Imprimir acórdão
Procº nº 994/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Em processo de instrução preparatória pendente pelo 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Macau promoveu o Ministério Público que, de entre outros arguidos, V... ficasse sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Contudo, o Juiz daquele Juízo, entendendo não existirem indícios suficientes para imputar àquele arguido a prática do crime de direcção, chefia e pertença de associação ou sociedade secreta , previsto e punível nos artigos 2º, nº 1, alíneas g) e i), e 4º, números 1 e 2, da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro,
1º, alíneas h) e j), e 2º, números 1, 2 e 3, da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, sujeitou-o à medida de coacção de termo de identidade.
Não se conformando com uma tal decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal Superior de Justiça de Macau.
Rematou o arguido V... a alegação que dirigiu a tal Tribunal Superior formulando, por entre outras, as seguintes «conclusões»:-
'................................................................................................................................................................................................ b) Ao mandatário dos ora recorridos foi vedado o direito de consultar integralmente o processo, a fim de contraditar a pretensão do M.P.. Tal facto colide com os princípios constantes da C.R.P., das garantias de defesa do arguido (artº 32º nº 1), do contraditório (artº 32º nº 5), e do acesso ao direito e aos tribunais (artº 20º nº 1). c) Deverão, pois, V. Exªs. declarar materialmente inconstitucional a norma do artº 70º do C.P.P./1929, na interpretação restritiva que dela fez o Mº J.I.C., mediante promoção do M.P., e em consequência decidir pelo reenvio do processo ao tribunal 'ad quem' para que aos recorridos, através do seu mandatário, possa ser dado acesso aos autos, a fim de elaborar novas alegações.
.................................................................................................................................................................................................. j) O artº 2º da Lei nº 1/78/M (ou o artº 1º da Lei nº 6/97/M) viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade (artº 29º da C.R.P.) porquanto a 2ª parte dessa norma é obscura. Obscura porque se não entende o alcance da expressão 'outros meios, nomeadamente' (ou 'outros factos, designadamente'), tal a abrangência do preceito e a imprecisão das eventuais condutas que se poderão eventualmente subsumir no conceito de associação secreta; e obscura porque se não compreende se a prática dos crimes elencados tem forçosamente subjacente dois ou mais autores ou tão somente ' a autoria individual organizada'. k) Mas a citada norma, seja a da Lei nº 1/78/M ou a da Lei 6/97/M, viola também o princípio da presunção da inocência do arguido (artº 32º nº 2 da C.R.P.), porquanto presume a existência de uma associação secreta através da manifestação da prática, cumulativa ou não, dos crimes que aí se elencam.
Finalmente l) A norma invocada pelo M.P. – aquela que elenca os crimes incaucionáveis – impondo ao juiz um regime em manifesta oposição com o disposto no artº 27º nºs 2 e 3 e 28º nº 2 da C.R.P., colide frontalmente com o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória'.
Por acórdão de 27 de Julho de 1998 o Tribunal Superior de Justiça de Macau, determinou a prisão preventiva do arguido, tendo, para alcançar uma tal decisão, discreteado, em dados passos:-
'...............................................................................................................................................................
A quarta questão avançada pretende ver violados os princípios da legalidade e da tipicidade por banda dos art.ºs 2.º da Lei n.º 1/78/M e 1.º da Lei n.º 6/97/M, na medida em que teriam deixado imprecisas as condutas susceptíveis de integrar o crime de associação criminosa.
Mais uma vez não vemos que seja de dar crédito a tais violações.
Como escrevemos em outro lugar (cfr. nosso Código Penal Português, Anotado, Vol. I, 88), o princípio da legalidade ou da reserva legal intenta impor a regra de que «só à lei compete fixar os limites que destacam a actividade delituosa da actividade legítima», dando assim corpo à prescrição constitucional (art.º 29.º) de que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão.
Assim, «não basta... que alguém tenha cometido um facto anti--social, merecedor da reprovação pública, se esse facto escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde, precisamente, a uma das figuras delituosas previamente consagradas de forma abstracta na lei» (cfr. as nossas Noções Elementares de Direito Penal de Macau, fls. 7 e 8).
Este princípio de legalidade tem obviamente como corolário o princípio da tipicidade, de harmonia com o qual, cabendo à lei e só a ela dizer o que é crime, será através da técnica dos modelos ou tipos que se vai fazer a consagração das condutas criminalmente proibidas.
Isto é: o legislador desenha um esquema ou uma fórmula que servirá de padrão de aferimento para se saber se determinada conduta preenche ou não aquilo que o legislador pretendeu criminalizar.
Donde o ser de concluir que, através desta técnica, só se poderá considerar crime o que se ajustar ao tipo ou modelo concebido pela lei.
Há várias formas de se chegar até lá, não sendo demasiado rígidos, nesse aspecto, os sistemas normalmente adaptados.
Ora se desenham modelos muito circunstanciados, em que todos os elementos do tipo (objectivos ou descritivos, subjectivos; normativos; etc.) ficam perfeitamente definidos, ora se opta por tipos demasiado abertos (que podem ir até à utilização das chamadas leis penais em branco), ora se prefere a técnica da casuística exemplificativa ou exemplos/padrão, ou ainda outras intermédias, comungando porventura de características comuns às técnicas mais utilizadas.
O que será sempre indispensável é que seja a lei penal a descrever os elementos do tipo e que o faça de modo a que a indeterminação que eventualmente possa conter não vá além de certos limites razoáveis a ponto de cair no esvaziamento de conteúdo da norma incriminadora.
Foi o que aconteceu aqui com o legislador das leis 1/78/M e 6/97/M ao modelar o tipo correspondente à associação criminosa, que caracterizou como a organização constituída para cometer crimes ou obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não de determinados crimes que enumera.
Há aqui, pois, uma mistura de tipos diferentes, que acaba por ir até à modalidade da casuística exemplificativa, mas onde sempre impera o respeito pelo princípio da legalidade (só à lei penal cabe definir o que é crime) e também pelo princípio da tipicidade (a lei penal não modelou o tipo de forma tão indeterminada que neutralize a garantia de segurança que advém dessa técnica).
Donde não ser se vislumbrar na técnica adoptada qualquer desrespeito dos invocados princípios.
A quinta questão prévia que vem posta arruma no mesmo 'item' a violação dos princípios das garantias de defesa, do contraditório, da igualdade das partes e do acesso ao Direito e aos Tribunais.
E isto porque - diz-se na resposta às alegações -, tendo o arguido, solicitado que lhe fossem confiados os autos de I.P. n.ºs 482/97 - 2.º juízo do T.I.C., «para que pudesse indicar as peças processuais destinadas a instruir as respostas aos presentes autos de recurso», tal não lhe foi concedido, o que o colocou em desigualdade com o M.º P.º recorrente, na medida em que este pôde alegar à vontade no recurso por si interposto, «depois de ter tido acesso a todos os autos, na sua globalidade».
Impedido assim de organizar devidamente a sua resposta - conclui o arguido - ficaram «inexoravelmente coartadas as suas garantias de acesso à justiça e aos tribunais para fazer valer os seus direitos e irremediavelmente limitadas as suas garantias constitucionais de defesa», o que constituiu clara violação dos «princípios das garantias de defesa consagrados no art.º 32.º, n.º
1, do contraditório e da igualdade das partes do art.º 32.º, n.º 5 e do acesso ao Direito e aos Tribunais do art.º 20.º, n.º 1, todos da C.R.P.» (cfr. fls. 35 e ss.).
Também não cremos que haja aqui qualquer desrespeito pelos comandos constitucionais.
E vamos tentar dizer porquê.
Efectivamente, foi solicitada pelo arguido ao Senhor Juiz de instrução, e através do seu advogado (fls. 2772), a confiança do processo, com vista à recolha de elementos destinados à organização das contra-alegações, tendo o julgador decidido, a promoção do M.º P.º, fornecer apenas ao impetrante a indicação das peças processuais a ser consultadas para tal fim, já que o processo se encontrava em segredo de justiça (despacho de 08.06.98 - fls. 2814 v.º).
Ora, como se escreveu em anterior aresto deste Tribunal Superior
(rec.º n.º 880/96) e invocando o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 121/97
(Proc.º n.º 601/96, D.R. III Série, n.º 100, de 30.04.97) - a situação aqui é a mesma -, no actual quadro legal (art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P. e 79.º do C.P.P. de Macau - e o mesmo se pode dizer em relação ao anterior ordenamento - cfr. art.º 70.º, do Cód. Proc. Penal de 1929), «não é possível sustentar que os princípios do contraditório e da igualdade de armas imponham ao legislador que consagre, em todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase do inquérito pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido».
Assim, em processo penal, «não se pode falar, em absoluto, numa igualdade de armas entre o M.º Pº. e o arguido, pelo que esta questão se coloca aqui em moldes diversos do que sucede em processo civil», já que ponderosas razões de acautelamento da prova recolhida e a recolher podem impor restrições ao livre acesso aos autos, como sucede com as infracções integrantes da chamada criminalidade organizada, onde se revela a necessidade de uma maior prudência nessa preservação, quando podem ser postos em causa resultados investigatórios importantes e sigilosos.
De resto, tratando-se de um recurso circunscrito à questão da aplicação ou não de um medida de coacção, não se impunha de todo que a consulta dos autos se estendesse ao processado na sua globalidade, bastando que o fosse nos segmentos que directamente lhe dissessem respeito.
Ponto é que o viesse a ser na medida do indispensável.
Ora, não se vendo que a defesa da posição do arguido no recurso tenha saído afectada com essa consulta parcial, e sendo certo que esta se moveu dentro das prescrições legais, não cuidamos que tenha havido violação quer do art.º
70.º do Cód. Proc. Penal, quer dos art.ºs 32.º, n.ºs 1 e 5 e 20.º, n.º 1, da C.R.P..
Como remate, deixa-se aqui a nota de que o Senhor Juiz, na decisão em que deferiu o acesso parcial aos autos na secretaria do T.I.C., teve o cuidado de consignar que «o prazo será suspenso 5 dias para as devidas preparações das contra-alegações pelos arguidos, a partir da notificação do presente despacho»
(cfr. fls. 28l4 v.º).
Ultrapassadas as questões prévias há que ponderar sobre o mérito dos recursos, seja sobre a matéria de fundo.
Essencialmente resume-se ela ao problema da existência ou não de
'indícios fortes' da prática, por parte dos arguidos, do apontado crime de associação criminosa e, consequentemente, da justificação para a aplicação da medida de prisão preventiva.
..................................................................................................................................................................................................
Aqui os 'indícios fortes' que se pretendem ver reunidos são os da prática de um crime de associação criminosa, tal como ele vem configurado quer na Lei n.º 1/78/M, quer na Lei n.º 6/97/M.
Ora este delito, como antes se tentou demonstrar, aparece desenhado nos preceitos legais respectivos segundo uma técnica que tanto pode seguir formas directas de tipificação (v.g. acordo ou convenção com vista à obtenção ilícita de vantagens ou benefícios), como formas indirectas (v.g. através da prática, cumulativa ou não, de determinados crimes de catálogo que funcionam indicadores - o chamado processo dos exemplos/padrão).
Quer uma quer outra das referidas técnicas não constitui, contudo, expediente proibido de tipificação, desde que fiquem claramente definidos os pressupostos da infracção, e, em caso de alguma indeterminação, que o modelo se contenha dentro dos limites do razoável, por forma a permitir uma interpretação da norma ainda dentro dos conteúdos do preceito incriminador.
Isto é: a valoração jurídico-criminal dos comportamentos deve ser formulada de maneira tanto quanto possível precisa e que não ofereça dúvidas relativamente às expressões da vida humana que, na perspectiva do legislador, encarnam a negação dos valores jurídico- - criminais.
Como referimos em outro lugar, «as leis penais devem ser redigidos com a maior clareza possível, para que tanto o seu conteúdo como os seus limites se possam deduzir, o mais exactamente possível, do texto legal, uma vez que o grau de vincularão do juiz à norma jurídica se determina pelo grau de exactidão com que a vontade comum se consegue exprimir na lei» (Noções Elementares do Direito Penal de Macau, 9).
Produzidas estas abreviadas considerações interessa então traçar o figurino do crime em apreço.
Usualmente constroi-se o delito de associação criminosa a partir da conjunção de três marcos essenciais: o elemento organizativo - ou seja, uma recíproca conjugação de vontades, em que os elementos integrantes dão a dua adesão expressa ou tácita com vista à finalidade colectiva, ainda que esses elementos nunca se tenham encontrado nem se conheçam. Para usar as palavras de NELSON HUGRIA, o elemento organizativo tem-se por verificado ainda que haja «uma organização social rudimentar, a caracterizar-se apenas pela continuada vontade de um esforço comum» (Comentários ao Código Penal Brasileiro, IX, 177 e ss.); o elemento de estabilidade associativa - isto é, a intenção de manter, no tempo, uma actividade criminosa estável, mesmo que concretamente assim não venha a acontecer; o elemento da finalidade criminosa - traduzido numa conjugação de vontades visando a obtenção de vantagens ilícitas ou a prática de crimes perfeitamente identificados na lei.
Daqui resulta, pois, que haverá associação criminosa sempre que se configure uma união de vontades, ainda que sem organização ou acordo prévio, com o propósito de, estável e de modo mais ou menos duradoiro, se praticarem actos criminosos de certo tipo, ficando assim naturalmente arredado do conceito o mero ajuntamento, ou seja, a simples reunião acidental e precária de pessoas, que sem a mínima estabilidade associativa e sedimentação, praticam uma ou mais acções criminosas.
Em Macau, o problema da criminalização das chamadas associações secretas não se quedou pelo figurino geral traçado pelo art.º 288.º do Cód. Penal, estendendo-se, como é sabido, primeiro à Lei n.º 1/78/M e mais recentemente à Lei n.º 6/97/M, onde se contêm regimes especiais na matéria.
Como se regista no preâmbulo da primeira daquelas Leis - e que pode ser extensível à segunda - «a extrema dificuldade na obtenção de prova em actividades deste cariz, dado o seu carácter eminentemente secreto e furtivo e atenta a auto-protecção de que os seus elementos se rodeiam, justifica a pré-determinação do valor probatório de certos indícios que, segundo a experiência comum, apontam, com o mínimo de garantia, a participação nas associações secretas» (sublinhados nossos).
..................................................................................................................................................................................................
Nestes termos, e face ao material probatório recolhido, é de considerar indiciada a prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 2.º, n.º 1, als. g) e i) e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 1/78/M e art.ºs 1.º, als. h) e i) (e agora pelo art.º 2.º, n.º 2, da Lei n.º 6/97/M), a que corresponde abstractamente penas de prisão que podem ir até aos 12 anos, sendo esse crime tendencialmente incaucionável, de harmonia com o estatuído nas disposições conjugados dos art.ºs
3.º, n.º 9, do D.L. n.º 274/75, de 04 de Junho, e 6.º do D.L. n.º 377/77, de 06 de Setembro, e que só excepcionalmente admite a liberdade provisória (art.º
291.º - B, do Cód. Proc. Penal de 1929) - cfr. Ac. deste T.S.J. de 13.11.96, Jurisp. 1996, II, 899.
Enquanto vigorou este último Código (art.º 291.º), a privação preventiva da liberdade, fora de flagrante delito, só era autorizada nos casos em que, cumulativamente, concorressem os seguintes requisitos:
- perpetração de crime doloso punível com pena maior;
- fortes indícios da prática do crime pelo arguido;
- insuficiência da liberdade provisória para a realização dos fins que se propõe realizar.
..................................................................................................................................................................................................
No ordenamento jurídico actual já há crimes incaucionáveis (cfr. v.g, art.º 193.º', do Cód. Proc. Penal e 29.º da Lei n.º 6/97/M) e aí, verificados que sejam os fortes indícios da prática de um tal crime, não há que demonstrar que estão verificados os requisitos gerais que o Cód. Proc. Penal em vigor
(art.º 188.º) exige para a imposição de qualquer medida de coacção (fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação, da ordem ou tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa).
É que, «do confronto do disposto nos art.ºs 188.º e 193.º resulta que nas situações referidas neste último comando legal a própria lei presume que o arguido se encontra numa das situações do art.º 188.º', razão porque dispensa a verificação de qualquer dos fundamentos e em abstracto considera que eles existem nos crimes que se referem no art.º 193.º» (SlMõES REDINHA, Sistema Processual Penal de Macau, 54).
Ora, no caso concreto, estão verificados os indícios fortes da prática, pelos apontados arguidos, de crime pelo menos tendencialmente incaucionável, em que o receio de fuga é patente como o é também o perigo de perturbação da investigação, da ordem e tranquilidade públicas, bem como de continuação da actividade criminosa, atentas a natureza do crime, a personalidade dos agentes e a sua fácil mobilidade (cfr., a propósito, o Ac. deste T.S.J. de 13.11.96, atrás citado).
................................................................................................................................................................................................'
2. Deste aresto interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez por intermédio de requerimento onde disse:-
'V..., recorrido nos autos à margem identificados, não se conformando com o douto acordão a fis ( ) que lhe foi notificado, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz com base no que adiante se diz: O recurso é interposto ao abrigo da al. b) e f) do nº 1 do artº 70 da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei no 85/89, de 7 de Setembro; Pretende-se ver apreciadas a inconstitucionalidade e ilegalidade do D.L. nº
15/98/M, de 4 de Maio, a inconstitucionalidade do artº 2º da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro e/ou o artº 1º da Lei no 6/97/M, de 30 de Julho e a inconstitucionalidade do artº 291º, do CPP de 1929, na interpretação com que foi dada na decisão agora recorrida; O primeiro diploma citado - D.L. no 15/98/M - viola os princípios constitucionalmente garantidos da inocência do arguido (artº 32º, nº 2), da liberdade ( artl 27º, nºs 1 e 2 ), da excepcionalidade da prisão preventiva
(artº 27º, nº 3 ) e o da não retroactividade da Lei Penal desfavorável ao arguido (artºs 29º, nº 4, 2ª parte, e 18º), todos da CRP. O mesmo diploma é, ainda, ilegal por violação da reserva de competência da Assembleia Legislativa prevista no artº 31º, nº 2, al. a) do Estatuto Orgânico de Macau. As segundas normas citadas – artº 2º, da Lei nº 1/78/ M e/ou o artº 1º, da Lei no 6/97/M - violam os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade
(artº 29º) e o princípio da inocência do arguido (32º, nº 2), todos da CRP. A terceira norma citada – artº 291º do CPP29 -, viola o princípio da presunção da inocência do arguido até ao transito da sentença condenatória (artºs 27º, nº
2 e 3, e 28º, nº 2, da CRP). A questão de inconstitucionalidade e ilegalidade foi suscitada nos autos a fls.
63 e 64, 102 e 103, 149 e 152.
.............................................................................................................................................................................................'
3. Por despacho proferido pelo ora relator em 19 de Novembro de 1998
(fls. 56 a 66) e com base no preceituado no nº 3 do artº 3º do Código de Processo Civil, foi entendido que o recurso interposto se deveria restringir à apreciação da 'à norma do artº 2º [recte, artº 2º, nº 1, alíneas g) e i)] da Lei nº 1/78/M [e à idêntica constante do artº 1º da Lei nº 6/97/M – recte, 1º, alíneas h) e j)] e ao artº 70º do Código de Processo Penal de 1929'.
Determinada a feitura de alegações, concluiu o recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'a) O acórdão recorrido fez aplicação - para decretar ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva - das normas dos artº 2º da Lei nº 1/78/M, de 4.2
(ou do artº 1º da Lei nº 6/97/M, de 30.7); b) Estas normas violam os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade (artº 29º, nº 1 e 3, da CRP), porquanto a 2ª parte dessas normas é obscura porque se não entende o alcance da expressão ‘outro meios, nomeadamente’
(‘ou outros factos designadamente’), tal a abrangência do preceito e a imprecisão das eventuais condutas que se poderão eventualmente subsumir no conceito de associação secreta; e obscura porque se não compreende se a mera prática dos crimes elencados por duas ou mais pessoas (a mera comparticipação criminosa) faz ou não presumir a existência de uma associação criminosa; c) Mas as citadas normas violam também o princípio da presunção de inocência do arguido (artº 32º, nº 2, da CRP), porquanto presumem a existência de uma associação secreta através da manifestação prática, cumulativamente ou não, dos crimes que aí se elencam. Há uma clara inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; d) Os princípios cuja violação se invocou vigoram no território de Macau e os tribunais nos feitos submetidos a julgamento não podem aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os seus princípios.
Termos em que e contando com o imprescindível suprimento de Vossas Excelências, deve esse Tribunal:
1. Julgar inconstitucional a norma do artº 2º da Lei nº 1/78/M, de 4.2 (ou a do artº 1º da Lei nº 6/97/M, de 30.7);
2. De qualquer forma, julgar inconstitucionais as mesmas normas, ao menos na interpretação que lhe deu a decisão recorrida:
3. Revogar, em conformidade, a decisão recorrida quanto à questão da constitucionalidade e ordenar que o Tribunal recorrido proceda à sua reforma'.
De seu lado, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções junto deste Tribunal, na alegação que produziu, após salientar que o recorrente, na sua alegação, circunscreveu a matéria do recurso à norma constantes do artº 2º da Lei nº 1/78/M '(e de idêntica norma plasmada no artigo 1º da Lei nº 6/97/M), abandonando, pois a questão referente ao artigo 70º do Código de Processo Penal', concluiu que as normas das indicadas Leis 'não violam os princípios constitucionais da tipicidade e da presunção de inocência'.
Cumpre decidir.
II
1. Preliminarmente se dirá que, aceite por recorrente e recorrido o que se determinou no despacho exarado pelo relator em 19 de Novembro de 1998, haveria o vertente recurso de incidir, e tão somente, sobre a questão de saber se violam, ou não, normas ou princípios constitucionais, os normativos que se contêm nas alíneas g) e i) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro, nas alíneas h) e j) do artº 1º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho e no artº 70º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto nº 16.498, de 15 de Fevereiro de 1929.
Todavia, o recorrente, na alegação aqui produzida, não se veio a referir à questão da por si suscitada inconstitucionalidade da norma ínsita naquele artº 70º, razão pela qual se haverá de concluir que o mesmo veio, de harmonia com a faculdade prescrita no nº 3 do artº 684º do Código de Processo Civil, a restringir o objecto da sua impugnação por forma a ele não abarcar tal norma, razão pela qual o recurso em causa somente incidirá sobre aqueloutras normas acima indicadas.
2. A norma constante do art.º 2º da Lei n.º 1/78/M, de 4 de Fevereiro, apresenta a seguinte redacção:-
(Conceito de sociedade secreta)
1. Consideram-se associações ou sociedades secretas as organizações clandestinas formadas, com propósito de estabilidade, para cometerem infracções penais e cuja existência se manifeste por convenção ou quaisquer outros factos, designadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes ilícitos:
..............................................................................................................................................................................................
g) Agiotagem ou usura criminosa;
..............................................................................................................................................................................................
i) Exploração de jogo de fortuna ou azar ou apostas clandestinas;
.............................................................................................................................................................................................
De outro lado, norma ínsita no art.º 1º da Lei n.º 6/97/M, de 30 de Julho, apresenta uma formulação em grande passo idêntica, ao dispor:-
(Definição de associação ou sociedade secreta)
1. Para efeitos do disposto na presente lei, considera-se associação ou sociedade secreta a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes crimes:
..............................................................................................................................................................................................
h) Exploração ilícita de jogo, de lotarias ou de apostas mútuas, e cartel ilícito para jogo;
..............................................................................................................................................................................................
j) Usura para jogo;
..............................................................................................................................................................................................
No entendimento do recorrente, as normas do art.º 2º da Lei n.º
1/78/M, (ou do art.º 1º da Lei n.º 6/97/M) violam os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, invocando, por isso, contraditoriedade com o disposto nos números 1 e 3 do artigo 29º da Constituição.
Vejamos.
3. O princípio da tipicidade em matéria criminal postula que a lei deve conter, entre outros requisitos, e para se usarem as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, 193) 'suficiente especificação do tipo de crime (ou os pressupostos das medidas de segurança), tornando ilegítimas as definições vagas, incertas, insusceptíveis de delimitação'.
Para os mesmos autores, tal princípio 'exclui tanto as fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime, como as penas indefinidas ou de moldura tão ampla, que em tal redunde.'.
O preceito constitucional constante do artigo 29º, enunciador do aludido princípio da tipicidade, não deixa, porém, de apelar a outros princípios constitucionais, relevando agora o denominado princípio da legalidade, segundo o qual 'só a lei é competente para definir crimes (bem como os pressupostos das medidas de segurança) e respectivas penas (bem como as medidas de segurança)'
(autores e ob. cit., pág. 192; cfr., sobre este princípio, Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, 1992 e Sousa e Brito, A Lei Penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 2º, 197 e segs.).
Para o recorrente, ferem os dois indicados princípios as normas constantes da segunda parte [do nº 1] do artº 2º da Lei nº 1/78/M e da segunda parte [do nº 1] do artº 1º da Lei nº 6/97/M, pois que, no seu entendimento, ela torna tais normas «obscuras», ao se utilizarem aí as expressões 'outros meios, nomeadamente' e 'ou outros factos designadamente'.
3.1. A forma como é, pelo recorrente, efectuada a impostação deste problema, remete-nos para a questão, comummente aflorada em torno do princípio da legalidade, que é a da chamada lei penal em branco, ou seja, 'aquela lei que remete para uma fonte normativa de valor hierárquico inferior, ..., a definição dos seus próprios pressupostos de aplicação.' (Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 1º vol., 2ª edição – 1985, pág. 381).
Tais normas em branco são, por natureza, opostas ao fundamento do princípio da legalidade, o qual reclama 'que as normas penais sejam especialmente precisas. ..., que não deixem no vago ou a uma instância normativa de valor inferior a determinação dos seus próprios pressupostos de facto de aplicação.' (Teresa P. Beleza, ob. cit., pág. 382).
Na esteira desta doutrina e aceitando aqui entendimento seguido no Acórdão deste Tribunal n.º / , proferido no processo n.º 912/98, da 1ª secção, ainda inédito, cuja cópia se junta, convém sublinhar que, quer a Lei n.º 1/78/M, quer a 'Lei n.º 6/97/M combinou, no artigo 1º, a técnica da descrição de um tipo aberto – o de ‘associação criminosa’ – com a enumeração exemplificativa, por remissão para vários tipos de crime tipificados na lei.' Assim, e talqualmente se fez naquele aresto, também aqui se concluirá que, tendo em conta o método usado pelo legislador naqueles diplomas, não colhe a tese de nos preceitos em causa se estatuírem verdadeiras normas incriminadoras «em branco».
Com efeito, e usando-se, com vénia, a fundamentação carreada no indicado Acórdão, a 'técnica não afronta os princípios da tipicidade e da legalidade, na medida em que, deixando uma margem de liberdade subsuntiva ao juiz, essencial para articular os dinâmicos factos com a estática norma, não desprotege o arguido. A remissão para crimes tipificados assegura um apoio suficiente à incriminação, não permitindo que sobre ela recaia um juízo de inconstitucionalidade por desrespeito dos parâmetros mínimos que a Constituição exige.'
Seja como for, e não olvidando que nos situamos num processo de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa em que, forçosamente, não pode este Tribunal desligar-se dos contornos fácticos que estiveram subjacentes
à interpretação e aplicação das normas em apreciação, não se pode passar em claro que, in casu, a decisão recorrida proferida pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau considerou indiciada a prática pelo arguido de um crime previsto e punível pelos artigos 2º, nº 1, alíneas g) e i) e 4º, nº 1, ambos da Lei n.º 1/78/M, e artigos 1º, alíneas h) e j), da Lei n.º 6/97/M.
Significa isso, inquestionavelmente, que o acórdão impugnado, ao se alicerçar naquelas alíneas, não se limitou a lançar mão das asserções 'quaisquer outros factos, designadamente' ou 'outros meios, nomeadamente', utilizadas no corpo dos nº 1 do artº 2º da Lei nº 1/78/M e do nº 1 do artº 1º da Lei nº
6/97/M, ou seja, interpretou e interpretou as normas incriminadoras com referência expressa a actos, acções ou comportamentos crimes devidamente tipificados e para os quais não é necessário utilizar outros conceitos, quer normativos, quer da própria experiência.
4. No tocante à alegada obscuridade, esgrimida pelo recorrente, da norma e que, nas suas palavras, consistiria na circunstância de as normas sub iudicio suscitarem a dúvida de saber 'se a mera prática dos crimes elencados por duas ou mais pessoas (a mera comparticipação criminosa) faz ou não presumir a existência de uma associação criminosa', convém sublinhar que, as referidas normas, tal como resulta do seu teor literal - e como tal foi acolhido pela decisão sob censura, que sobre este ponto discretou do modo acima transcrito -, apontam claramente, para que 'haverá associação criminosa sempre que se configure uma união de vontades, ainda que sem organização ou acordo prévio, com o propósito de, estável e de modo mais ou menos duradoiro, se praticarem actos criminosos de certo tipo, ficando assim naturalmente arredado do conceito o mero ajuntamento, ou seja, a simples reunião acidental e precária de pessoas, que sem a mínima estabilidade associativa e sedimentação, praticam uma ou mais acções criminosas.'.
Daqui se extrai que é intento da lei - e como tal reflectido nas expressões que utiliza -, na definição do que seja uma associação criminosa, uma conjugação ou união de vontades iluminada por um carácter de estabilidade mais ou menos prolongado no tempo e com o objectivo da prática de determinados ilícitos [no vertente caso, os elencados nas alíneas g) e i) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 1/78/M e h) e j) do nº 1 do artº 1º da Lei nº 6/97/M], o que vale por dizer que, talqualmente se interpretaram e aplicaram os indicados normativos, ficou afastada a mera comparticipação criminosa.
5. É ainda posto em causa pelo recorrente a validade constitucional das mencionadas normas, por isso que, na sua perspectiva, as mesmas conflituariam com o princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no nº 2 do artigo 32º da Lei Fundamental, já que delas se retiraria 'clara inversão do ónus da prova em detrimento do arguido', visto que nas mesmas se presumiria
'a existência de uma associação secreta através da manifestação prática, cumulativamente ou não, dos crimes que aí se elencam'.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., 204), depois de referirem não ser fácil a determinação do sentido do princípio da presunção de inocência do arguido, ensinam que esse princípio 'surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.'
E acrescentam:-
Este princípio considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois que o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação. Os princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena' .
Mais uma vez seguindo de perto o Acórdão n.º / , também se dirá que
'[a] lei utilizou a técnica de definição ou descrição – ‘considera-se associação criminosa...’ – indicando os diversos elementos ou contornos da conduta criminosa. Tal técnica não inviabiliza ao arguido a produção da contraprova, no
âmbito do contraditório. A norma penal, como qualquer norma jurídica, inclui uma previsão, gizada abstractamente, e uma estatuição, que será ou não aplicada aos factos, consoante estes sejam ou não subsumíveis na previsão. Não se trata de uma presunção, muito menos de uma presunção de culpa' e que '[a] Constituição não proíbe a suspeita sobre a culpabilidade, proíbe tão somente a negação ao arguido das garantias de defesa para inverter essa suspeita e a inviabilização, pelo legislador, do seu pleno exercício.'
Não se vislumbra, em consequência, que a formulação usada nos normativos em espécie à inversão do ónus da prova. De facto, a acusação terá sempre de demonstrar a existência dos factos que permitam conduzir à suspeita de culpabilidade. O arguido, como em qualquer circunstância, não está impedido de usar todos os meios de defesa ao seu alcance para infirmar tal juízo de imputação, designadamente, através de produção de prova em contrário, sem que isso implique inversão do respectivo ónus.
Termos em que se não lobriga, por banda das normas em apreciação, violação das normas ou princípios constitucionais sustentada pelo recorrente.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta. Lisboa, 10 de Março de 1999 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa