Imprimir acórdão
Proc. n.º 762/2000 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. A..., SA. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 41º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas
(Código do IRC), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, e que foi considerada interpretativa pelo artigo 28º, n.º 7, da mesma Lei n.º 10-B/96.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea g) do n.° 1 do artigo
70° da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na aplicação, pelo tribunal então recorrido (o Supremo Tribunal Administrativo), de norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 172/00, da
2ª Secção.
Este Tribunal, através do Acórdão n.° 306/2001 (fls. 148 a 160), julgou o recurso, tendo concluído pela não inconstitucionalidade da norma em causa.
2. Notificado deste Acórdão, A ..., SA. veio dele interpor recurso para o Plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79°-D da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que a decisão proferida nos autos tem sentido divergente da que consta do Acórdão n.° 172/00 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 247, de 25 de Outubro de 2000, p. 17335 ss), em que o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade da referida norma, com fundamento em violação do disposto no n.º 3 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa (na redacção que resulta da Revisão Constitucional aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de
20 de Setembro).
O recurso foi admitido, uma vez que se verifica a invocada divergência jurisprudencial (despacho de fls. 164).
A recorrente A ..., SA. apresentou alegações (fls. 165 a 172), tendo formulado, entre outras, as seguintes conclusões:
'1. A recorrente deduziu junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, impugnação judicial contra a autoliquidação de IRC do exercício de 1992, no que se refere à não consideração, como custo do exercício, do valor da derrama autoliquidada e paga.
2. O Tribunal de 1ª Instância de Lisboa, por sentença de 9 de Fevereiro de 2000, julgou a impugnação improcedente. Para tanto, fez aplicação do artigo 41, n.º 1, alínea a), do CIRC, na redacção do artigo 28° da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, que, nos termos do n.º 7 do mesmo artigo, tem natureza interpretativa, considerando, consequentemente, «... que a derrama, enquanto imposto acessório do imposto principal IRC e configurando ele próprio um verdadeiro imposto sobre os lucros, não é de considerar custo fiscal dedutível da matéria colectável».
3. Inconformada com essa decisão a ora recorrente interpôs recurso da referida sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo defendido nas suas alegações a aplicação da versão originária do artigo 41°, n.º 1, alínea a), do CIRC, que permitia que a derrama fosse considerada custo para efeitos de IRC, sustentando que, caso se considerasse aplicável à situação dos autos aquele preceito na redacção conferida pelo artigo 28° da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, o que aliás se entendeu na sentença recorrida, o mesmo revelar-se-ia inconstitucional, por violação do princípio da não retroactividade das leis fiscais, designadamente nos termos dos artigos 18°, 103° e 106° da CRP.
4. O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 25 de Novembro de 2000, negou provimento ao recurso, fazendo aplicação do artigo 41º, n.º 1, alínea a), do CIRC, na redacção dada pelo artigo 28° da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, à qual é conferida natureza interpretativa pelo n.º 7 desse mesmo artigo.
[...]
7. Inconformado com [as] decisões [do Supremo Tribunal Administrativo], interpôs a ora recorrente recurso para este Venerando Tribunal Constitucional [...].
[...]
8. Por intermédio do Acórdão n.º 306/01, de 27 de Junho, proferido nos presentes autos, o Venerando Tribunal Constitucional, embora reconheça que: a) a questão sub judice reporta-se à não consideração como custo do exercício de
1992 do valor da derrama autoliquidada e paga pela recorrente; b) a norma cuja questão de inconstitucionalidade se submete a julgamento é a do artigo 41º, n.º 1, al. a), do CIRC, na redacção do n.º 1 do artigo 8º da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, que o n.º 7 da mesma disposição legal considerou como interpretativa; c) a norma em apreço foi aplicada quer pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância, quer pelo Supremo Tribunal Administrativo após a entrada em vigor do novo texto constitucional (5 de Outubro de 1997), no qual se consagrou expressamente, no n.º 3 do artigo 103º, o princípio da irretroactividade da lei fiscal, decidiu negar provimento ao recurso da ora recorrente, concluindo, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 41º, n.º 1, al. a), do CIRC, na redacção do n.º 1 do artigo 8º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, que o n.º
7 da mesma disposição legal considerou como interpretativa.
9. Ora, o douto Acórdão ora recorrido (306/01) julgou a questão da inconstitucionalidade da norma em apreço em sentido manifestamente divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma pelo Acórdão 172/00 [...].
10. Com efeito, este douto Acórdão (172/00), perante uma situação em tudo análoga, ou seja: d) a questão sub judice reportava-se à não consideração como custo do valor da derrama devida em exercício anterior ao ano da entrada em vigor do novo texto constitucional (1997), que passou a consagrar expressamente o princípio da irretroactividade da lei fiscal; e) a norma cuja questão de inconstitucionalidade se submetia a julgamento era também a do artigo 41º, n.º 1, al. a), do CIRC, na redacção do n.º 1 do artigo
28º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, que o n.º 7 da mesma disposição legal considerou como interpretativa; f) a norma em apreço também tinha sido aplicada pelos tribunais em data posterior à da entrada em vigor do novo texto constitucional (5 de Outubro de
1997), veio a considerar inconstitucional aquela norma quando aplicada pelos tribunais em data posterior ao da entrada em vigor do novo texto constitucional (5 de Outubro de 1997).
11. Deste modo, deve concluir-se que o Acórdão ora recorrido (306/01) julgou a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 41º, n.º 1, al. a), do CIRC, na redacção do n.º 1 do artigo 8º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, que o n.º
7 da mesma disposição legal considerou como interpretativa, em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma no Acórdão 172/00.
[...].'
A recorrida Fazenda Pública concluiu como segue a sua alegação:
'[...] louvando-se na jurisprudência dominante desse Venerando Tribunal, designadamente o douto Acórdão de 8 de Maio de 2001, proferido no recurso n.º 584/00 [trata-se do Acórdão n.º 193/2001, tirado na 1ª Secção do Tribunal Constitucional], considera que o douto Acórdão recorrido acolheu a melhor interpretação de qual a exacta dimensão do princípio da não retroactividade tal como vem expresso no artigo 103º, n.º 3, da CRP, devendo prevalecer o entendimento de que «ocorrendo os pressupostos de facto da obrigação do imposto muito antes da revisão de 97 – sendo embora posterior o acórdão recorrido – o parâmetro de constitucionalidade será o texto constitucional anterior à revisão de 97»'.
Cumpre decidir. II
3. A norma que constitui o objecto do presente recurso, e que foi aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo na decisão de que foi interposto o recurso de constitucionalidade, é a que consta do artigo 41º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redacção introduzida pelo artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, e que, por força do n.º 7 do mesmo artigo, foi considerada de natureza interpretativa.
A norma do artigo 41º, n.º 1, alínea a), estabelecia, na sua primitiva redacção, o seguinte:
'Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas do exercício: a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), incluindo as importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta.
[...]'. Na redacção que lhe foi dada pelo artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º 10-B/96, passou a dispor:
'Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas do exercício: a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros.
[...]'.
Na perspectiva da recorrente, tal norma é inconstitucional, por, em seu entender, violar o 'princípio da irretroactividade da lei fiscal' consagrado no n.º 3 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa (na redacção que resulta da Revisão Constitucional aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de
20 de Setembro).
4. Ora, adiante-se desde já, a decisão de não inconstitucionalidade da norma impugnada, contida no acórdão recorrido, não merece censura, tendo em conta a jurisprudência já firmada pelo Tribunal Constitucional.
No acórdão recorrido (o acórdão n.º 306/2001), o Tribunal resumiu assim a jurisprudência anterior sobre esta matéria:
'Foram já proferidas por este Tribunal Constitucional, relativamente a esta matéria, várias decisões podendo citar-se os Acórdãos n.ºs 275/98 – em que se fez a história da controvérsia jurisprudencial a que a norma agora questionada procurou pôr termo (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39º vol., p. 597) –, 540/98 (inédito), 620/98 (in Diário da República, II Série, de
18 de Março de 1999), 689/98 (inédito), 193/01 (inédito), cujas decisões foram de não inconstitucionalidade e o Acórdão n.º 172/00 (in Diário da República, II Série, de 25 de Outubro de 2000), que, como ficou atrás referido, formulou um juízo de inconstitucionalidade.
As soluções – como se escreveu no Acórdão n.º 193/01 – não são contraditórias: a diferença entre os quatro primeiros arestos e o último residiu tão-só no parâmetro de constitucionalidade por que a norma foi aferida. Nos primeiros, a norma foi confrontada com a versão da Constituição anterior à revisão de 97; no último, com a Constituição na versão decorrente da revisão de
1997.'
Seguidamente, o Tribunal explicou a divergência de soluções adoptadas nas decisões antes citadas, utilizando as palavras do já mencionado Acórdão n.º
193/01:
'Daí resultou que, nos quatro primeiros acórdãos, não estando ainda constitucionalmente consagrado o princípio da não retroactividade da lei fiscal no momento da aplicação judicial da norma – e muito embora se reconhecesse que a ausência de tal princípio não determinasse, só por si, a constitucionalidade da norma e se admitisse, em certos casos, a violação do princípio da confiança
(designadamente, quando a lei impõe «a retroactividade em termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes» – Acórdão n.º 408/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., t. II, p.
1176, devendo ela ser qualificada como arbitrária, intolerável, ou opressiva) – se tivesse entendido que a retroactividade decorrente da adopção de uma lei interpretativa, não tivesse, no caso, violado de forma intolerável ou chocante as expectativas dos contribuintes e, no último, se julgasse a norma inconstitucional por violação do artigo 103º n.º 3 da CRP. Este critério entronca, aparentemente, numa jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional sobre a aplicação da lei constitucional no tempo. Disso nos dá conta o recente Acórdão n.º 556/2000, in DR, II Série, de 6/2/01, onde se escreveu:
«Constitui jurisprudência corrente que, quando estão em causa normas constitucionais de competência, forma ou de procedimento – que relevam em termos de inconstitucionalidade orgânica ou formal –, o princípio a observar é o do tempus regit actum, ou seja, a competência e a forma dos actos normativos devem aferir-se pelas normas constitucionais vigentes no momento da sua produção. Quando se trate de apurar a existência de contradição entre o conteúdo de uma norma de direito ordinário e o conteúdo normativo da Constituição – configurando-se um problema de inconstitucionalidade material (como é o caso dos autos) –, observou-se em jurisprudência deste Tribunal que se há-de atender, designadamente, ‘às normas e princípios constitucionais resultantes de uma revisão constitucional posterior a essas normas infraconstitucionais, as quais, por virtude dessa revisão, podem tornar-se supervenientemente inconstitucionais’
(assim, os acórdãos n.ºs 408/89 e 597/99, publicados no Diário da República, II Série, de 30 de Janeiro de 1990 e 24 de Fevereiro de 2000, respectivamente). Neste sentido jurisprudencial, as normas ou princípios constitucionais a ter em conta são, em regra, os que estiverem em vigor no momento em que esse confronto houver de ser feito. É assim que, no Acórdão n.º 408/89, se refere que:
‘...enquanto a inconstitucionalidade formal e a orgânica nascem com as normas e jamais as abandonam (mas também não podem sobrevir-lhes a posteriori), a inconstitucionalidade material existe ou deixa de existir no decurso da vigência temporária de uma norma, de acordo com o parâmetro constitucional vigente em cada momento’. E, concluiu-se neste aresto, ‘quando esteja em causa a inconstitucionalidade material, o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada’». Cabe, desde já, assinalar que o citado Acórdão n.º 172/00 formulou o seu juízo de inconstitucionalidade sem ter afrontado a questão de saber qual a exacta dimensão do princípio da não retroactividade tal como vem expresso no artigo
103º n.º 3 da CRP («Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos [...] que tenha natureza retroactiva»), em especial quanto a saber se nele se compreendem leis verdadeiramente interpretativas relativas a um elemento essencial do imposto. Crê-se, contudo, que, também aqui, se torna desnecessário tomar posição sobre uma tal questão, no ponto em que, no caso, ocorrendo os pressupostos de facto da obrigação do imposto muito antes da revisão constitucional de 97 – sendo embora posterior o acórdão recorrido – o parâmetro de constitucionalidade será o texto constitucional anterior à revisão de 97. A tese que fez vencimento no Acórdão n.º 172/00 deixa a descoberto uma incontornável consequência: a diferença de tratamento de situações tributárias contemporâneas pela única razão de as (últimas) decisões judiciais – nem já sequer a liquidação do imposto – que se pronunciam sobre a legalidade do imposto ocorrerem em momentos diversos. Diferença que, precisamente, o princípio da não retroactividade da lei fiscal repudia (sendo uma das suas mais sólidas razões fundantes) e é aqui fruto de um facto meramente aleatório. A verdade é que a questão da aplicação da lei constitucional no tempo não pode dissociar-se quer do princípio geral da não retroactividade a que a Constituição não abre excepção para os seus princípios e normas quer do tipo de situações em causa e da natureza desses mesmos princípios e normas e dos sectores do ordenamento jurídico a que especificamente respeitam. Não pode, com efeito, esquecer-se que, p. ex., no contencioso administrativo, a intervenção judicial se faz para apreciação da legalidade de uma decisão da Administração que foi produzida num determinado momento e no quadro de um ordenamento jurídico então vigente, de acordo com o princípio, assente pacificamente, do tempus regit actum. Não há, assim e em regra, qualquer razão para os princípios e normas constitucionais especificamente reguladoras desse contencioso se não regerem quanto à sua aplicação no tempo pelas mesmas regras que disciplinam o direito administrativo infraconstitucional. E se se diz em regra é porque se não rejeita que, em situações de ruptura constitucional, os novos princípios ou normas adquiram uma força vinculante que se projecte para o passado. No caso em apreço, está em causa a legalidade de um imposto cuja aferição se há-de reportar ao momento em que se verificaram os respectivos pressupostos de facto, como é comummente aceite na doutrina e na jurisprudência (cfr., por todos, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, pp. 215 e segs.); e, por outro lado, a norma constitucional introduzida pela revisão de 97 que seria convocável para aferir da constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso pertence ao que, na declaração de voto proferida no Acórdão n.º 172/2000 pelo Presidente deste Tribunal, se qualifica de «Constituição fiscal», devendo estar sujeita ao mesmo princípio de aplicação da lei fiscal no tempo.
[...].'
As considerações e as conclusões que constam, quer do Acórdão n.º
193/2001, quer do Acórdão n.º 306/2001, quanto ao parâmetro de constitucionalidade a adoptar no tratamento da questão suscitada nos autos, reiteram a mencionada declaração de voto aposta pelo Conselheiro Presidente deste Tribunal no Acórdão n.º 172/2000 – o acórdão em que, por maioria, se decidiu em sentido divergente ao do acórdão ora recorrido.
É essa declaração de voto que agora se transcreve:
'[...] Ora, a respeito desse ponto, tudo está em que ele tem a ver ou se perfila como um problema de aplicação da Constituição no tempo, e em que é meu entendimento que um tal problema não só há-de equacionar-se nos mesmos moldes, como há-de obedecer, na sua solução, a princípios, e aos critérios estruturais em que estes se plasmam, idênticos ou semelhantes aos que regem para o problema da aplicação da lei no tempo. Pois bem: desde logo se contando entre esses princípios, como princípio-regra, o da não retroactividade - isto é, o de que as leis só valem, em princípio, para o futuro - , também desde logo o mesmo princípio se aplicará às normas constitucionais. E, que assim é, evidencia-o o próprio texto da Constituição portuguesa de 1976, no n.º 2 do seu artigo 282º - cujo alcance, a esse respeito, se afigura inequívoco. Face a este texto, na verdade, bem se deverá concluir que uma aplicação «retroactiva» da lei fundamental há-de ser excepcional e apenas ocorrer em situações ou domínios específicos, por força de normas ou princípios também específicos dela (esse poderá ser, paradigmaticamente, o caso do domínio penal, quando aí caiba aplicar o princípio consignado na parte final do artigo
29º, n.º 4, ainda da Constituição). Como regra, as normas constitucionais e suas alterações não se aplicarão retroactivamente. Entretanto, da regra da não retroactividade já emerge que o momento determinante para a escolha da lei aplicável (quando duas leis se sucedam e conflituam no tempo) não é necessária e automaticamente o da decisão judicial (de uma qualquer decisão judicial) do caso, em termos de este dever ser resolvido de harmonia com a lei então em vigor; e se essa regra, de todo o modo, consente que em muitas situações seja assim (isto é, que se aplique a norma vigente no momento da decisão), a verdade é que, a tal respeito, tudo dependerá da matéria e do tipo de situações em presença, e dos critérios estruturais, postulados pela mesma regra (e desenvolvidos a partir dela), aplicáveis justamente a cada matéria e situação típica. Dai que segundo a premissa inicial de que parto - também estes mesmos critérios hajam de observar-se quando, numa dada situação concreta, importe determinar o padrão constitucional relevante. Ora, em matéria fiscal, e no tocante a normas «substantivas» de tal domínio jurídico, o critério aplicável é o de que sob o império de tais normas caem as situações (só elas, mas todas elas) cujo facto gerador (o «facto gerador» ou o
«pressuposto de facto» da imposição) tenha ocorrido durante a sua vigência - sendo o momento ou a época desse facto, ou pressuposto, pois, o decisivo, para a escolha da lei aplicável ratione temporis (e não, seguramente, o da aplicação administrativa ou judicial da lei). É esta a doutrina indiscutida, em toda a parte (entre nós, v., classicamente, Oliveira Salazar, «Da não retroactividade dos impostos», no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. IX, p.87 ss.): impõe-na razões de segurança jurídica, mas também razões de igualdade (a que alguns chegam, aliás, a atribuir a primazia); por outro lado, é a que corresponde ao critério, tido como de âmbito geral, plasmado no artigo 12º do Código Civil (cfr. J.M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., 1972, p. 231 ss.); e, por último, é (salvo alguma rara voz discordante) uma doutrina que cumprirá aplicar ainda quando a lei fiscal «nova» seja de conteúdo mais favorável ao contribuinte (quanto a este preciso aspecto, v., decididamente, Teixeira Ribeiro, «Anotação», na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
106º, p. 74 s.). Mas, se é assim, então - uma vez que os critérios estruturais de resolução do problema da aplicação no tempo de normas constitucionais e de normas legais não hão-de diferir entre si - os mesmos princípios acabados de referir valerão também para a determinação das normas ou princípios da «Constituição fiscal» relevantes numa dada situação tributária. O que significa que também essas normas e princípios constitucionais outros não poderão ser senão os vigentes à data em que ocorreu o «facto gerador» dessa situação Posto isto, torna-se claro que a norma constitucional em que expressamente passou a consignar-se, em termos genéricos, o princípio da proibição da retroactividade dos impostos, introduzida em 1997, só pode valer para eventuais normas tributárias retroactivas «futuras», isto é, emitidas e entradas em vigor após essa revisão da Constituição, e não para as que o hajam sido antes. É que, no tocante à «dimensão retroactiva» de uma norma tributária - quer dizer, à sua aplicação a situações anteriores ao início da sua vigência – o «facto gerador» da imposição ocorre no momento da sua mesma entrada em vigor, pois é esta
última, na verdade, que, conjugada com essas situações ou factos anteriores, gera a obrigação de imposto. Por consequência, e de acordo com o antecedentemente exposto, é à luz da «Constituição» então vigente que caberá apurar da admissibilidade e legitimidade de uma tal dimensão normativa. Fazê-lo
à luz de uma «Constituição» ulterior (v.g., a vigente no momento da apreciação ou reapreciação contenciosa da legalidade da liquidação do imposto) equivalerá a conferir a essa nova «Constituição» eficácia retroactiva - o que é, como se disse, contrário ao princípio-regra básico da aplicação da Constituição no tempo. Assim sendo, claro é também que a questão da legitimidade constitucional da norma do n.º 7 do artigo 28º da Lei n.º 10-B/96 - a qual, ao qualificar como
«interpretativa» a nova redacção dada pelo n.º 1 desse mesmo artigo ao preceito da alínea a) do n.º 1 do artigo 41º do Código do IRC, confere a essa nova redacção eficácia retroactiva - nunca haverá de ser aferida e decidida por referência ao que actualmente se consigna, de modo expresso, na parte final do artigo 103º, n.º 3, da Constituição, mas sempre (e independentemente do momento em que ocorra a aplicação administrativa ou judicial dessa norma) por referência ao que antes (antes da revisão de 1997) se entendia ser o parâmetro constitucional a considerar em matéria de normas fiscais retroactivas. Eis por que discordei - e, desta vez, com grande força de convicção - da orientação que vez vencimento no precedente acórdão. Resta-me, todavia, aduzir duas notas complementares. A primeira será para destacar a possibilidade de o ponto de vista que ora perfilho encontrar afinal ainda algum arrimo, contra todas as aparências, no próprio Acórdão n.º 408/89 (a matriz de onde arranca a solução que veio a prevalecer), em certas suas passagens. Mas certamente o não encontra na fórmula-chave desse aresto - a do relevo, para a decisão das questões de inconstitucionalidade «material», das normas ou princípios constitucionais «que estiverem em vigor no momento em que esse confronto [o confronto da lei com a Constituição] houver de ser feito» - , esclarecido, como depois se esclarece, que tal momento é o da «aplicação da norma que é questionada». O que justamente entendo é que não basta recorrer à distinção entre os diferentes tipos de vícios de inconstitucionalidade, conjugada com a regra tempus regit actum, para delimitar o âmbito de aplicação de duas normas constitucionais que se sucedem no tempo, e decidir sobre qual delas será a aplicável na espécie: penso antes, pelas razões que atrás expendi, que ainda situações de eventual inconstitucionalidade «material» haverá que devem ser apreciadas à luz da
«Constituição» do tempo em que a norma legal questionada entrou a vigorar.
[...].'
5. Tendo em consideração a orientação exposta, reafirma-se que, estando em causa no presente processo uma impugnação judicial relativa a um facto tributável respeitante ao exercício de 1992 – e, por conseguinte, muito anterior a 1997 –, o parâmetro de constitucionalidade a ter em conta tem de ser o texto constitucional em vigor antes da Revisão de 1997, ou seja, o mesmo que serviu de parâmetro aos acórdãos deste Tribunal em que se concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
Admitido este condicionalismo, há apenas que reiterar aqui os fundamentos constantes da referida jurisprudência, e, consequentemente, concluir, tal como no acórdão recorrido, pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 41º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento Colectivo (CIRC), na redacção dada pelo n.º 1 do artigo 28º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, e que o n.º 7 desta disposição legal considerou interpretativa.
Sublinhe-se, a terminar, que as questões suscitadas pela recorrente para fundamentar a inconstitucionalidade pela violação do princípio da confiança não podem proceder, não só pelas razões assinaladas nos Acórdãos transcritos, mas ainda pela circunstância de a interpretação atribuída pelo artigo 28º, n.º
7, da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, à norma impugnada corresponder a um dos sentidos possíveis da norma, e portanto a um sentido com que os operadores económicos podiam e deviam razoavelmente contar.
III
6. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
41º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, e que foi considerada interpretativa pelo artigo 28º, n.º 7, da mesma Lei n.º 10-B/96; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando o Acórdão n.° 306/2001, proferido nestes autos, que, por sua vez, confirmara o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, quanto à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 5 de Março de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Fernanda Palma (vencida pelas razões que, no essencial, fundamentaram a decisão do Tribunal Constitucional no Acórdão nº 172/2000, da qual fui Relatora). Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Consª. Maria Fernanda Palma) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto Votei vencido por entender que o parâmetro constitucional pelo qual a constitucionalidade material da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março devia ter sido aferido era, nas palavras do Acórdão n.º 408/89, o das normas constitucionais que estão em vigor no momento 'da aplicação da norma que é questionada' – não pelo Tribunal Constitucional (cuja intervenção, em sede de recurso, visa reapreciar uma decisão sobre a questão de constitucionalidade), mas pelo tribunal recorrido. Julgo que tal orientação esteve, também, subjacente a outras decisões deste Tribunal em que se excluiu a aplicação, ao mesmo diploma, do parâmetro constitucional posterior a 1997, pois que nelas (veja-se logo o Acórdão n.º 275/98) se invocava o facto de o tribunal recorrido ter ainda decidido no âmbito do texto constitucional anterior à IV revisão constitucional. Seja, porém, como for quanto a esta última questão, entendo que a orientação adoptada na presente decisão contraria a regra da aplicação imediata das normas constitucionais, que é de aceitar se o legislador constitucional não dispuser em contrário, e, desde logo, exclui toda a inconstitucionalidade material por violação de uma proibição superveniente de retroactividade da lei. A meu ver, está, porém, fora de questão que o diploma de 1996, na sua específica dimensão retroactiva, não foi aplicado apenas (não esgotou a sua aplicação) no momento da sua entrada em vigor, tendo sido, e continuando a ser, nessa dimensão, aplicado depois daquele momento, e, designadamente, também depois da entrada em vigor da proibição constitucional de retroactividade. A circunstância de o 'facto gerador' – quer se situe no ano a que diz respeito o imposto, quer, quanto à dimensão retroactiva da norma, no momento em que esta entrou em vigor – ter ocorrido antes da entrada em vigor da IV revisão constitucional não permite, pois, só por si, afirmar que a aplicação do texto constitucional resultante desta IV revisão seria uma aplicação retroactiva. Trata-se, antes, de aplicação imediata da proibição constitucional de retroactividade às normas existentes no ordenamento jurídico, as quais – como aconteceu no presente caso – continuam, na sua dimensão retroactiva, a ser aplicadas depois de essa norma constitucional estar em vigor. Julgo, pois, que a equiparação das regras de aplicação das normas constitucionais no tempo às regras de aplicação da lei no tempo, de que parte a presente decisão, não tem na devida conta o facto de aquelas normas constitucionais serem aqui consideradas como critério de validade de normas jurídicas, que continuam a ser aplicadas posteriormente à entrada em vigor do novo texto constitucional, mesmo que dizendo respeito a situações jurídicas anteriores. Na falta de ressalva expressa do legislador constitucional, entendo que tal aplicação imediata conduziria, neste caso, ao reconhecimento de inconstitucionalidade material superveniente, estando os tribunais impedidos de continuar a aplicar normas fiscais (mesmo anteriores) retroactivas, que a Constituição não admite. Paulo Mota Pinto