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Procº nº 374/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Na sequência de participação da Guarda Nacional Republicana, o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, contra A., imputando-lhe a prática do crime de atentado ao pudor, previsto e punido pelo artigo 206º, nº 2, do Código Penal de 1982, vindo o arguido a ser condenado, além do mais (taxa de justiça, procuradoria e taxa prevista no nº 3 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro), na pena de sete meses de prisão, pena que lhe foi suspensa por dois anos, por sentença do Tribunal Judicial de Coimbra de 31 de Maio de 1995.
2. Recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra, imputando à sentença, no que ora importa, uma violação do princípio da presunção da inocência, condensado no artigo 32º, nº 2, da Constituição, porquanto tal decisão deveria ter estabelecido um non liquet em matéria probatória e, consequentemente, feito operar tal princípio.
O representante do Ministério Público junto do tribunal de comarca pronunciou-se pelo não provimento do recurso, mas o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, considerando a revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 25 de Maio, em vigor desde 1 de Outubro de
1995, veio defender que, perante a inexistência de norma incriminadora correspondente à do anterior nº 2 do artigo 206º do Código Penal e tendo em conta o disposto no artigo 2º, nº 2, do actual Código Penal, deveria a sentença ser revogada e o arguido absolvido.
Levados os autos à audiência por estar em causa um invocado 'erro notório na apreciação da prova', veio o Tribunal da Relação, por Acórdão de 12 de Janeiro de 1996, a julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida, fundamentalmente por duas razões: de um lado, porque encontrou continuidade na punição dos factos concretamente subsumidos à previsão do nº 2 do artigo 206º do Código Penal de 1982 na previsão do artigo 163º do Código actualmente em vigor; do outro lado, porque, radicando o invocado 'erro notório na apreciação da prova' da diferente valoração atribuída a dois depoimentos contraditórios, prestados em diferentes circunstâncias, aquele nem era patente - no sentido de que não deveria escapar 'à observação de um homem de média formação e (...) resultar do próprio texto da decisão' -, nem deixava de corresponder ao exercício da livre convicção do julgador, tanto mais que esta se também amparou no depoimento de uma testemunha presencial.
3. Inconformado, veio o arguido arguir a nulidade do referido acórdão, por violação do disposto no artigo 379º, alínea b), do Código de Processo Penal e do artigo 32º da Constituição. Nesse requerimento levantou uma questão de inconstitucionalidade, da seguinte forma:
' IV - Inconstitucionalidade
Nos termos do art.32º da Constituição da República o processo criminal deverá assegurar todas as garantias de defesa, determinando-se a audiência de julgamento pela subordinação ao princípio do contraditório.
Salvo o devido respeito, ao não se dar cumprimento, ao menos, ao estatuído no art. 359º do C.P. Penal, igualmente se verifica nulidade do Acórdão'.
E nas conclusões escreveu:
'7. Desta forma subsistindo a opinião de que o Acórdão proferido é nulo por ter violado o disposto nos artigos 379º b), 358º e 359º do C.P.P.
8. Igualmente violando o referido Acórdão os comandos do art. 32º, nº 1 e 5º da Constituição da República ao não permitir o exercício de todas as garantias de defesa ao arguido nomeadamente as resultantes do princípio do contraditório, gerando, assim, nulidade do Acórdão por inconstitucionalidade.'
O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 6 de Março de 1996, indeferiu a arguição de nulidade, porquanto entendeu que o acórdão cuja nulidade foi arguida se limitara a alterar a qualificação jurídico-criminal - e apenas para efeito de decidir sobre a sua invocada punibilidade face ao Código Penal revisto -, sem alterar os factos.
4. Interpôs, então, o arguido recurso deste último acórdão, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), para 'ver declaradas inconstitucionais as normas da alínea b) do art. 379º, 358º e 359º do C.P.P. por, na aplicação que delas se fez no acórdão recorrido se descortinar violação do disposto no artigo 32º, nºs
1 e 5 da Constituição da República Portuguesa'.
Depois de reiterar que o Acórdão da Relação de Coimbra de 12 de Janeiro de 1996 alterou a qualificação dos factos, escreveu o recorrente no requerimento de interposição do recurso que 'desta forma subsistindo a opinião de que o Acórdão é nulo por ter violado o disposto nos artigos 379º, alínea b),
358º e 359º do C.P.P., o que claramente se mostra inconstitucional face ao disposto no artigo 32º, nºs. 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa' e, bem assim, que 'o que o recorrente pretendeu no seu requerimento de arguição de nulidade foi pugnar pela existência, no caso concreto, das garantias de defesa constitucionalmente garantidas ao arguido, estatuídas no artigo 32º, nºs. 1 e 5 da Constituição e consagradas nos artigos 379º, alínea b) e 358º e 359º do C.P.P. (...)'.
Nas suas alegações produzidas neste Tribunal, o recorrente concluiu do seguinte modo:
'a) O arguido encontrava-se acusado de ter cometido o crime de
'atentado ao pudor' p.e p. nos termos do artigo 206º nº 2 do Código Penal de
1982.
b) O superior Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a sua condenação nos termos da anteriormente proferida em 1ª instância.
c) Para tal fez corresponder ao anterior artº 206º, nº 2, daquele Código o actual artº 163º.
d) Tal artigo - actual 163º - como supra se alegou corresponde ao anterior artº. 205º do Código Penal de 1982, que pressupõe o uso de violência.
e) O arguido não foi acusado de atentado ao pudor com violência nos termos do artº. 205º do anterior Código Penal.
f) Ao alterar, assim, os factos constantes da acusação o superior Tribunal da Relação de Coimbra não concedeu ao arguido a possibilidade de fazer prova de quaisquer circunstâncias susceptíveis de afastar a punibilidade dos factos.
g) Desta forma subsistindo a opinião que o acórdão condenatório é nulo por violação do disposto no artº. 379º, al. b), 358º e 359º do C.P.P.
h) Igualmente violando o referido acórdão os comandos do artº. 32º nºs. 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa na aplicação concreta que daqueles supra-referidos artigos do C.P.P. se fez.
i) Tendo o recorrente sido condenado por factos diferentes dos que constavam da douta acusação'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal encerrou assim as suas contra-alegações:
'1º- Como decorrência dos princípios do contraditório e das garantias de defesa, deve o Tribunal, em fase de julgamento do recurso, conceder ao arguido a oportunidade de - antes de proferida decisão final - se pronunciar, querendo, sobre questões jurídicas novas, não abordadas na decisão recorrida e com que o arguido, mesmo agindo com a diligência devida, não podia razoavelmente contar, de modo a abordá-las na sua motivação de recurso.
2º- Constitui 'questão nova', susceptível de determinar a prévia audição do arguido, a ocorrência de relevante alteração legislativa no domínio da tipificação dos crimes imputados ao arguido, de modo a facultar-lhe o exercício do contraditório relativamente à qualificação e enquadramento jurídico, perante a lei nova, da factualidade assente, com vista à aplicação das regras constantes do artigo 2º, do Código Penal.
3º- Padece de inconstitucionalidade a interpretação restritiva da norma contida no artigo 358º do Código de Processo Penal, em termos de se considerar que o exercício do contraditório apenas deve ter lugar perante uma alteração da matéria de facto relevante, mas já não perante o surgimento de questões jurídicas novas'.
5. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir, começando-se pela análise da questão de saber se deve, ou não, tomar-se conhecimento do recurso.
II - Fundamentos.
6. O relato anterior deixa imediatamente perceber que não deve este Tribunal conhecer do presente recurso. Com efeito, o recurso de constitucinalidade previsto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto normas jurídicas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, sendo certo que, salvo em situações excepcionais, o momento da reclamação por nulidades da decisão recorrida não é já momento idóneo e atempado para suscitar tal questão de inconstitucionalidade (cfr. Acórdão nº
591/95, ainda inédito, e o Acórdão nº 318/90, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1991, e também nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º volume, pp. 249 e ss.). Atendendo a que no acórdão recorrido foi feita uma nova qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, ao abrigo do Código Penal revisto, deve entender-se que o requerimento de arguição de nulidades constitui a primeira oportunidade processual de que dispôs o arguido para suscitar a questão de inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicadas na decisão recorrida - tese esta que foi sufragada no despacho de admissão de recurso no Tribunal da Relação de Coimbra.
Todavia, tem de considerar-se que, tendo em conta o modo como a questão foi apresentada (e que foi reproduzida no ponto 3), não foi suscitada, no referido requerimento de arguição de nulidades, uma questão de inconstitucionalidade normativa: a inconstitucionalidade foi imputada ao acórdão, sendo exigência constitucional e legal - e jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional - que o objecto do recurso de constitucionalidade sejam apenas as normas jurídicas e não as decisões judiciais elas mesmas (cfr. Acórdãos nºs. 591/95, 661/95, ainda inéditos, e o já citado Acórdão nº 318/90).
Acresce que, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional - que, seguramente, já não configuraria, mesmo excepcionalmente, momento idóneo para suscitar a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (atenta a anterior intervenção processual ao ser arguida a nulidade do acórdão) -, o recorrente, depois de formular o propósito de ver declarada a inconstitucionalidade de normas, acabou por imputar essa inconstitucionalidade ao acórdão e, mesmo, à inexistência, 'no caso concreto, das garantias de defesa constitucionalmente garantidas ao arguido' (cfr. supra, ponto 4). O mesmo fez, aliás, nas conclusões das alegações do recurso para este Tribunal [cfr. conclusão h)].
Assim, não se tendo impugnado a inconstitucionalidade de normas jurídicas, não resulta preenchido um dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - tornando-se, por isso, desnecessária a averiguação da existência dos restantes pressupostos específicos e gerais -, pelo que não se deve tomar conhecimento do recurso.
III - Decisão.
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em cinco Unidades de Conta.
Lisboa, 14 de Maio de 1997 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida