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Processo nº 30/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional,
'ao abrigo do disposto no artº 70º nº 1 - a) da Lei nº 28/82 de 15.11 com a redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 85/89 de 07.09', da decisão do Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada, de 15 de Dezembro de 1998, 'na parte em que recusa aplicar, porque inconstitucional, o artº 131 - nº 1, alínea a) do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL 224/A/96'.
É este o teor da decisão recorrida:
'O artigo 95º, alínea b) do E.P.AR.AA, com a redacção introduzida pela Lei nº
9/87, de 26 de Março, dispõe: ‘Constituem receitas da Região todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no seu território’. Em função disso, a legislação regional que adaptou o D.L. nº 491/85 à R.AA indicou um destino a dar ao produto das coimas e que é o Gabinete de Gestão Financeira do Emprego, organismo regional. Até aqui sempre foi claro qual o destino a dar às receitas provenientes da aplicação de coimas em matéria laboral na R.AA. O novo Código das Custas Judiciais, publicado antes da Lei Constitucional nº
1/97 e da última alteração do EPARAA (Lei nº 61/98) veio dar outro destino ao produto das coimas cobradas na Região e que é aquele que consta do seu artigo
131º, nº 1, alínea a). Este preceito legal, na medida em que retira à Região, a favor do Estado, uma receita que lhe estava legalmente atribuída é inconstitucional e ilegal. Inconstitucional porque o Governo não tem competência para alterar o Estatuto Político-Administrativo de uma Região Autónoma, seja de forma indirecta
(legislando em sentido contrário ao Estatuto), seja de forma directa (alterando os dispositivos do Estatuto) – artigo 164º, alínea b) da Constituição. Inconstitucional também porque as Regiões Autónomas têm o poder de exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, e dispor de receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhes sejam atribuídas – artigo 229º, nº 1, alínea i) da Constituição. Ilegal porque, porque nos termos do artigo 280º, nº 2, alínea c) da Constituição
(e porque prevê um tipo específico de ilegalidade cuja constitucionalidade cabe ao Tribunal Constitucional aferir), a legislação nacional não pode, quando aplicada numa Região Autónoma, contrariar o que dispõe o respectivo Estatuto. E já vimos que o artigo 131º, nº 1, alínea a) do Código das Custas Judiciais contraria frontalmente o artigo 95º, alínea b) do E.P.AR.AA. E o mesmo acontece com as últimas redacções introduzidas naquele Estatuto e na Constituição – com referência, respectivamente, aos artigos 102º, alínea b) e
161º, alínea b), 227º, nº 1, alínea j) e 288º, nº 2, alínea c).'
2. Nas suas alegações concluiu assim o Ministério Público:
'1º - A norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, ao estabelecer que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que constituam receita das Regiões Autónomas, por força do preceituado em norma constante do respectivo Estatuto Político-Administrativo, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 164º, alínea b) e 228º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na redacção então em vigor.
2º - Tal norma padecerá ainda de ilegalidade por violação da lei com valor reforçado, vício este que é do conhecimento deste Tribunal, nos termos do artigo
70º, nº 1, alínea e) da Lei nº 28/82.
3º - Termos em que deverá confirmar-se a recusa de aplicação da norma que constitui objecto do presente recurso.'
3. Tudo visto, cumpre decidir: Antes de mais importa arredar o conhecimento do vício de ilegalidade que o Ministério Público recorrente argui nas suas alegações e condensa na conclusão
2ª, pois o fundamento invocado é o da alínea e) do nº 1 do artigo 70º, da Lei
28/82, mas ele não consta do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Sabido que é esse requerimento a peça processual da parte recorrente que delimita o âmbito de tal recurso, sem prejuízo da sua redução nas respectivas alegações, e não vindo ele fundado naquela alínea e), tanto basta para concluir que o Tribunal Constitucional não vai pronunciar-se sobre a eventual ilegalidade de que possa padecer a norma questionada.
4. Passando agora ao mérito do recurso, que tem por objecto a norma do artigo
131º, nº 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro (redacção do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril), na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem nas regiões autónomas, ('ainda que por lei constituam receita do Estado ou de outras entidades' - é o que se lê na sua parte final), há que registar, prima facie, que a alteração legislativa foi justificada pelo legislador com o facto de a versão original da mencionada alínea a) colidir com a alínea j) do nº 1 do artigo 4º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), que inclui nas receitas próprias dos municípios o produto das coimas e multas que lhes caibam; e, bem, assim, com o facto de se achar consignado à acção social, constituindo receita do orçamento da segurança social, quer o produto das coimas aplicadas no seu âmbito (artigo 5º do Decreto-Lei nº 64/89, de 25 de Fevereiro), quer o das multas resultantes de infracções ao respectivo regime penal (artigo
5º do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho), sendo que o montante das coimas e das multas cobradas nas regiões autónomas continuou, porém, a reverter para o Cofre Geral dos Tribunais, não obstante, como adiante se verá, o produto das mesmas constituir receita das regiões, nos termos dos respectivos estatutos político-administrativos. Com esta disciplina legal, 'visou-se a contrapartida para uma actividade que, transitando do âmbito das autoridades administrativas, passou a traduzir-se em actividade jurisdicional, geradora de despesas, nem sempre negligenciáveis'
(cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril, que veio dar nova redacção ao mencionado artigo 131º).
5. Como se alcança do teor, já transcrito, da decisão recorrida, a violação apontada é a dos artigos 164º, b), e 228º da Constituição, na redacção anterior
à revisão de 1997, vindo fundado tal juízo de inconstitucionalidade no facto de a norma em causa, que consta de um decreto-lei, ter alterado o Estatuto da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Le4i nº 9/87, de 26 de Março) recte, a alínea b) do seu artigo 95º, que no que aqui importa, dispõe que constituem receitas da Região 'todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no território (...)', pois - disse - o Governo não tem competência para alterar o estatuto de uma região autónoma. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de sublinhar que a Constituição, na versão da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, em vigor à data da edição da norma sub iudicio, incluía na competência indelegável da Assembleia da República a aprovação dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas e, bem assim, a alteração dos mesmos (cfr. os acórdãos nºs 92/92, publicado no Diário da República, I Série A, de 7 de Abril de 1992 e 637/95, publicado no mesmo Diário, I Série -A, de 26 de Dezembro de 1995). Tal resultava claramente do artigo 164º, alínea b) - que dispunha competir à Assembleia da República 'aprovar os estatutos político-administrativos das regiões autónomas'
- conjugado com o artigo 228º, que prescrevia:
'1.Os projectos de estatutos político-administrativos das regiões autónomas serão elaborados pelas assembleias legislativas regionais e enviados para discussão e aprovação pela Assembleia da República.
2. Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva assembleia legislativa regional para apreciação e emissão de parecer.
3. Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à discussão e deliberação final.
4. O regime previsto nos números anteriores é aplicável às alterações dos estatutos'.(Norma idêntica a esta, consta, hoje, do artigo 226º da Constituição, versão de 1997). Existe, assim, uma reserva de lei estatutária, pois há matérias que só os estatutos regionais podem regular. E, por isso, há violação da reserva de estatuto, se a regulamentação dessas matérias for feita por uma lei comum da Assembleia da República ou por um decreto-lei do Governo. Para Jorge Miranda (Funções, órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, página 302) a reserva de lei estatutária 'abarca as atribuições e o sistema de órgãos de governo próprios das regiões autónomas'. Para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 847) 'o princípio fundamental a ter em conta nesta matéria é que o estatuto regional é o estatuto de uma pessoa colectiva e, neste sentido, uma lei organizatória. Ele deve pois abranger todas
- e deve abranger apenas - as matérias directamente definidas por esse objecto, designadamente: atribuições das regiões autónomas (cf. artigo 229º) e sua delimitação em relação às de outras pessoas colectivas territoriais (Estado, autarquias locais), formação, composição e competência dos órgãos regionais e estatuto dos respectivos titulares (v. artigo 233º-5)'. E acrescentam:
'Em suma, o estatuto regional deve regulamentar as matérias previstas nos artigos 229º a 235º da Constituição em tudo aquilo que não esteja reservado para lei comum da Assembleia da Re pública, como sucede, por exemplo, com a lei eleitoral, a lei do sistema de planeamento e a lei do regime orçamental (artigo 167º/f e artigo 168º/j e I, respectivamente)'. Não basta, porém, que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de estatuto: desde logo, porque a norma estatutária pode ela, ela própria, ser inconstitucional. Essa violação só existirá, se essa norma constante do estatuto pertencer ao âmbito material estatutário - ou seja: se ela regular questão materialmente estatutária.
6. Interessa agora decidir, pois a questão de (in)constitucionalidade aqui posta assim o exige, se o destino por decidir se o destino que a alínea b) do artigo
95º do Estatuto da Região Autónoma dos Açores assinala ao produto das colmas cobradas na Região é matéria que possa considerar-se inscrita no âmbito material estatutário, é dizer, se é materialmente estatutária. Registe-se, desde logo, que, de acordo com a norma em causa, o produto das coimas cobrado na Região constitui receita desta. E acrescenta-se que isso mesmo dispõe, hoje, o artigo 102º, alínea b), do Estatuto aprovado pela Lei nº 61/98, de 27 de Agosto. Trata-se de uma norma de teor idêntico à que consta da alínea b) do artigo 67º do Estatuto da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho: também aí se destinam à Região os montantes nela cobrados a título de coimas. Em conformidade, de resto, com o que se prescreve na alínea b) do artigo 95ºdo Estatuto da Região Autónoma dos Açores e na alínea b) do artigo 67ºdo Estatuto da Região Autónoma da Madeira, a Lei das Finanças Regionais (Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro) preceitua, no seu artigo 19º, que as coimas constituem receita da
'circunscrição em que se tiver verificado a acção ou omissão que consubstancia a infracção' (nº 1) ou da 'circunscrição em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação', no caso de a infracção ser praticada por
'actos sucessivos ou reiterados ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo' (nº 2). E a autonomia regional - que se traduz num 'regime político-administrativo próprio' e numa 'autonomia político-administrativa' e que visa 'a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses' (cfr. artigo 227º da Constituição na redacção de 1989) - não se pode desprender de meios financeiros próprios, nomeadamente com o sentido de se puderem afectar ao pagamento das respectivas despesas as receitas cobradas no respectivo território. Por isso é que a Constituição lhes reconhece: poderes legislativo e executivo próprios e poder tributário próprio, nos termos da lei; o direito de disporem das receitas fiscais nela cobradas; e, bem assim, o poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos do lei-quadro da Assembleia da República (cfr. o artigo 229º, nº 1, a) a d), g) e i), e a referida Lei das Finanças Regionais). Doutro modo, a autonomia regional seria meramente jurídica, não propriamente política. Sendo isto assim, mal se compreenderia que o produto das coimas cobradas nas regiões autónomas não revertessem para elas próprias. Tanto mais que a própria Constituição, naquele artigo 229º, nº 1, alínea p), lhe reconhece o poder de, nos limites da respectiva lei-quadro, definir ilícitos de mera ordenação social e de lhes fixar as respectivas sanções (é dizer, as coimas). Pode, pois, concluir-se que, legislar sobre o destina a dar ao produto das coimas cobradas nas regiões autónomas, é editar normas sobre uma questão que é materialmente estatuária, aqui, estatutária da Região Autónoma dos Açores. Ora, já se viu que só a Assembleia da República pode alterar os estatutos regionais. E, ainda assim, carece sempre de uma iniciativa regional: a iniciativa legislativa originária cabe sempre, e em exclusivo, às assembleias regionais. E mais: a Assembleia da República não pode alterar, nem rejeitar definitivamente um projecto, sem que a respectiva assembleia regional se possa pronunciar sobre as alterações por ela introduzidas (cfr. o citado artigo 228º da Constituição). Com o que não merece censura o julgado na decisão recorrida.
7. Termos em que, DECIDINDO:
(a). julga-se inconstitucional - por violação dos artigos 164º, alínea b), e
228º da Constituição, na versão de 1989 - a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro (redacção do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril), na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais, o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem n s regiões autónomas;
(b). em consequência, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida quanto ao julgamento de constitucionalidade que nela se contém. Lisboa, 12 de Maio de 1999- Guilherme da Fonseca Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa