Imprimir acórdão
Processo nº 756/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Na sequência do despacho final de viabilidade proferido no processo de investigação oficiosa da paternidade, o Ministério Público instaurou no Tribunal de Círculo das Caldas da Rainha uma acção de investigação da paternidade contra J. M., pedindo que fosse declarado pai do menor J. F., filho de M. F. A acção foi julgada procedente, por sentença que viria a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em via de recurso de apelação. Interposto recurso de revista, o recorrente, nas correspondentes alegações, para além de outras questões que, em sede de fiscalização da constitucionalidade, não relevam, veio invocar:
– a 'inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 203º da O.T.M.', que estabelece que, no processo de averiguação oficiosa da paternidade, 'não podem intervir mandatários judiciais, salvo na fase de recurso', por violação do nº 2 do artigo
20º e dos nºs 2 e 3 do Artigo 18º da Constituição. Desta inconstitucionalidade resultaria a anulação dos autos de investigação oficiosa e, portanto, da acção de investigação de paternidade subsequente;
– a deficiência da instrução promovida pelo curador, que, não tendo recorrido à realização de exames sanguíneos, meio de prova particularmente seguro no que toca ao estabelecimento de relações de paternidade, violou 'sobremaneira o art.
202º da O.T.M., e [actuou] nada em conformidade com o que dispõe o nº 1 do art.
221º da Constituição'. Esta omissão deveria conduzir a 'ser declarada a inconstitucionalidade da A.O.P., dos presentes autos, em virtude da conduta do curador';
– a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão de viabilidade no despacho final da investigação oficiosa, que, consequentemente, seria nulo e inconstitucional, 'enquanto violador do nº1 do artigo 208º da Constituição' (redacção anterior). E referiu,
'ainda a respeito do despacho final, a inconstitucionalidade do artº 205º, da O.T.M. por violação do art. 20º da Lei Fundamental', pois não lhe foi reconhecido o direito ao recurso. Concluiu solicitando que fosse dado provimento ao recurso e anulado o acórdão recorrido (directa ou indirectamente, consoante os fundamentos invocados). O Supremo Tribunal de Justiça, porém, não lhe deu razão em nenhum ponto. Restringindo a sua intervenção aos problemas de constitucionalidade, justificando que, sendo novas todas as questões suscitadas nas alegações, apenas caberia na sua competência a apreciação das que admitem conhecimento oficioso, veio, em síntese, decidir o seguinte:
– Quanto à alegada inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo
203º da O.T.M., observou que não consta dos autos que haja sido solicitada e negada a intervenção de mandatário, não existindo, sequer, qualquer suporte fáctico (nem alegação, nem prova) que permita tomar conhecimento da questão suscitada, pela primeira vez, no recurso de revista;
– Quanto à deficiência eventual da instrução, considerou o Supremo Tribunal de Justiça que o recorrente não invocou qualquer inconstitucionalidade, apenas a acusou de ser incompleta; o Finalmente, quanto às restantes inconstitucionalidades, também o Supremo Tribunal de Justiça entendeu não existirem elementos que lhe permitissem emitir qualquer juízo, nem quanto à invocada falta de fundamentação, nem quanto
à hipotética impossibilidade de recurso (' Por outro lado, e de novo, que suporte fáctico oferece o recorrente? Nenhum – quis recorrer e tal foi-lhe recusado? é pergunta que, nos factos, não pode obter qualquer resposta', lê-se no respectivo acórdão). O recorrente nem sequer 'argui a inconstitucionalidade de qualquer norma que tenha sido aplicada não o devendo ser ou desaplicada devendo-o ser. E... seguramente que a invocada da OTM, como concedendo o direito ao recurso, a este se não refere'.
2. Inconformado, J. M. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Veio pedir que o Tribunal apreciasse a constitucionalidade das normas constantes dos seguintes preceitos:
– do nº 2 do artigo 203º do OTM, aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro;
– do nº 1 do artigo 202º da OTM, 'quando interpretado da forma que o fez o Curador dos Autos';
– da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, 'quando interpretado da forma que o fez o meretíssimo Juiz que proferiu o despacho final de viabilidade, na A.O.P.';
– do nº 2 do artigo 206º da O.T.M (note-se que, perante o Supremo Tribunal de Justiça, o reclamante referira o artigo 205º da O.T.M., quer no texto, quer nas conclusões das alegações de recurso);
– da al. a) do artigo 1866º do Código Civil, 'quando interpretado como fez o Supremo Tribunal de Justiça'. Como fundamento, invocou a violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais (art. 20º da Constituição), do nº 1 do artigo 221º da Constituição, que, na redacção então em vigor, incumbia o Ministério Público de 'representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar', do nº 1 do artigo 208º, também na sua anterior formulação, que determinava que as decisões dos tribunais são fundamentadas,
'nos casos e nos termos previstos na lei' e do artigo 206º da Constituição, que consagrava, igualmente na anterior redacção, o princípio da independência dos tribunais. O relator, porém , não admitiu o recurso, por faltar 'de todo a existência de substracto fáctico que permitisse conhecer da inconstitucionalidade ou não das normas aplicadas ou desaplicadas'. Deste despacho reclamou o recorrente para o Tribunal Constitucional; mas a conferência do Supremo Tribunal de Justiça, porém, confirmou a não admissibilidade do recurso, porque 'não foi proferido qualquer juízo sobre a inconstitucionalidade de qualquer norma, pelo que não há lugar ao recurso interposto', o que motivou um requerimento de arguição de nulidade do acórdão, insistindo o recorrente em ter reclamado do despacho do relator, não para esta conferência, mas para o Tribunal Constitucional. Solicitou, então, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que revogasse este 'despacho' e o substituísse por outro que mandasse remeter os autos ao Tribunal Constitucional. A Conferência do Supremo Tribunal de Justiça desatendeu a arguição de nulidade. Após terem baixado à primeira instância, segundo veio a ser decidido, indevidamente, os autos acabaram por ser remetidos ao Tribunal Constitucional.
3. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência manifesta da reclamação, essencialmente pelas seguintes razões: quanto às alegadas inconstitucionalidades dos artigos 203º, nº2 e 205º da OTM, de onde resultaria a 'proibição de intervenção de mandatário judicial no processo tutelar' e a 'inviabilidade de o pretenso pai recorrer da decisão que considera viável a acção', tais normas não foram, sequer, aplicadas nos autos, com o sentido restritivo 'de alegados direitos do pretenso pai'; relativamente à eventual deficiência instrutória e à alegada nulidade do despacho final de viabilidade, o reclamante não suscitou qualquer questão de constitucionalidade; e a mesma omissão se verificaria quanto à norma constante do artigo 1866º, a), do Código Civil.
4. Com efeito, é manifestamente improcedente a presente reclamação. Por um lado, o recurso de constitucionalidade previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, que cabe de decisões 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', não se destina a abrir uma nova instância de recurso, nem para o julgamento da causa, nem para a apreciação da correcção da decisão recorrida mas, tão somente, a possibilitar a fiscalização da constitucionalidade de normas que, efectivamente, tenham sido aplicadas nessa decisão (cfr., a título de exemplo, o acórdão nº 721/97, de 23 de Dezembro, deste Tribunal, publicado no Diário da República, II série, de 16 de Março de
1998) . Por outro lado, ao exigir que a 'inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', o legislador pretende que o tribunal que proferiu a decisão recorrida tenha tido a oportunidade de apreciar a questão da constitucionalidade, o que pressupõe a sua invocação atempada (cfr., nomeadamente, o acórdão nº 228/89, de 28 de Outubro, deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 29 de Junho de 1990).
Assim: o Quanto à 'inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 203º da O.T.M.' (ou seja, da norma que impediria a intervenção de mandatários judiciais no processo de averiguação oficiosa da paternidade, salvo na fase de recurso), não se vislumbra, no processo, qualquer aplicação com este (ou outro) sentido. Não consta dos autos, como julgou o Supremo Tribunal de Justiça, que o investigado tenha, sequer, pretendido constituir mandatário, e que tal possibilidade lhe haja sido negada. Tanto basta para ser totalmente infundado pretender a apreciação da inconstitucionalidade desta norma; o Quanto à eventual interpretação, pelo curador, do artigo 202º da OTM, que teria violado 'sobremaneira o nº 1 do art. 221º da Constituição', nem se alcança que inconstitucionalidade pretende o reclamante que seja conhecida. Não será, seguramente, um juízo sobre uma alegada deficiência da instrução que esperará deste Tribunal. Não merece, pois, qualquer reparo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que assim interpretou a alegação; o Quanto à invocada falta de fundamentação do despacho final de viabilidade, proferido na investigação oficiosa, não invocou o reclamente atempadamente a inconstitucionalidade de qualquer norma, por violação do disposto no nº 1 do artigo 208º, na redacção então em vigor, da Constituição. Note-se que, apenas no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal se refere o reclamante à interpretação do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil que teria sido aplicada 'pelo meretíssimo juiz que proferiu o despacho final de viabilidade – tendo o Supremo Tribunal de Justiça mantido a aplicação dessa interpretação' (fls. 225), apenas havendo, anteriormente, acusado 'o despacho final ' de ser 'inconstitucional enquanto violador do nº 1 do art. 208º, da Constituição' (fls. 155 e conclusão 4ª das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça). Note-se, porém, que, ainda que tivesse sido correctamente invocada a inconstitucionalidade nestas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a verdade é que já na altura tinha há muito transitado em julgado o despacho final de viabilidade, como é manifesto; o Quanto à 'inconstitucionalidade do art. 205º, da O.T.M. por violação do art. 20º da Lei Fundamental', por não ter sido reconhecido ao investigado o direito ao recurso, também se não alcança o que pretende o reclamante. Limitando-se a remeter para um preceito legal, que, literalmente, nada tem a ver com a interposição de recurso, em vez de explicitar que norma (inconstitucional) teria sido aplicada, o reclamante não possibilita qualquer juízo de conformidade constitucional de qualquer norma. Admitindo que se pretendesse referir ao artigo
206º da O.T.M., respeitante ao recurso desse despacho, uma vez que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, suscita a inconstitucionalidade do nº 2 deste artigo 206º, omitindo qualquer referência ao artigo 205º, ainda assim se teria de recusar o conhecimento por não haver qualquer indício nos autos de que (como observa o Supremo Tribunal de Justiça) o reclamante tivesse pretendido recorrer sem êxito;
o Finalmente, no que toca à eventual inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do artigo 1886º do Código Civil, que impede a acção de investigação da paternidade nos casos em que a mãe e o pretenso pai forem parentes ou afins em linha recta ou no segundo grau da linha colateral, não foi oportunamente invocada, já que só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é referida. Note-se, aliás, que também se não alcança como é que violaria o princípio de que os tribunais estão sujeitos à lei, consagrado no artigo 206º da Constituição (redacção anterior) uma interpretação deste preceito da qual teria resultado, no entender do reclamante, a nulidade do despacho saneador por não ter decidido a questão da eventual existência de tais relações familiares entre a mãe do investigante e o investigado.
Nestes termos, indefere-se a presente reclamação, condenando o reclamante em
_12_ unidades de conta de custas. Lisboa, 1 de Julho de 1998 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida