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Proc. nº 911/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Por Acórdão, de 8 de Janeiro de 1998, do Tribunal de Competência Genérica de Macau, T..., foi, com outros, condenado, pela prática de um crime previsto e punível pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal de 1995 (aplicado nos termos do nº 4 do seu artigo 2º), na pena de 2 (dois anos) de prisão, tendo sido declarado perdoado um ano desta pena, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº1, alínea d), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio. Do assim decidido, interpôs o arguido o competente recurso, através de requerimento ditado para a acta de audiência de julgamento, sobre o qual incidiu o seguinte despacho:
'Admito o recurso interposto pelo defensor do réu T..., que é de agravo em matéria cível e com efeito suspensivo, subirá imediatamente nos próprios autos, e o réu T... aguardará em liberdade provisória em que se encontra' (cfr. certidão da acta da sessão de julgamento, de 08/01/98, junta a fls. 25). Por despacho de 10 de Fevereiro de 1998, o tribunal recorrido, considerando que o arguido interpôs recurso do acórdão em 08/01/98, mas não pagou o imposto de justiça dentro do prazo legal, que não se verifica justo impedimento (arts. 145º n.º5 e 146º n.º1 do CPC), nem há lugar à isenção do pagamento do imposto previsto no art. 148º do Código das Custas Judiciais do Ultramar, para réus presos - uma vez que T... não ficou preso por ter sido fixado efeito suspensivo para o recurso -, julgou deserto o recurso por falta de pagamento de preparo, ao abrigo do disposto no art. 292º n.º1 do Código de Processo Civil, e determinou o desentranhamento das alegações.
2. - Deste despacho o arguido interpôs recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, considerando que a decisão recorrida violou o art. 148º do Código das Custas Judiciais do Ultramar, os nºs. 5 e 6 do art. 145º do Código de Processo Civil e os arts. 13º, n.º1, e 32º, n.º1, da Constituição da República
(CR). O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por Acórdão de 8 de Julho de 1998, negou provimento ao recurso, fundamentando-se no seguinte:
'(...)quando o réu interpõe recurso, após lhe ser lido o acórdão condenatório estava privado de liberdade, pois que também, foi determinado no mesmo Acórdão a emissão do correspondente mandado de condução ao Estabelecimento Prisional. Consequentemente, nos termos do art. 148º C.C.J.U. estava o réu isento de pagar o imposto de justiça pela interposição de recurso. No entanto, com a admissão do recurso por despacho extractado na acta da audiência de discussão e julgamento, foi-lhe permitido aguardar em liberdade provisória a tramitação do mesmo recurso. Isto é, deixou, de imediato, de se encontrar na situação de preso, recuperando a liberdade. E a partir deste momento teria de pagar o imposto de justiça para que o recurso interposto tivesse sequência. Assim, competia ao recorrente e não à secretaria o cômputo do prazo destinado ao pagamento do imposto.
(...) se a parte não logrou praticar o acto dentro do prazo tem duas opções: ou alega justo impedimento, nos termos do art. 146º do C.P. Civil; ou, dentro dos três dias seguintes ao último dia do prazo, pratica o acto pedindo, simultânea e imediatamente, guias para o pagamento da multa a que se refere o n.º5 do art.
145º do C.P. Civil. Não cumpre à secretaria a notificação oficiosa para o pagamento da multa. Ora, o recorrente não agiu por nenhuma das duas formas referidas pelo que perdeu o direito de praticar o acto. Está em causa o princípio da auto-responsabilidade das partes, pelo que não se vislumbra qualquer situação que colida com os comandos constitucionais referenciados pelo recorrente.'
3. - Inconformado, veio o arguido interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da al. b) do n.º1 do art. 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, invocando a inconstitucionalidade da norma do art.
148º do Código das Custas Judiciais do Ultramar, por violação dos princípios da igualdade e o de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, consagrados nas normas dos arts. 13º e 32º, n.º1, da Constituição da República.
Nas alegações oportunamente apresentadas neste Tribunal, concluiu-se do seguinte modo:
'a) O princípio da igualdade obriga o legislador a concretizar as imposições constitucionais dirigidas à eliminação das desigualdades fácticas impeditivas do exercício de alguns direitos fundamentais - art. 13º n.º1 da C.R.P.; b) O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa dos arguidos - art. 32º da C.R.P.; c) O direito de acesso aos tribunais - art. 20º n.º1 da C.R.P. - inclui o direito de recurso das decisões judiciais, traduzido no seu duplo grau de jurisdição; e d) Este direito não pode se regulado de forma discriminatória, nem limitado de forma excessiva e desproporcionada - art. 18º n.º2 e 3 da C.R.P.; e) Estes princípios constitucionais foram, salvo melhor opinião, violados na interpretação do T.S.J.M. ao art. 148º do C.C.J.U., quando decidiu que a falta de pagamento no tribunal 'a quo' do imposto de justiça devido pela interposição de recurso da sentença penal determina irremediavelmente que o recurso fique sem efeito; f) Aplicando-se em processo penal, subsidiariamente, as regras do processo civil, o recorrente deveria ter sido notificado pela secção para efectuar o pagamento do imposto de justiça, acrescido de multa, com a cominação de que, não o fazendo, perderia o direito de praticar o acto - no caso, o recurso para o T.S.J.M. - tudo nos termos dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do C.P.C. e art. 134º e seu § 1º do C.C.J.U.; g) O recorrente, salvo o devido respeito, reputa de inadmissível que as normas supra referidas se não apliquem às situações como a dos autos, uma vez que, assim sendo, estar-se-ia a estabelecer efeitos cominatórios e preclusivos mais gravosos no domínio do processo penal do que os vigentes em processo civil. h) O Tribunal Constitucional, aliás, já se pronunciou favoravelmente à inconstitucionalidade do art. 192º do C.C.J./1962 - cuja redacção é idêntica à do art. 148º do C.C.J.U. - na interpretação que lhe foi dada pelo T.S.J.M. (cfr. Ac. n.º 575/96 e Ac. n.º 169/97); i) Esta interpretação do T.S.J.M. à norma do art. 148º longe de atenuar a desigualdade de armas entre a acusação e a defesa, acentua-a, impedindo os arguidos em processo penal - em contraposição com o M.P. - de discutir, mediante recurso, os acórdão em que são visados, nomeadamente, através da cominação de medidas penais restritivas da sua liberdade.'
Por sua vez, o magistrado do Ministério Público neste Tribunal, concluiu, assim, as respectivas alegações:
'1º A norma constante do art. 148º do CCJU vigente em Macau, ao estabelecer que a falta de pagamento, no tribunal 'a quo' e no prazo legal, do imposto de justiça devido pela interposição do recurso de sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique precludido, sem que se proceda à prévia advertência de tal cominação ao recorrente, é inconstitucional por violação do princípio das garantias de defesa em processo penal.
2º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com a corrente jurisprudencial formada na sequência dos arestos atrás citados.'
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do corpo do artigo 148º do Código das Custas Judiciais do Ultramar, aprovado pelo Decreto nº 43 809, de 20 de Julho de 1961, publicado no Boletim Oficial de Macau, nº 33, de 19 de Agosto do mesmo ano.
Defende o recorrente que essa norma viola os princípios constitucionais da igualdade e das garantias de defesa do processo criminal, acolhidos nos artigos 13º e 32º, nº 1, respectivamente, da Constituição da República (CR).
A questão foi suscitada durante o processo, nas alegações apresentadas perante o tribunal recorrido que, no entanto, entendeu não vislumbrar qualquer situação colidente 'com os comandos constitucionais referenciados pelo recorrente'.
A norma em causa é do seguinte teor:
'Os recurso interpostos por pessoas que não sejam o Ministério Público ou os réus presos não poderão seguir sem que seja pago o imposto devido pela interposição de recurso'.
Assim, não se encontrando preso o arguido, a norma impugnada não permite dúvida quanto à sua natureza preclusiva: o recurso por si interposto não segue termos se não for pago no prazo legal o imposto de justiça legalmente devido pela sua interposição.
Não competindo a este Tribunal discutir a situação processual do arguido no tocante a determinar se este, quando interpôs recurso, era ou não 'réu preso', cumpre saber se a interpretação dada pelo tribunal recorrido à norma questionada ofende as normas e princípios constitucionais invocados.
O recorrente entende, a este respeito, que, aplicando-se ao processo penal, subsidiariamente, as regras do processo civil, devia ter sido notificado pela Secção para efectuar o pagamento do imposto de justiça eventualmente devido e liquidado, acrescido do dobro da multa a que se alude no nº 5 do artigo 145º do CPC, ou, então, de acordo com o artigo 134º do CCJU, com a cominação de que, não pagando, perderia o direito de praticar o acto de recorrer, nos termos do nº 6 desse artigo 145º ou do § 1º do artigo 134º citado.
O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal defende também um juízo de inconstitucionalidade, não tendo ocorrido prévia advertência ao recorrente da cominação, por violação do princípio das garantias de defesa em processo criminal.
Não foi esse, no entanto - como já houve oportunidade de registar -, o entendimento do tribunal recorrido.
3. - É manifesta e relevante a similitude entre a norma do artigo 148º do CCJU, mediante a qual os recurso interpostos por réus que não estejam presos não poderão seguir sem que seja pago o imposto devido pela interposição do recurso, e a norma do artigo 192º do Código das Custas Judiciais
(CCJ), na redacção vigente no território português até à revisão operada pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro.
Com efeito, e como observa aquele magistrado do Ministério Público, 'tanto numa como noutra daquelas disposições legais se prevê um efeito cominatório ou preclusivo para o arguido que pretenda impugnar a decisão condenatória sem, de imediato, pagar o imposto de justiça que legalmente
é devido pela interposição - e sem que esteja prevista qualquer notificação da secretaria, no caso de não pagamento pontual, antes de operar a irremediável deserção do recurso interposto'.
Ora, relativamente à norma do artigo 192º do CCJ já este Tribunal se pronunciou, julgando-a inconstitucional - por violação do preceituado nas disposições combinadas dos artigos 18º, nºs. 2 e 3, e 32º, nº 1 da CR - na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso da sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido recorrente.
Neste sentido, os acórdãos nºs. 575/96, 956/96 e 169/97, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1996, 19 de Dezembro de 1996 e 19 de Abril de 1997, respectivamente, além de numerosos outros, não publicados (tais como os nºs. 691/96, 957/96, 975/96, 1241/96,
57/97, 64/97, 592/97, 618/97, 619/97, 638/97, 93/98 e 100/98, entre outros).
Como se escreveu no primeiro dos arestos citados, 'ao ditar irremediavelmente a imediata deserção do recurso, pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa - aliás, de diminuto valor - em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento, a norma em apreço [ou seja, a do artigo 192º do CCJ] procede a uma intolerável limitação do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal'. Esta limitação, decorrente da deserção fiscal, comprime injustificadamente o direito ao recurso da decisão penal condenatória, não havendo semelhança ou equivalência entre o interesse económico do Estado e a plena e efectiva defesa do arguido: só através de uma comunicação com um mínimo de solenidade feita ao arguido se poderiam considerar asseguradas as condições essenciais exigíveis ao exercício de todas as garantias de defesa, fazendo-se, então, corresponder a sua não actuação após tal aviso a uma intenção de não recorrer ou à perda do direito ao recurso - como se ponderou, por sua vez, no acórdão nº 575/96, já citado.
Ora, o discurso argumentativo que os arestos citados sustentaram e que agora se reitera, por com eles se concordar, tem inteiro cabimento relativamente à norma sindicanda.
Assim sendo, entende-se que esta, na dimensão equivalente à do artigo 192º do CCJ, de igual modo padece de inconstitucionalidade, considerando o disposto conjugadamente nos artigos 32º, nº 1, e 18º, nºs. 2 e 3, da Lei Fundamental.
III
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional - por violação das disposições combinadas dos artigos 18º, nºs. 2 e 3, e 32º, nº 1, da Constituição da República - a norma constante do artigo 148º do Código das Custas Judiciais do Ultramar, aprovado pelo Decreto nº 43 809, de 20 de Julho de 1961, na medida em que prevê que o não pagamento do imposto de justiça devido pela interposição de recurso de sentença penal condenatória determina o seu não seguimento, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao recorrente;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo proceder-se à reforma do acórdão recorrido em conformidade com o antecedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 10 de Março de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida