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Proc. nº 588/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do 4º Juízo Criminal de Cascais, em que figura como recorrente J..., e como recorridos o Ministério Público e A ... e outros, a Relatora proferiu Decisão Sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de não ter sido suscitada atempadamente durante o processo a questão de constitucionalidade normativa. Nessa Decisão, considerou-se que o despacho de pronúncia não consubstanciou uma “decisão surpresa”, pois pronunciou a arguida pelos factos e de acordo com as disposições legais constantes da acusação do Ministério Público .
2. A recorrente vem agora reclamar da Decisão Sumária, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, concluindo o seguinte:
1. A questão em apreço não poderia ter sido suscitada no processo, em termos de ser conhecida pelo juiz a quo, pois que (i) não só ela não integrava o objecto da instrução nem foi suscitada em sede de debate instrutório (ii) como ao ter sido decidida na pronúncia o foi em acto processual de que a ora reclamante não poderia apresentar recurso (iii) como finalmente se trata de uma dimensão normativa do preceito em causa que é inovadora face à sua interpretação usual e corrente.
2. Nestes termos, a reclamante não poderia ter suscitado a questão, pelo que não assiste razão à decisão sumária sob reclamação.
3. Nestes termos deve a mesma ser revogada e ordenado que o processo siga os seus termos até final.
Os reclamados pronunciaram-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
3. A reclamante sustenta que “não podia legitimamente contar com a dimensão normativa que (...) acabou por conhecer na interpretação e processo de subsunção que o Meretíssimo Juiz a quo efectuou”, porque no requerimento de abertura de instrução “a reclamante colocou a questão de saber quem seria
‘proprietário’ dos bens em causa”, uma vez que não estava “dissolvido o património do casal”. A reclamante afirma que tendo colocado tal questão, foi surpreendida pelo despacho de pronúncia, na medida em que este prescindiu do conceito de propriedade “para passar a considerar como tipicamente relevante para o efeito do desenho típico do furto (...) as ‘utilidades’ e os ‘interesses’ inerentes à propriedade”.
Ora, como se sublinhou na Decisão Sumária reclamada, a reclamante foi confrontada com uma acusação que qualificou como furto a prática de determinados factos devidamente discriminados e identificados nos autos. Pretendendo impugnar a acusação, a reclamante requereu a abertura de instrução. Se considerava não existir a possibilidade jurídica de ser acusada pelos factos descritos nos autos, em virtude de não se encontrar judicialmente resolvida a questão da titularidade do direito de propriedade sobre as coisas alegadamente furtadas, então dispunha de todos os elementos necessários para suscitar a inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 203º do Código Penal, nos termos da qual os factos por ela praticados correspondem ao tipo legal de furto, dimensão que necessariamente havia sido acolhida pela acusação pública.
A decisão instrutória pronunciou a arguida pelos mesmos factos da acusação do Ministério Público, qualificando-os de igual modo. Explicitou, como se referiu na Decisão Sumária impugnada, a interpretação do artigo 203º do Código Penal. Não constituiu, porém, uma qualquer decisão objectivamente inesperada. Na verdade, a reclamante, suscitando a questão de titularidade do direito de propriedade dos bens indiciariamente furtados no contexto da impugnação de uma acusação que qualificou como furto a substracção de tais bens, tinha o ónus de suscitar as questões de constitucionalidade normativa que considerasse pertinentes reportadas à dimensão normativa que já havia fundamentado a acusação (e que foi depois acolhida pela decisão instrutória).
Aliás, já durante o inquérito a reclamante havia suscitado a questão da titularidade da propriedade dos bens furtados (cf. auto de interrogatório de arguido de fls 247 e ss), pelo que a acusação pública ponderou necessariamente a argumentação da então arguida quanto a esse aspecto, podendo a arguida suscitar desde esse momento processual a questão de constitucionalidade normativa reportada ao artigo 203º do Código Penal na dimensão que permite a qualificação do caso dos autos como crime de furto.
Por outro lado, a reclamante sustenta que “essa questão [a da noção de coisa alheia, ou antes a questão da determinação dos bens tutelados pela incriminação do furto] não integrava o objecto da instrução, pois não constava da acusação nem constava do requerimento de instrução, nem foi colocada durante o debate instrutório”. Contudo, a questão a que a reclamante se reporta é a da interpretação do tipo incriminador, questão necessariamente presente na instrução (ao invocar a titularidade do direito de propriedade, é precisamente essa questão que pretende ver apreciada), mas também presente já na fase de inquérito e, portanto, na acusação, onde surge pela primeira vez com a configuração que a reclamante pretende impugnar.
Os argumentos da reclamante afiguram-se, assim, improcedentes.
4. A reclamante afirma que a dimensão normativa impugnada foi acolhida “numa decisão judicial de que não cabe recurso (artigo 310º, nº 1, do CPP), pelo que não poderia então a ora reclamante suscitá-la em termos de ela ser conhecida pelo próprio juiz a quo”.
Na Decisão Sumária sob reclamação nunca se questionou a irrecorribilidade da decisão intrutória. O que se considerou foi que antes da prolação da decisão instrutória a ora reclamante teve oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
Nessa medida, as considerações da reclamante sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória não tem qualquer pertinência na presente reclamação.
5. A reclamante afirma, por último, que a interpretação acolhida pela decisão instrutória é doutrinalmente inovadora (pretendendo com tal asserção demonstrar que a mesma foi inesperada).
Ora, ainda que se tratasse de uma dimensão normativa doutrinalmente inovadora, o que não cabe ao Tribunal Constitucional averiguar nestes autos, a verdade é que a reclamante foi confrontada com tal interpretação no momento da acusação do Ministério Público. Desse modo, quando requereu a abertura de instrução, já a podia impugnar na perspectiva da constitucionalidade.
De resto, a própria reclamante reconhece que já tinha conhecimento da dimensão normativa em causa, quando afirma saber da existência de “quem comungue do mesmo ponto de vista doutrinal” ou quando admite tratar-se de uma interpretação não disseminada, porque recente ou minoritária.
6. A suscitação da referida questão de constitucionalidade normativa nos presentes autos antes da prolação da decisão recorrida não implica, assim, e ao contrário do que a reclamante sustenta, que o interessado tenha de considerar “todas as miríades possíveis de interpretações possíveis das normas legais”, “um conhecimento enciclopédico” ou “um esforço de imaginação idêntico ao mais hábil dos juristas”.
Na verdade, a suscitação tempestiva da questão de constitucionalidade normativa que a reclamante pretende ver apreciada era perfeitamente possível em face de elementos constantes dos presentes autos, apenas dependendo da estratégia delineada pela defesa na condução do processo.
7. Improcede, portanto, a presente reclamação.
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação da decisão de não conhecimento do objecto do recurso, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002- Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa