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Proc. nº 86/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. F.O., T. O. e P. O. interpuseram, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação do despacho da Directora do Departamento de Conservação de Edifícios e Obras Diversas da Câmara Municipal de Lisboa, de
27 de Agosto de 1993, o qual ordenou o despejo da fracção por eles ocupada, correspondente ao 5º Dtº do prédio situado na Rua..., nº... em Lisboa. Invocaram os recorrentes que o acto recorrido enfermava do vício de violação de lei - por ter efectuado errada interpretação e aplicação do Decreto-Lei nº 329/81, de 4 de Dezembro -, de vício de forma - por falta de fundamentação - e do vício de incompetência - por não ter sido praticado pela Câmara enquanto órgão colegial. A entidade recorrida defendeu-se por excepção, invocando a impossibilidade superveniente da lide com fundamento no «vício de incompetência» de que enfermava o acto recorrido, pois que, embora o mesmo tivesse sido praticado sem poderes, fora posteriormente ratificado e substituído pelo despacho de 12 de Abril de 1994 do então Vereador Dr. João Soares, o que determinaria a perda de objecto do recurso contencioso. Defendeu-se ainda por impugnação. Na sua resposta, os recorrentes alegaram que a ratificação do acto ocorrera extemporaneamente, além de que o acto recorrido padecia de outros vícios além do da alegada incompetência, nomeadamente do de usurpação de poder, por só aos tribunais ser legítimo decretar despejos, suscitando, nesse âmbito, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 165º do RGEU, por ofensa do princípio constitucional da reserva de juiz, que continuaram a suscitar nas suas alegações.
2. Por sentença de 16 de Novembro de 1994, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, declarando procedente aquela questão prévia de impossibilidade superveniente da lide, julgou extinta a instância e prejudicado o conhecimento do recurso, nos termos do artigo 287º, alínea e), do CPC, ex vi do artigo 1º da LPTA.. Inconformados, os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo. E, nas suas alegações, suscitaram novamente a questão da inconstitucionalidade do artigo 165º do RGEU «por estar subtraído às Câmaras Municipais o poder de ordenar despejos».
3. Pelo seu acórdão de 30 de Novembro de 1995, o STA negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Como questão que, a proceder, acarretaria a nuli-dade do acto recorrido - o despacho de 27 de Agosto de 1993 -, em termos de inviabilizar a sua posterior ratificação, o STA conheceu do alegado vício de usurpação de poder, concluindo que o mesmo se não verificava. Como se pode ler no acórdão recorrido: Estamos, pois, perante um despejo administrativo. E, contrariamente ao que invocam os recorrentes, a autoridade recorrida, ao praticar tal acto, fê-lo no exercício da função administrativa situada no âmbito das atribuições que a lei confere aos municípios, não se inserindo tal acto na função judicial nem sendo acto jurisdicional, mas antes um acto administrativo. Trata-se da questão já versada entre outros, nos acórdãos desta Secção de
23.6.88, in AD 328 - 440 e de 31.5.94, in Rec. nº 34.72, a cuja fundamentação se adere e que, por isso, nos dispensamos aqui de repetir. Mas sempre se dirá que, ao decretar o despejo, a autoridade administrativa em causa não teve por fim dirimir qualquer conflito de interesses suscitado entre locador e locatário, ou pronunciar-se sobre a resolução de contrato de arrendamento, ou respectivos efeitos ou validade deste, visando a realização do direito e da justiça, mas antes e apenas visou realizar directamente o interesse público acautelado pelo citado normativo e cuja prossecução a lei pôs a cargo dos municípios: salubridade, segurança e adequação dos locais ao exercício das diferentes actividades. E, considerando que a decisão recorrida fizera correcta interpretação e aplicação do artigo 51º, nº 2, da LPTA, aquele aresto confirmou a decisão do TAC: extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.
É desse acórdão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, por aquele «violar os artºs 13º, 266º e
205º, todos da Constituição da República, - princípio da igualdade e da reserva do juiz -, na interpretação e aplicação que fez das normas do DL 329/81, de 4 de Dezembro e do artº 165º do RGEU».
4. Já neste Tribunal, foram deduzidas alegações por recorrentes e recorrida. Nessas alegações, os recorrentes sustentaram a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 165º, § 4º, do RGEU, por violação do princípio constitucional da reserva do juiz, expresso no artigo 205º da CRP, e ainda dos princípios da igualdade - artigo 13º - e da propriedade privada - artigo 62º. E fizeram-no pela forma seguinte:
Efectivamente, só aos Tribunais Judiciais está conferido o poder de decretar despejos. Aliás, pela Resolução nº 14/78, de 11 de Janeiro, publicada no D.R., I Série, de
30.1.78, foi declarada a inconstitucionalidade do artº 109º, nº 4 e § único, do Código Administrativo, por violação dos artº.s 205º e 206º da Constituição. Assim, por maioria de razão, é inconstitucional o artº 165º do RGEU, por estar subtraído às Câmaras Municipais o poder de ordenar despejos. Por outro lado, mostram-se violados os principios da igualdade, legalidade, justiça e proporcionalidade. Efectivamente, os recorrentes são proprietários da fracção autónoma, correspondente ao 5º andar direito, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua..., Nº..., em Lisboa. Não são, pois, os recorrentes, abusivos ocupantes daquela fracção.[...] Não se concebe, por isso, que, estando o prédio arrendado para comércio, indústria ou profissão liberal antes de 1981, em desconformidade com a licença de utilização, visse tal situação legalizada e o mesmo não ocorresse, em situação de utilização idêntica, só porque o prédio não estava arrendado, mas era usufruído pelo seu proprietário. Na verdade, o artº 62º da Constituição estabelece que a todos é garantido o direito à propriedade privada, isto é, o direito de propriedade é constitucionalmente protegido enquanto poder conferido ao seu titular de usar, fruir e dispor, de modo pleno e exclusivo, dos bens sobre os quais tal direito concretamente incide (artº 1305º do C.C.). Cabe, pois, aos respectivos proprietários decidir sobre o sentido da sua utilização.
E formulam as seguintes conclusões:
1- O artº 165º, § 4º do RGEU é inconstitucional por, apenas, caber aos Tribunais o poder de ordenar despejos.
2- Por isso, aos Tribunais está vedada a aplicação daquele normativo, por o mesmo violar o principio da reserva do Juiz.
[...]
6- O Acórdão recorrido viola os artº.s 13º, 62º, 205º e 266º, todos da C.R.P.
(principios da igualdade e da reserva do Juiz), na interpretação e aplicação que fez das normas do DL 329/81, de 4 de Dezembro e do artº 165º do R.G.E.U.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. Importa, antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso. A Constituição da República e a Lei do Tribunal Constitucional atribuem a este um controlo da constitucionalidade de normas jurídicas. Como flui do disposto nos artigos 280º, nº 1, alíneas a) e b), e nº 5, da Constituição, e dos artigos 70º, nº 1, e 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade há-de interpor-se de decisões judiciais que apliquem norma jurídica cuja inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo, ou que desapliquem determinada norma jurídica com fundamento na sua inconstitucionalidade. Quanto à pretendida questão da inconstitucio-nalidade do indicado Decreto-Lei nº
329/81, só no requerimento de interposição do presente recurso suscitaram os recorrentes, pela primeira vez, a inconstitucionalidade do mesmo, o que vale por dizer-se que não o fizeram durante o processo, como lhes era exigido.
É que, suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, durante o processo, significa fazê-lo a tempo de o tribunal recorrido poder, e dever, conhecer dessa questão e pronunciar-se sobre a mesma, ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional respectivo.
É, pois, manifestamente extemporânea a suscitação da questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 329/81, de 4 de Dezembro, feita pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional: verifica--se, assim, a falta manifesta de um pressuposto essencial para o conhecimento, nessa parte, do presente recurso (artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional): os recorrentes não suscitaram durante o processo a questão de inconstitucionalidade de norma efectivamente aplicada pelo Tribunal recorrido.
Não se pode, pois, conhecer do recurso nessa parte.
6. Quanto á norma constante do artigo 165º, § 4º, do RGEU, suscitaram os recorrentes a sua inconstitucionalidade por três motivos, ou quanto a três dimensões da mesma: a) enquanto atribui à câmara competência para efectuar despejos, por ofensa do princípio constitucional de reserva de juiz; b) na dimensão em que permite o despejo, com fundamento no exercício de actividade em desconformidade com a licença de utilização, quando os ocupantes do prédio sejam os seus proprietários, por ofensa do princípio da propriedade; c) por fim, na medida em que, por força do Decreto-Lei nº 329/81, de 4 de Dezembro, foi permitido ou facultado aos ocupantes arrendatários, em idêntica situação de exercício de actividade em desconformidade com a respectiva licença, legalizar essas situações, não sendo facultada tal 'legalização' aos proprietários na mesma situação, verificar-se-
-ia uma violação do princípio da igualdade.
Este último aspecto refere-se, pois, a uma outra dimensão da norma, na parte em que permite o despejo dos ocupantes quando estes sejam os proprietários do local onde exercem aquela actividade, ao passo que, por força do referido Decreto-Lei, tal despejo já não seria possível no caso de tais ocupantes serem meros arrendatários.
7. No que diz respeito a esta duas últimas dimensões da norma, constata-se que não foram aplicadas pelo tribunal a quo, porque este apenas se pronunciou sobre a questão da competência da câmara, ou seja, apenas aplicou a norma em causa enquanto atributiva de competência à Câmara Municipal para efectuar despejos. A
única consequência que o acórdão recorrido extraiu da norma foi a de que as Câmaras Municipais detêm competência para ordenar despejos, para assim concluir que o acto não incorria no vício de usurpação de poder, e não decidiu nem apreciou as restantes dimensões da norma agora invocadas pelos recorrentes. Este Tribunal apenas pode conhecer da dimensão ou parte da norma que foi efectivamente aplicada, ou seja, in casu, na dimensão em que atribui competência
à câmara municipal para ordenar despejos. Assim se conclui, igualmente, pela falta de pressuposto para o pretendido recurso de constitucionalidade no tocante a estas dimensões da norma - a sua efectiva aplicação pela decisão recorrida -, delas não havendo, portanto, que conhecer no presente recurso.
8. A questão de inconstitucionalidade submetida a este Tribunal é, pois, a da norma constante do artigo 165º do RGEU, apenas na parte em que a mesma habilita as câmaras municipais a decretarem despejos, por ofensa do princípio constitucional da reserva de juiz, ou seja, o corpo do artigo e o seu § 4º, como, aliás, os recorrentes também acabaram por delimitar nas conclusões das respectivas alegações. Essa norma dispõe o seguinte: As câmaras municipais poderão ordenar, independentemente da aplicação das penalidades referidas nos artigos anteriores, a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1º a 7º, bem como o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas.
[...]
§ 4º O despejo sumário terá lugar no prazo de quarenta e cinco dias.
9. Antes de mais, refira-se que os recorrentes apontam ainda a violação por esta norma do artigo 266º da Constituição; mas este dispositivo constitucional reporta-se tão--somente aos princípios fundamentais da Administração Pública, e não à função jurisdicional ou ao principio da reserva do juiz, não se descortinando, pois, qualquer hipotética violação do mesmo pela norma em causa.
10. O artigo 202º da Constituição (correspondente ao artigo 205º, nº 2, na versão anterior), consagra expressamente o princípio da reserva da função jurisdicional ou reserva de juiz (Richtervorbehalt), ou seja, a impossibilidade de outros órgãos (políticos, administrativos, legislativos, nomeadamente) exercerem essa competência jurisdicional. Como refere J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 3ª ed., pág.s 575 e seg.s, os tribunais são os órgãos constitucionais aos quais é especialmente confiada a função jurisdicional exercida por juízes. Sublinha-se assim, com efeito, a natureza de órgãos de soberania dos tribunais, não se acolhendo expressamente qualquer referência ao «poder judicial», contraposto nomeadamente ao «poder administrativo» ou ao «poder executivo», também não referidos pelo texto constitucional. O texto constitucional apenas define os tribunais pelo exercício da função jurisdicional e esta por ser a exercida por aqueles. Importa, pois, proceder à distinção entre administração e jurisdição, matéria sobre a qual é extensa a jurisprudência constitucional, citando-se, entre outros, os Acórdãos nº 104/85, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pág. 633), nº 443/91, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 327), nº 179/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 407), nº 226/95
(Diário da República, II Série, nº 172, de 27 de Julho de 1995), nº 452/95
(Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de 1995) e o nº 630/95 (Diário da República, II Série, nº 92, de 18 de Abril de 1996). Já a Comissão Constitucional se pronunciara também sobre esta questão nos seus Acórdãos nº 41
(Apêndice ao Diário da República, de 30 de Dezembro de 1977) e nº 155 (Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979). Como se pode ler naquele Acórdão nº 104/85: A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira hipótese, a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito. Na segunda hipótese, verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse público. Escreveu-se, por sua vez, no Acórdão nº 452/95: A função jurisdicional consubs-tancia-se assim, numa «composição de conflitos de interesses» levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito ou da justiça.
[...] Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra. Assim, e retomando aqui a linguagem do Acórdão nº 630/95, citado, o desígnio da intervenção da função jurisdicional é «estritamente jurídico, visando a realização do direito objectivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos».
11. Impõe-se, assim, a determinação do conceito «despejo», utilizado na norma questionada. É que, por despejo entende-se a consequência da resolução validamente efectuada do contrato de arrendamento; e, estando em causa ou em confronto nesses tipos de situações a posse e o direito de propriedade, bem como o próprio direito de habitação, em muitos casos, bem se compreende que a lei - artigo 63º, nº 2 do RAU (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro) - imponha que a resolução do contrato com fundamento na falta de cumprimento pelo arrendatário só pode ser decretada pelos tribunais, sendo a acção de despejo um dos meios colocados à disposição do senhorio para esse efeito - nº 2 do artigo 52º do RAU. Mas este despejo a que se refere a norma constante do artigo 165º do RGEU (e a que vulgarmente se denomina «despejo administrativo») não possui o mesmo sentido nem o mesmo conteúdo. O que aqui se visa não é a cessação do contrato de arrendamento, com a respectiva entrega do prédio livre e devoluto ao senhorio; o conteúdo do «despejo administrativo», ordenado pelas câmaras municipais, no
âmbito das suas competências, consiste em não permitir a utilização do prédio para uma actividade diversa daquela determinada pela respectiva licença de utilização. Não se pretende uma desocupação do imóvel, em termos de se impedir a utilização ou fruição pelos seus proprietários ou ocupantes; pretende-se tão-só impedir, isso sim,uma utilização por forma desconforme com o respectivo licenciamento. É essa actividade não permitida que se quer fazer cessar, impedindo que a mesma se verifique. Estamos, pois, perante uma realidade bem distinta da que consiste na desocupação ou devolução do prédio a que se refere o despejo no âmbito das formas de cessação do contrato de arrendamento, a qual pressupõe a existência de um conflito de interesses privados, que aqui não ocorre.
12. As câmaras municipais são órgãos administrativos, concretamente são os
órgãso executivos colegiais dos municípios (cfr. artigo 252º da Constituição), e são um dos seus órgãos representativos, em conjunto com a assembleia municipal, a qual, por sua vez, é o órgão deliberativo (artigos 250º e 251º da Constituição). O Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, alterado pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho, - Lei das Autarquias Locais - veio definir as atribuições das autarquias e as competências dos respectivos órgãos. O seu artigo 51º elenca as competências das câmaras municipais, desde a gestão corrente e a organização dos serviços, ao planeamento e urbanismo e ainda as relações com os restantes órgãos autárquicos. Detêm, assim, essencialmente, funções de gestão e decisão, para além das funções de execução das deliberações da assembleia municipal. No âmbito das funções que lhes estão cometidas, as câmaras municipais tomam decisões através da prática de actos administrativos ou de contratos administrativos. No âmbito das construções e edificações urbanas, as câmaras detêm funções de regulamentação, fiscalização e licenciamento das mesmas, tendo em conta os interesses públicos de segurança e salubridade, nomeadamente. Assim, o RGEU
(Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, com as alterações posteriores) comete às câmaras, para além de uma função de licenciamento (artigo 2º) das obras e trabalhos «de construção civil, a reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição das edificações e obras existentes, (...)» (artigo 1º), também uma função de licenciamento da «utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada» - artigo 8º -, sendo tal licenciamento actualmente regulamentado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro. Este dispõe, no seu artigo 1º, nº 1, alínea b), que estão sujeitas a licenciamento municipal «a utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas, bem como as respectivas alterações». Este Regulamento, cuja execução compete às câmaras, visa claramente interesses públicos e colectivos, ainda mais prementes nos grandes centros urbanos, relacionados com «as condições de salubridade, estética e segurança das edificações», e «impondo respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local», e procurando «dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correcto, harmonioso e progressivo» (cfr. preâmbulo do citado RGEU). As especificidades técnicas nele previstas visam ainda «dotar a construção projectada com os requisitos necessários ao fim em vista», nomeadamente as condições de segurança consoante o destino económico do edifício.
13. Os poderes atribuídos às câmaras municipais são poderes administrativos, orientando-se a sua actuação pelos interesses públicos e objectivos da colectividade. Pois bem, ao decretarem aqueles «despejos», no sentido anteriormente definido, de não permitirem a utilização dos prédios em desconformidade com a respectiva licença de utilização, na forma prescrita pelo artigo 165º e § 4º do RGEU, as câmaras estão ainda a actuar em defesa desses interesses públicos da colectividade. Com efeito, esta actuação camarária encontra enquadramento nas razões de «salubridade, estética e segurança das edificações», e sobretudo de urbanismo, referindo-se directamente aos interesses «próprios, comuns e específicos das populações». Não procuram nem têm em vista a resolução de quaisquer interesses particulares, muito menos a composição de conflitos privados. A atribuição às câmaras municipais desta competência para decretar despejos, no sentido de não permitir a utilização do prédio pelos respectivos ocupantes em desconformidade com a respectiva licença de utilização, não invade, pois, a esfera de competências próprias da função jurisdicional, não ofendendo assim o princípio da reserva de juiz.
III - DECISÃO
14. Nestes termos, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 165º, § 4º do Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951 (RGEU); b) negar provimento ao recurso. Lisboa, 7 de Outubro de 1998 Luis Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa