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Processo nº 942/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1- R..., Ldª, sociedade comercial com sede em Lisboa, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Secção Criminal), de 23 de Setembro de 1998, que confirmou 'a decisão recorrida', ou seja, o despacho do Mmº Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa que, em autos de contra-ordenação, não admitiu o recurso por ele interposto,
'por não respeitar as exigências legais de forma, nos termos dos artºs 59º, nº 3 e 63º nº 1 ambos do D.L: 433/82 de 27/10 actualizado pelo D.L: 244/95 de 14/09'. Na parte que interessa, assentou o acórdão recorrido no seguinte:
'Objecta-se no recurso que a interpretação da norma do artigo 63º, nº 1, do DL nº 433/82, de 27/10, no sentido que na decisão impugnada lhe foi atribuído, de a falta de conclusões levar à rejeição do recurso, é materialmente inconstitucional, por violar os direitos fundamentais de defesa e audiência, consagrados no artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa. Não cremos que tal conclusão seja válida, como demonstraremos de seguida. A Constituição assegura, no processo contraordenacional, o direito de audiência e defesa – artº 32º, nº 10. A lei ordinária consagra, em execução daquele princípio programático, aqueles direitos, garantindo, por um lado, que nenhuma coima será aplicada sem prévia possibilidade de o arguido se pronunciar e, por outro, o direito de recurso em várias disposições legais, e por diferentes razões, naquele D.L..
É que tem de admitir-se que se os processos de natureza não criminal, designadamente por ilícito de mera ordenação social, não exigem a concretização dos princípios da constituição processual penal, nem por isso se deve abdicar da observância de certas garantias de defesa que fazem parte do cerne dos princípios do Estado de direito, inerentes a todos os processos sancionatórios. Entre esse núcleo duro de direitos, os de audiência e recurso. A Constituição, já o vimos, consagra direitos de defesa do arguido em processo por ilícito de mera ordenação social, deixando à lei ordinária a sua materialização, não constituindo, e isso nos parece óbvio, violação daquela, a denegação daqueles direitos por inobservância de requisitos formais dos quais depende a sua atribuição. A interpretação que, do art. 63º, nº 1, do DL nº 433/82, se fez na decisão recorrida, bem como a aplicação respectiva, mantém-se dentro de parâmetros constitucionais, não pecando por excessiva ou arbitrária, estando ao inteiro alcance dos arguidos dar-lhe cumprimento, não chocando com o sentido de justiça dominante. O Tribunal Constitucional, recentemente, no seu Ac. nº 193/97, decidiu que ofende a Constituição a interpretação dos artºs. 412º e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal quando, por falta de concisão das conclusões de recurso, se decreta a sua rejeição. Independentemente da bondade de tal decisão, e supondo que a arguida se ancora nele, é manifesto que o campo de incidência daquele aresto respeita àquela imprecisão, e não já à ausência de conclusões, sendo evidente a falta de paralelismo entre as duas situações.'
2- Nas suas alegações, conclui assim a recorrente:
'1 - O Acórdão recorrido aplica o nº 1 do Artº 63º do Decreto-Lei nº 433/82 de
27/10 no sentido de, a falta de conclusões, traduzindo-se no desrespeito de exigências de forma, conduzir à rejeição do recurso.
2 - Tal interpretação, negando ao arguido a possibilidade de apresentar
(completar, esclarecer ou sintetizar) as conclusões da sua petição de recurso, diminui-lhe drasticamente o seu direito de audiência e de defesa, traduzindo-se na aplicação de uma mera justiça formal.
3 - O nº 1 do Artº 63º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27/10, na citada interpretação feita no Acórdão recorrido, viola os princípios de audiência e defesa, consagrados no nº 10 do Artº 32º da Constituição da República, daí resultando a sua inconstitucionalidade material.
4 - Deverá, deste modo, ser dado provimento ao presente recurso e declarada a inconstitucionalidade do nº 1 do Artº 63º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27/10, na interpretação que lhe foi dada, mandando-se reformar o Acórdão recorrido'.
3- Contra-alegou o Ministério Público, concluindo do seguinte modo:
'1º Os princípios constitucionais da igualdade e do contraditório, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e vigentes em todo o ordenamento jurídico-processual, não impõem, como generalizada restrição ao princípio da auto-responsabilidade das partes ou sujeitos processuais, que em todos os processos, qualquer que seja a sua relevância, seja inviável o estabelecimento de efeitos cominatórios ou preclusivos como sanção para determinadas irregularidades ou deficiências da actuação das partes, impondo-se, sempre e necessariamente, antes de tal efeito operar, o convite ao suprimento ou correcção das deficiências formais verificadas.
2º Não viola aqueles princípios, não traduzindo consequência processual manifestamente desproporcionada, a circunstância de, em processo contraordenacional, se não prever o convite ao suprimento da deficiência traduzida em o recorrente não apresentar, como devia, as conclusões da sua alegação, produzindo tal irregularidade, só por si, a liminar rejeição do recurso.
3º Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
4- Vistos os autos, cumpre decidir. A única norma questionada pela recorrente, impondo que o juiz, em processo contraordenacional, rejeite, por despacho, o recurso apresentado 'fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma' (citado nº 1 do artigo 63º), não pode deixar de ser lida e conjugada com o nº 3 do artigo 59º, do mesmo Decreto-Lei nº
433/82, com as actualizações introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro e 244/95, de 14 de Setembro, que estabelece que aquele recurso seja
'feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões'.
É que a recorrente situa a controvérsia no ponto em que, negando-se ao arguido naquele tipo de processo 'a possibilidade de apresentar (completar, esclarecer ou sintetizar) as conclusões da sua petição de recurso', está a violar-se o seu direito de audiência e defesa. Para o acórdão recorrido, e retratando a situação dos autos, 'se o recorrente apresenta em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática de contraordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada, equivale a ausência de conclusões, motivo de rejeição liminar do recurso, por carência de motivação, integrada, além do mais, por aqueles artºs 412º nº1 e
420º nº 1 do CPP' (normas aplicáveis ao processo de contra-ordenação - artigo
41º, nº 1). E mais:
'Houve, da parte do legislador, o propósito claro de regulamentar de forma global e autónoma do CPC, ao contrário do que sucedia no âmbito do CPP de 1929, o regime dos recursos, não se coadunando com aquela perspectiva da celeridade e eficiência o convite à correcção das conclusões ou à sua apresentação, se faltam. A aplicação da norma do artº 690º nº 4, do CPC, com o sentido de quando faltem, sejam deficientes ou obscuras as conclusões, poder o juiz endereçar convite à sanação do vício não tem aplicação em processo penal e, 'ipso facto' no processamento das contraordenações'. Ora, é exactamente este aspecto que vem posto em crise neste Tribunal Constitucional no citado acórdão 193/97 (inédito), pois aí, em contrário ao entendimento do acórdão recorrido, pode ler-se:
'O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil (onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento - artigo 690 nº 3 do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível (sendo aliás, exigida pelo artigo 18º nº 2 da Constituição) sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido'.
É certo que aquele acórdão nº 193/97 tratou de hipótese relacionada com a falta de concisão das conclusões de motivação de recurso - e isso determinar a rejeição do recurso interposto pelo arguido -, mas é bem verdade que aquela consideração do acórdão pode também levar aqui a um mesmo juízo de inconstitucionalidade material. Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou 'em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contraordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada', a lógica da
'concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa' impõe, na óptica do artigo 18º, nº 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690º, 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário 'chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido', na linguagem do acórdão nº 193/97. Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição.
5- Termos em que, se DECIDE:
a) Julgar inconstitucionais - por violação do disposto no artigo 32º nº 1 da Constituição - os artigos 63º, nº 1 e 59º, nº 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações quando interpretados no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, o qual deve ser reformado em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade referido em a). Lisboa, 18 de Maio de 1999 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida