiciais (na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro).
Assim, segundo o Ministério Público, mesmo que se viesse a julgar insubsistente a segunda das razões apontadas como base da improcedência da reclamação, sempre subsistiria a primeira, já que o arguido, não tratou de suscitar, de modo tempestivo e adequado, «a correcção» ou «rectificação» dos termos do requerimento inicialmente deduzido, de modo a suprir o citado erro na forma de impugnação idónea para pôr em crise a decisão proferida no Tribunal de Círculo de Braga.
A subsistência de um dos fundamentos da decisão em recurso, mesmo que o fundamento da inconstitucionalidade procedesse, aliado ao carácter instrumental do recurso de inconstitucionalidade, tornam inútil o conhecimento desta questão de constitucionalidade.
Será de facto assim?
4. - O arguido e ora recorrente interpôs recurso da sentença condenatória proferida pelo tribunal colectivo do Círculo Judicial de Braga. Por não ter sido paga a taxa a que se refere o artigo 192º, primeira parte, do CCJ, o Juiz declarou sem efeito o recurso, estribado neste mesmo preceito.
Não se conformando com tal despacho, o arguido apresentou uma reclamação para o Presidente do STJ, com base no preceituado no artigo 405º do Código de Processo Penal (CPP), pretendendo a revogação do despacho reclamado com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 192º do CCJ em que se baseara o despacho. A reclamação veio a ser indeferida, nos termos da decisão recorrida, acima transcrita, e uma aclaração no sentido de transformar a reclamação em recurso bem como uma reclamação de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão veio a ser indeferida por intempestiva.
Vejamos.
Ao Tribunal Constitucional compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, pelo que lhe está vedado sindicar as qualificações jurídico-factuais feitas em sede de aplicação do direito ordinário. Desta forma, a decisão do Presidente do STJ sobre a existência, no caso, de um erro na forma de impugnação do despacho que declarou sem efeito o recurso do arguido é totalmente insindicável por este Tribunal.
Assim, o Tribunal Constitucional apenas poderia apreciar a questão suscitada na reclamação pelo arguido relativamente à conformidade constitucional da interpretação feita na decisão de primeira instância do artigo
192º do CCJ, na parte respeitante ao efeito cominatório da falta de pagamento, em processo penal, da taxa de justiça prevista naquele preceito.
Com efeito, a referência feita no requerimento de interposição do recurso ao artigo 513º do Código de Processo Penal, não faz qualquer sentido, porquanto a responsabilidade do arguido por imposto de justiça aí referida nada tem que ver com a exigência do pagamento da taxa de justiça que é condição de recebimento do recurso interposto de sentença condenatória na primeira instância, mas apenas com o decaimento em qualquer recurso ou incidente. A norma do artigo 513º do CP não foi manifestamente aplicada na decisão recorrida.
O recurso para este Tribunal vem levantado com fundamento no disposto no artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (cf. Ponto IV) do requerimento de fls. 217), que determina caber recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora este Tribunal vem entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o significado desta expressão «durante o processo» deve ser considerado, não num sentido formal - de modo que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até à extinção da instância -, mas antes, num sentido funcional - permitindo que tal suscitação seja feita num momento em que o tribunal «a quo» ainda possa conhecer da questão, isto é, antes de se ter esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria. Porém, este entendimento pode ser afastado em casos excepcionais em que ainda deva ser garantido ao recorrente o direito ao recurso de constitucionalidade (v.g., quando não tenha tido antes oportunidade processual para o fazer).
É também condição de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) referida, a aplicabilidade da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.
Acresce ainda que o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, de tal modo que sempre que a decisão a proferir nesta matéria seja irrelevante ou não possa vir a ter qualquer repercussão na decisão a proferir sobre o julgamento da causa, se tem entendido que não pode conhecer-se do recurso de constitucionalidade.
Com efeito, um dos requisitos objectivos do recurso de constitucionalidade é a relevância da questão da inconstitucionalidade: só no caso de a norma aplicada, não obstante a suspeita de violação da Constituição que sobre ela foi levantada (ou desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade) ser relevante para a decisão da causa (isto é, só se tal norma for decisiva para o julgamento do mérito pelo tribunal recorrido) é que se justifica a pronúncia do Tribunal Constitucional, pois só então a decisão que este Tribunal vier a proferir se virá a projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo, que cabe ao tribunal da causa, desempenhando, assim, o recurso de constitucionalidade uma função instrumental, do que resulta que só deve conhecer-se de tais questões se essa decisão puder influir relevantemente na decisão da questão que «de meritis» compete ao juiz da causa (veja-se, neste sentido e por todos, o Acórdão nº169/92, in Diário da República, de 18 de Setembro de 1992).
5. - No caso em apreço, invocando a decisão recorrida em duas diferentes ordens de argumentação - o erro na forma de processo e a natureza cominatória do não pagamento da taxa de justiça do artigo 192º do CCJ - respeitando a questão de constitucionalidade apenas a esta questão do artigo
192º, é manifesto que a sua eventual procedência (que parece indiscutível face à jurisprudência que vem citada pelo Ministério Público nas suas alegações) não teria qualquer eficácia relativamente à decisão recorrida, pois mesmo que quanto a esse fundamento (do artigo 192º) a decisão tivesse de ser reformulada, sempre se manteria de pé o outro fundamento (o erro na forma de processo) cuja procedência implica a manutenção do despacho inicialmente proferido de declarar sem efeito o recurso interposto pelo arguido.
Aliás, uma análise da estrutura da decisão recorrida mostra, com bastante nitidez, que o indeferimento da reclamação resultou da mera aplicação do disposto no artigo 405º do Código de Processo Penal, que não prevê reclamação de despacho que tenha dado sem efeito a interposição do recurso por não pagamento da taxa de justiça. Por essa razão, nela se entendeu que no caso teria cabido recurso ordinário, a interpôr nos termos dos artigos 399º e 410º do Código de Processo Penal. A referência que nela acaba por se fazer ao artigo
192º do Código das Custas, que efectivamente já foi julgado inconstitucional por este Tribunal (cfr.Acórdãos nºs 575/96 e 169/97, in DR, II S., de 19 de Julho de
1996 e 19 de Abril de 1997, respectivamente) acaba por não ser mais do que um obiter dictum que visa não deixar sem resposta a argumentação que o reclamante oferecera a propósito desta norma, que acabou por não ser aplicada na decisão, no sentido de constituir a respectiva ratio decidendi. Será legítimo inferir dos termos do processo que a decisão seria bem diferente, e de sentido inverso, caso o recorrente tivesse lançado mão do meio processual próprio - o recurso ordinário - e nele tivesse questionado a conformidade com a Constituição desse artigo 192º do Código das Custas Judiciais.
Por estas razões, não pode deixar de proceder a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, não se conhecendo do recurso de constitucionalidade.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC's.
Lisboa, 20 de Maio de 1997 Vítor Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa