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Processo nº 403/97
1ª Secção Rel. Consª Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. 1. J... veio interpor recurso de constitucionalidade do acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Junho de 1996 que concedeu provimento ao recurso da apelante Radiodifusão Portuguesa, S.A., sua entidade patronal, em 11 de Julho de 1996, antes ainda de ter sido apreciado um pedido de aclaração por ele formulado relativamente ao mesmo acórdão. O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 223, proferido em 16 de Outubro de 1996.
Por acórdão da mesma data foi indeferido o pedido de aclaração.
A Secretaria do Tribunal da Relação de Lisboa, a quem o processo havia sido enviado para ser contado, lançou informação
nos autos em que consigna que não devia ser elaborada conta 'em face do disposto no nº 1 do artº 84º da Lei nº 28/82, de 15/11/82' (a fls. 227).
Por despacho do Desembargador relator de fls. 227vº e 228 foi ordenada a elaboração de conta, por se considerar não ter 'razão relevante a informação que antecede, pois uma realidade contabilística, para efeitos de conta de custas, é a isenção de custas e outra realidade é a elaboração obrigatória da conta de custas'.
Elaborada a conta de custas, foram notificadas as partes e emitidas guias para pagamento por Salvador Ladeiras, no valor de Esc. 10.500$00, terminando o prazo para pagamento em 15 de Janeiro de 1997 (a notificação da conta fora expedida em 18 de Dezembro de 1996).
Como o recorrente Salvador Ladeiras não tivesse pago as custas, o Desembargador relator julgou deserto o recurso de constitucionalidade, considerando, por um lado, que o recorrente não gozava do benefício de apoio judiciário e, por outro, que, ainda que o recorrente beneficiasse de isenção de custas no Tribunal ad quem, não estava dispensado de pagar as custas no tribunal a quo (despacho de fls. 235, com data de 23 de Janeiro de 1997).
O recorrente pretendeu, porém, pagar as custas no 3º dia posterior ao prazo, mas tal foi indeferido.
2.- Na sequência da notificação do despacho que julgara deserto o recurso, o recorrente requereu a sua aclaração ou, subsidiariamente, a sua reforma, considerando que não eram aplicáveis ao recurso de constitucionalidade as normas dos artºs. 292º, nº 1, do Código de Processo Civil e 110º do Código de Custas Judiciais de 1962.
Na mesma data, a título subsidiário, interpôs reclamação do despacho do relator que julgara deserto o recurso, retendo-o, para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artº 76º da Lei nº 28/82.
Fundamentou a sua reclamação nos seguintes termos:
- o artº 110º do Código de Custas Judiciais de 1962 regia, em sua opinião, para o não pagamento de preparos iniciais, o que não ocorrera na presente situação;
- o artº 292º do Código de Processo Civil já se achava revogado à data em que foi aplicado no despacho de 23 de Janeiro de 1997, dado o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 28 de Setembro, ter entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1997;
- já era aplicável à situação o novo Código de Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, atento o disposto nos artºs. 4º e 18º deste último diploma, bem como o artº 14º do Decreto-Lei nº
329-A/95, pelo que estavam revogadas todas as normas que estabeleciam cominações processuais ou preclusões de natureza processual como consequência do não pagamento de quantias a título de custas ou de preparos, de harmonia com o Código de Custas Judiciais (o prazo para pagamento de custas iniciara-se em 21 de Dezembro de 1996 e viria a terminar em 14 de Janeiro de 1997);
- não havia que aplicar subsidiariamente ao recurso de constitucionalidade as normas sobre deserção fiscal, visto a Lei do Tribunal Constitucional prever os casos de não admissão do recurso para norma expressa, não estando contemplada aí essa causa de rejeição do recurso.
A recorrida Radiodifusão Portuguesa deduziu resposta ao pedido de aclaração ou reforma, vindo esse pedido a ser indeferido por acórdão de 7 de Maio de 1997 (a fls. 247 a 249 dos autos).
Quanto à reclamação, a reclamada veio opor-se à admissibilidade deste meio processual - face à notificação do despacho do Desembargador relator que mandara subir os autos ao Tribunal Constitucional para apreciação da mesma - invocando que o que estava em causa não era um despacho de indeferimento da admissão de um recurso 'mas sim, e apenas, o despacho de fls. 235, complementado pelo Acórdão proferido no incidente de aclaração exarado a fls...., que julgou deserto o recurso interposto e admitido' (a fls. 255ºv). Nessa resposta considerou que o reclamante deveria, quando muito, ter suscitado durante o processo 'a eventual inconstitucionalidade das normas legais nas quais o Tribunal a quo assentou a decisão tomada no sentido da deserção do recurso, ou, quando menos, da interpretação dada a tais normas '. Assim sendo, a reclamação careceria de objecto.
3.- O Desembargador relator sustentou o despacho reclamado, ordenando a subida dos autos ao Tribunal Constitucional.
4.- Distribuída a reclamação, teve vista do processo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, o qual exarou parecer em que defendeu a procedência da reclamação.
5.- Foram corridos os vistos legais.
II. 6. Dada a pormenorizada descrição feita acima das vicissitudes processuais ocorridas, importa passar, desde já, a ver se a reclamação prevista nos artºs. 76º e 77º da Lei do Tribunal Constitucional constitui meio processual admissível para impugnar um despacho proferido no Tribunal a quo a julgar deserto um recurso de constitucionalidade já admitido, por falta de pagamento das custas devidas na instância recorrida e, no caso de resposta afirmativa, se a reclamação deve proceder.
7.- Quanto à questão de admissibilidade da reclamação, vale apenas transcrever parte do parecer do Senhor Procurador-Geral Adjunto quando dá resposta afirmativa a essa questão: '2. Será admissível o uso da reclamação prevista no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82 para impugnar, não o despacho que indeferiu o requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta, mas o que ulteriormente veio a julgar deserto tal recurso, inicialmente admitido?
Importa começar por salientar que o meio impugnatório que é a reclamação, quer em processo civil, quer em processo penal, está efectivamente estruturado em torno das figuras da rejeição ou retenção de um recurso no tribunal 'a quo' (cfr. artigos 688º, nº 1, do Código de Processo Civil e 405º do Código de Processo Penal): daí que constitua entendimento largamente dominante o de que só é possível 'reclamar' para o Presidente do Tribunal Superior, competente para apreciar o recurso, nos casos em que este não foi admitido pelo juiz 'a quo' ou foi retido, por se lhe ter atribuído indevidamente o regime de subida diferida, quando devia subir imediatamente à apreciação do tribunal 'ad quem'.
Pelo contrário, a forma adequada para atacar a decisão que venha a julgar ulteriormente deserto (por razões fiscais ou processuais, 'maxime' por falta de alegações) o recurso inicialmente admitido já será a impugnação, por via da interposição de novo e autónomo recurso, do despacho que julgou deserto o recurso interposto (e admitido) - sendo a apreciação de tal recurso obviamente já da competência do próprio tribunal 'ad quem', e não do Presidente do Tribunal Superior, como ocorre com a dita 'reclamação'.
Nesta perspectiva, haverá efectivamente erro na forma procedimental adequada quando, em processo civil ou penal, o recorrente use o meio previsto nos citados artigos, em vez de impugnar autonomamente, mediante interposição de novo recurso, o despacho que julgou deserto o recurso inicialmente admitido pelo juiz 'a quo'. E, importando notar que, perante o disposto presentemente no artigo 688º, nº 5, do Código de Processo Civil, tal 'erro na forma de processo' pode ser corrigido pelo Tribunal.
3. Será, porém, este esquema procedimental automaticamente transponível para o plano do processo constitucional, dadas as especificidades do meio impugnatório previsto no nº 4 do artigo 76º e no artigo 77º da Lei nº
28/82?
Entendemos que não. Efectivamente, dadas as especificidades e a funcionalidade própria dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, consideramos não ser viável e adequado realizar uma automática transposição para o domínio do processo constitucional do regime constante dos artigos 688º e 689º do Código de Processo Civil.
E, para tal conclusão, pesam essencialmente duas razões:
a) Em primeiro lugar, em processo constitucional, a reclamação é apreciada pelo próprio Tribunal Constitucional, em secção - e não pelo Presidente deste Tribunal, o que atenua sensivelmente a (essencial) diferença, vigente nos processos civil e penal, entre a reclamação ou 'recurso de queixa' e o verdadeiro e próprio recurso, a interpor (e julgar) perante o tribunal 'ad quem'.
b) Em segundo lugar - e fundamentalmente - porque em processo constitucional não existe a possibilidade de impugnar autonomamente, perante o próprio Tribunal Constitucional os despachos ulteriormente proferidos no tribunal 'a quo', que condicionem decisivamente o seguimento do recurso de constitucionalidade inicialmente admitido, 'maxime' julgando-o ('contra legem') deserto. (fls. 261 a 264)
Ora, não sendo possível deduzir agravo para o Tribunal Constitucional, a reclamação afigura-se ser meio idóneo de submeter a este
último Tribunal a questão da legalidade do despacho de deserção do recurso, parecendo inexegível impor ao ora reclamante o ónus de suscitar uma questão de constitucionalidade quanto às normas aplicadas no despacho reclamado (artºs.
110º do Código de Custas Judiciais e 292º da anterior versão do Código de Processo Civil) ou de violação de lei de valor reforçado, sendo certo que, no caso sub judicio, o despacho reclamado teria, na opinião do recorrente, aplicado uma norma do Código de Processo Civil sobre deserção fiscal que já estava revogada na data do despacho.
De novo, entende-se que tem razão o Senhor Procurador-Geral Adjunto quando defende que um tal expediente processual (suscitação de uma questão de constitucionalidade ou de legalidade), apesar de 'obviamente possível', 'não deve ser imposto como única via possível à parte, sob pena de se vir a criar uma insólita situação processual, que criaria para o recorrente o ónus de enxertar novos, sucessivos e autónomos recursos de constitucionalidade no âmbito do procedimento originado pela recusa originariamente interposta e admitida' (a fls. 264 - 265).
Conclui-se, assim, que a reclamação é um meio processual admissível para apreciar a legalidade de uma situação como a dos autos, já que tem de ser o Tribunal Constitucional a sindicar de forma completa a ilegalidade de quaisquer decisões proferidas na instância recorrida e que possam afectar a subida e o momento oportuno de apreciação do recurso de fiscalização concreta já admitido
(cfr., na jurisprudência do Tribunal, o acórdão nº 58/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., págs. 525 e seguintes, que deferiu reclamação contra o despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade, na sequência do indeferimento de uma reclamação da conta de custas, condicionando no não pagamento desta a própria admissão do recurso de constitucionalidade).
8.- Alcançada a conclusão sobre a admissibilidade do meio processual utilizado pelo ora reclamante, importa apurar se a reclamação merece deferimento.
No citado acórdão nº 58/90 do Tribunal Constitucional, a reclamação contra o despacho de não admissão do recurso foi deferida com base no entendimento de que se havia de aguardar primeiro o despacho do recurso de constitucionalidade - que tenha como objectivo final a redução do montante de custas contadas - sob pena de se vedar o acesso aos tribunais superiores e de se negar na prática o efeito suspensivo do recurso que se pretendia através da exigência 'à cabeça' do montante de custas contestado.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, vai mais longe, afirmando que 'seria verdadeiramente absurdo que, sendo os recursos de constitucionalidade isentos de custas, a sua subida dependesse do pagamento de custas originadas anteriormente ao processo, perante as instâncias, como também com o disposto nos artigos 78º-B (é ao relator que compete julgar os recursos de constitucionalidade desertos) e 76º, nº 2, (já que tal exigência de prévio pagamento de custas traduziria, afinal, em termos substanciais, a inovatória criação de um pressuposto, senão da admissibilidade, ao menos da subida e apreciação dos recursos de fiscalização concreta). Para este Magistrado a regra vigente sobre isenção de custas nos recursos de constitucionalidade (artº 84º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional) e a ausência da chamada deserção fiscal entre as causas de admissibilidade deste recurso (artº 76º, nº 2, da mesma Lei) acarretam, como consequência, que o mecanismo de deserção fiscal, por falta do prévio depósito de custas como garantia da subida do recurso) não possa ser aplicável na instância recorrida.
Considera-se que não é necessário tomar posição definitiva sobre o entendimento perfilhado pelo representante do Ministério Público.
De facto, a reclamação tem de ser deferida, no presente caso, porque o reclamante pôs em causa a própria vigência do artº 292º do Código de Processo Civil (versão anterior à resultante do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) e do artº 110º do Código das Custas Judiciais de 1961, no momento em que foi proferido o despacho a julgar deserto recurso, sustentando que tais normas se achavam revogadas e não podiam ser aplicadas à sua situação, por força das normas transitórias constantes do próprio Decreto-Lei nº 329-A/95 e do Código das Custas Judiciais de 1996, que impediam cominações ou preclusões processuais decorrentes do não pagamento de preparos e custas.
Tal como se decidiu no citado acórdão nº 58/90, não é condição de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional o prévio pagamento das custas contadas mas contestadas no processo principal, ainda que tal contestação se situe, no presente caso, no plano das consequências do não pagamento das mesmas decorrente da entrada em vigor de nova legislação.
A última palavra sobre essa disputa no plano ordinário há-de, pois, competir ao Tribunal Constitucional.
III. Termos em que decide o Tribunal Constitucional deferir a presente reclamação.
Lisboa, 9 de Março de 1998 Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Cost José Manuel Cardos da Costa