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Procº nº 683/98
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO:
1. – A... veio reclamar do despacho que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Março de 1998.
Com efeito, contra o reclamante foi proposta uma acção declarativa de condenação para obter o despejo da casa que habitava, sendo fundamento de tal acção a necessidade de que o senhorio tinha do arrendado para habitação de um seu filho. Tal acção foi julgada no Tribunal Judicial da Comarca de Mafra e o Réu e ora reclamante condenado a entregar ao Autor e senhorio a referida habitação.
Não se conformando com tal decisão, o Réu e reclamante interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, pelo acórdão acima referido, de 26 de Março de 1998, decidiu conceder parcial provimento ao recurso, 'confirmando a sentença recorrida, na parte em que condena o réu a despejar o arrendado, entregando-o livre e devoluto ao autor, e revogando o segmento que indefere o pedido de diferimento de desocupação, concedendo-se o diferimento pelo prazo de 6 meses'.
Ainda inconformado, A... veio interpor recurso daquele acórdão para o Tribunal Constitucional, alegando que a norma aplicada na decisão recorrida do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano
(RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de Outubro, ofende o artigo
168º, nº 1, alínea h), da Constituição da República, (após a revisão de 1997, o artigo 165º, nº 1, alínea h)), além de que o Tribunal Constitucional já julgou tal norma inconstitucional na parte em que se refere aos descendentes em 1º grau do senhorio, por violação do referido artigo e alínea.
2. – Por despacho de 24 de Abril de 1998, foi decidido não admitir o recurso assim interposto, por não estarem preenchidos os requisitos da sua admissibilidade.
Com efeito, refere-se no despacho em causa que, o recurso interposto ao abrigo da alínea g), do nº 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, 'pressupõe, por um lado, a aplicação pelo tribunal 'a quo' da norma arguida de inconstitucional e, por outro, a anterioridade do julgamento dessa mesma norma como inconstitucional, pelo Tribunal Constitucional'. Ora, o que releva nesta matéria 'é o facto de o tribunal 'a quo' conhecer ou não à data da aplicação da norma, o julgamento da inconstitucionalidade sobre a mesma, já efectuado pelo Tribunal Constitucional', sendo certo que tal conhecimento apenas se obtém com a respectiva publicação no Diário da República. Por último, segundo o referido despacho, 'o apelante não alega o conhecimento na ordem interna desta decisão do TC', limitando-se a informar que o mesmo foi proferido no processo 316/96 da 1ª Secção.
É contra este despacho de inadmissão do recurso que vem levantada a presente reclamação.
O Ministério Público teve vista dos autos e aí exarou um parecer em que, apreciando o sentido da expressão 'norma já anteriormente julgada inconstitucional', considera que a presente reclamação deve ser deferida não só por respeito a 'exigências de uma interpretação actualista do direito' mas também 'tendo em conta a função desempenhada pelo recurso previsto na alínea g', que se traduz na 'dirimição de um verdadeiro conflito jurisprudencial entre o Tribunal Constitucional e as restantes ordens jurisdicionais'.
Assim, defende que a orientação jurisprudencial do Tribunal, constante dos Acórdãos nºs 105/85 e 120/86 deve ser reponderada, desde logo, porque o formalismo que lhe subjaz se tornou incompatível com a divulgação quase imediata da jurisprudência através dos meios informáticos, não sendo compreensível que, por falta de publicação oficial, se precluda às partes a invocação de jurisprudência por outros meios conhecida, não podendo aplicar-se à publicação de decisões jurisdicionais concretas o princípio da publicidade constante do artigo 119º da Constituição, até por ser excessiva a consequência da ineficácia jurídica.
Refere ainda que visando o recurso da alínea g) resolver conflitos jurisprudenciais impedindo a aplicação de uma norma já julgada inconstitucional, tal conflito existe mesmo que a decisão não tenha sido publicada no jornal oficial, pelo que no entender do Procurador-Geral adjunto em exercício, 'o que deve relevar para abrir à parte vencida a via do recurso a que alude a alínea g) é, de um ponto de vista estritamente objectivo, a colisão entre certa decisão jurisdicional e o precedente jurisprudencial emergente do juízo de inconstitucionalidade já formulado pelo Tribunal Constitucional', pelo que 'a não divulgação 'formal' do acórdão que contém o julgamento de inconstitucionalidade não deverá precludir à parte a invocabilidade do precedente jurisprudencial nele contido para – fundando-se num já actual conflito de jurisprudência entre o Tribunal Constitucional e o tribunal que proferiu a decisão de que se pretende recorrer – interpor o recurso que visa precisamente dirimi-lo, outorgando a 'ultima palavra' ao Tribunal Constitucional'.
Conclui, defendendo o deferimento da reclamação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
3. – De acordo com o artigo 70º, nº1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção das decisões dos tribunais (...) que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional. Pelo seu lado, o nº 5, do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa, estabelece que 'cabe recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tribunais que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional'.
Constituem pressupostos do recurso de constitucionalidade com fundamento nestas normas, que a norma arguida de inconstitucional tenha sido aplicada pela decisão recorrida, e que a mesma norma já tenha sido anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional.
No caso em apreço, é manifesto que a norma em causa, o artigo 69º, nº 1, alínea a), do RAU, foi aplicada na decisão recorrida e constitui o objecto da questão de constitucionalidade. As dúvidas são apenas suscitadas quanto à apreciação da questão da anterioridade do julgamento de inconstitucionalidade pelo próprio Tribunal Constitucional: enquanto o despacho reclamado entende que se torna necessária a publicação do acórdão no Diário da República, o recorrente entende que basta o trânsito em julgado da decisão em causa, o qual 'se presume e é do conhecimento oficioso'.
O acórdão deste Tribunal em que se proferiu o julgamento de inconstitucionalidade agora invocado como fundamento do presente recurso, foi proferido no processo nº 316/96, e tem o nº 127/98, e a data de 5 de Fevereiro de 1998, tendo transitado em julgado no dia 5 de Março do mesmo ano. Porém, apenas foi publicado no dia 18 de Maio de 1998 ('Diário da República', II série, nº 114) com rectificação de 19 de Maio de 1998, ('Diário da República', II série de 28 de Maio de 1998).
Como se trata de apurar se determinado julgamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade normativa feito pelo Tribunal Constitucional é anterior a uma dada decisão de que se pretende recorrer, e unicamente para efeitos de interposição pela parte e de admissibilidade do recurso, parece indubitável que se tenha de atender, para definir tal anterioridade, à data do trânsito em julgado do acórdão e não à data da sua publicação.
Reconhece-se que o critério formal da publicação da decisão no jornal oficial é o que oferece maiores garantias de certeza e estabilidade do direito. Porém, não se vê que possa impedir-se a parte de invocar uma decisão do Tribunal de que tenha conhecimento, por qualquer meio, mas ainda não publicada para efeitos de nela se fundar um recurso cuja finalidade é dirimir um conflito de jurisprudência – que tal decisão resolve – só pelo facto de a mesma ainda não ter sido publicada no jornal oficial.
Neste sentido se decidiu já neste Tribunal, com o Acórdão nº467/97 (in 'Diário da República', IIª Série, de 15 de Outubro de
1997), em que se afirmou parecer indubitável 'que a anterioridade para efeitos de admissibilidade se afere pela data do trânsito em julgado do acórdão e não pela da sua publicação (...)'.
Assim, suscitada a questão pela interposição de recurso de inconstitucionalidade, nada obstava a que o tribunal 'a quo' pudesse certificar-se junto do Tribunal Constitucional, caso tivesse dúvidas, do proferimento de tal decisão, da data do seu trânsito e do sentido da mesma, assim se obviando a trâmites processuais porventura desnecessários.
Retomando a argumentação desenvolvida pelo Ministério Público, há que dar relevância à colisão objectiva e fáctica entre certa decisão jurisdicional e o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional com anterioridade.
A entender-se em contrário, ficará precludida a possibilidade que a lei procura assegurar ao Tribunal Constitucional de proferir a 'última palavra' em matéria de constitucionalidade.
Por outro lado, vistas as coisas por outro ângulo, certamente que, quanto a decisões ainda não divulgadas no jornal oficial, a sua invocação pela parte que interpõe recurso ao abrigo da alínea g) do nº 1 da Lei nº 28/82, revela um grau de diligência que não deverá ficar inaproveitado, relevante como é no sentido de proporcionar a colaboração das partes na prossecução de uma finalidade – a uniformização da jurisprudência sobre a conformidade das normas ordinárias com a Constituição – que, em termos objectivos, tem relevância constitucional. Na verdade, é por essa razão que a própria Constituição, no nº 5 do artigo 280º, prevê a obrigatoriedade de interposição de recurso pelo Ministério Público. Neste contexto, se a invocação da decisão do Tribunal Constitucional, já divulgada, não oferecer qualquer reparo, seria penalizador para a parte especialmente diligente não beneficiar do zelo demonstrado, fazendo depender das áleas da data de publicação o seu acesso
à justiça constitucional.
Nos termos do que fica exposto, tendo transitado em julgado o acórdão do Tribunal Constitucional nº 127/98 em 5 de Março de 1998, no qual se julgou inconstitucional a norma do artigo 69º, nº1, alínea a), do RAU, na parte em que se refere aos descendentes em 1º grau do senhorio, e, sendo a decisão recorrida em sentido contrário ao deste acórdão, estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
O que equivale a dizer que a reclamação suscitada contra o despacho de não admissão de recurso deve ser deferida.
III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação, determinando-se, em consequência, que o despacho reclamado seja substituído por outro a admitir o recurso interposto para este Tribunal. Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa