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Proc. nº 473/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação de Lisboa em que são recorrente M..., Lda., e recorrida E..., Lda., reclamou aquela para a conferência, da decisão sumária de 7 de Julho de 1998, que, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), não conheceu do recurso por ela interposto por se estar perante uma mera reapreciação da anterior decisão e não face a um recurso de constitucionalidade. Sustenta a reclamante que o acórdão recorrido interpretou a norma contida na alínea h) do nº 1 do artigo 64º do RAU (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro)de acordo com o princípio romanista quo iure suo ititur neminem laedit, não considerando que o local arrendado só esteve encerrado por mais de um ano devido à ordem administrativa de encerramento até que uma vistoria permitisse a reabertura, vistoria essa que foi impossibilitada pela própria actuação da senhoria, invadindo com entulho o saguão do prédio, onde estava instalada a cozinha do restaurante da interessada - matéria de facto que 'foi esquecida pela decisão recorrida, interpretando-se a norma aplicada com uma dimensão de imprevisibilidade e de arbitrariedade que esquece a teoria do abuso de direito, ofendendo-se assim manifestamente o espírito do artigo 2º da Constituição da República'. Sendo assim, conclui, deverá deferir-se a reclamação, conhecendo-se do objecto do recurso. Respondeu a recorrida, no sentido de se dever confirmar a decisão sumária proferida, sendo manifesto que a recorrente, ao tentar fazer reapreciar a matéria de facto pelo Tribunal Constitucional, 'tem plena consciência de que está a utilizar um meio processual inadequado e a abusar, ele sim, do seu direito processual de defesa desde que séria e fundamentada'. Cumpre decidir.
2. - Escreveu-se o seguinte, na decisão sumária reclamada:
?1. - M..., Lda., com sede em Lisboa, intentou acção declarativa, com processo sumário, contra E..., Lda., com sede na mesma cidade, pedindo, na qualidade de senhorio de um prédio urbano arrendado parcialmente à ré para actividade comercial e industrial, a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as duas e o consequente despejo imediato do respectivo espaço locado, com a restituição deste à autora, livre e desocupado, para o efeito fundamentando-se no disposto no artigo 64º, nº 1, alínea h), do Regime de Arrendamento Urbano
(RAU), aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (na medida em que aquela norma prevê a resolução do contrato pelo facto de o arrendatário conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal). A acção correu termos no 2º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, tendo o respectivo juiz julgado procedente, por provada, a acção, por sentença de 22 de Abril de 1997, que declarou resolvido o contrato e condenou a ré no pedido, simultaneamente absolvendo a autora do pedido reconvencional entretanto deduzido, dada a sua improcedência, por não provada. E..., Lda., recorreu, de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas este Tribunal, por acórdão de 18 de Dezembro de 1997, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Requereu a demandada a aclaração do acórdão, o que foi indeferido por acórdão de
27 de Janeiro de 1998, e arguiu posteriormente a nulidade do mesmo - previsto no artigo 688º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil - no que também foi desatendida, agora por aresto de 3 de Março último.
2. - Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alegando a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma da alínea h) do nº 1 do artigo 64º do RAU [por lapso de escrita começou por aludir à alínea b) do preceito], em violação do disposto no artigo 2º da Constituição da República (CR). Admitido o recurso, em termos que, no entanto, não vinculam o Tribunal Constitucional (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82), foi a recorrente, já neste Tribunal, notificada para, nos termos do artigo 75º-A, nº 5, deste diploma, identificar cabalmente a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada e, bem assim, indicar a peça processual em que a suscitou (para além da clarificação da norma sindicanda, confirmando-se, nessa medida, o lapso na identificação da alínea do nº 1 do artigo 64º). Respondeu oportunamente a recorrente, alegando o seguinte, quanto à dimensão interpretativa da norma impugnada:
?2. No aliás douto acórdão recorrido, tal como na sentença da 1ª instância, a referida norma é interpretada com base no velho princípio romanista de que quo iure suo utitur neminem laedit, na exacta medida em que se nega haver nexo de causalidade entre a ordem administrativa de encerramento do estabelecimento e o mesmo encerramento por mais de um ano, fundamento invocado para resolução do contrato de arrendamento;
3. E, por outro lado, nega-se também que haja nexo de causalidade entre as obras feitas pelo senhorio, invadindo como entulho o saguão onde estava instalada a cozinha do restaurante da arrendatária, impedindo o seu funcionamento e a prévia vistoria prevista na ordem administrativa de encerramento.? Para a recorrente, a interpretação feita na 1ª instância e mantida no acórdão recorrido, ?adquire uma dimensão de imprevisibilidade e de arbitrariedade absolutamente contrárias ao espírito do artigo 2º da Constituição da República?, tendo a norma de ser interpretada, ?por imperativo constitucional?, de acordo com a teoria do abuso de direito, consagrada no artigo 334º do Código Civil. Relativamente à tempestividade da suscitação da questão de constitucionalidade, esclarece que como é óbvio, a questão da invocada inconstitucionalidade só foi levantada na alegação da apelante apresentada, no seu nº 5, sintetizada na conclusão X da mesma alegação, pois que o não podia ter sido antes?.
3. - Entende-se não se poder conhecer do recurso. Com efeito, no domínio da fiscalização concreta de constitucionalidade, o recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pressupõe, para ser admitido, além do mais, a aplicação de uma dada norma - no todo ou em parte ou, ainda, numa certa dimensão interpretativa - que tenha desempenhado motivo determinante na decisão recorrida, que nela se assuma como ratio decidendi. A questão de constitucionalidade há-de reportar-se a uma norma e não à própria decisão judicial que a aplica, como, de resto, se entende consensualmente na Jurisprudência e na Doutrina: o contencioso da constitucionalidade é sempre de normas, em que se fundam as decisões recorridas e não um contencioso de decisões, seja qual for a sua natureza (como observam Guilherme da Fonseca e Inês Domingos ? Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra, 1997, pág. 27, no sentido da larga cópia de acórdãos que citam a esse propósito), sendo certo que não está previsto no nosso ordenamento jurídico um recurso de queixa constitucional ou de amparo, orientado para o controlo das decisões dos tribunais, em matéria de direitos, liberdades e garantias. Admite-se nem sempre ser fácil surpreender a clara linha divisória entre a norma e decisão, mormente quando aquela é considerada numa certa vertente interpretativa. Sem embargo, a questão de constitucionalidade há-de ser equacionada em termos claros e inequívocos, de modo a que o tribunal a quem é posta dela cuide e sobre ela decida, distinguindo-se o que é norma do que é decisão.
4. - No caso sub judice, a pretensão da recorrente recorta-se como um pedido de reapreciação da anterior decisão e não como um recurso de constitucionalidade. Na verdade, após convite feito ao abrigo do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, a recorrente intentou delimitar o objecto do recurso, nos termos já transcritos, que, no entanto, só denunciam a sua discordância quanto ao modo como, de facto e de direito, a questão foi resolvida nas instâncias. Defendeu, então, que a interpretação acolhida ?adquiriu uma dimensão de imprevisibilidade e de arbitrariedade absolutamente contrárias ao espírito do artigo 2º da Constituição?, formulação porventura retórica de uma problemática que pretende ter suscitado no nº 5 das alegações para a Relação e sintetizado na conclusão X - onde se afirma que a sentença recorrida viola o disposto no artigo
64º do RAU, no artigo 668º do Código de Processo Civil e nos artigos 334º e 340º do Código Civil - mas que não consubstancia questão de normatividade constitucional (que a Relação igualmente não detectou). Tanto basta para se justificar o não conhecimento do objecto do recurso.
5. - Em face do exposto e ao abrigo do que se dispõe no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82 (redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro) decide-se não conhecer do objecto do recurso.?
3. - A reclamação da recorrente em nada contraria o que na decisão sumária se ponderou e ajuizou. Pelo contrário, a argumentação expendida mais convence de que se discorda do julgamento que recaíu sobre a matéria de facto apurada, não mais se pretendendo do que um reequacionamento da mesma e eventual nova apreciação de direito. Ou, por outras palavras, mantém-se integralmente o que anteriormente se escreveu quanto à não caracterização do recurso como de constitucionalidade, o que, assim, inviabiliza o conhecimento do seu objecto.
4. - Em face do exposto, decide-se: a) manter a decisão sumária de não conhecimento do recurso; b) condenar a reclamante nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 10___ unidades de conta.
Lisboa, 6 de Outubro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida