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Proc. nº 161/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - C. M., C. F. e W. L., ora reclamantes, foram condenados por Acórdão do Tribunal de Competência Genérica de Macau, de 11 de Novembro de 1996, respectivamente: o primeiro a uma pena de 12 meses de prisão e em igual tempo de multa à razão de 10 MOP por dia, pela prática de um crime de homicídio involuntário, p.p. pelos artigos 386º do Código Penal de 1886 e 66º nº 1 do Código da Estrada, e em 700 MOP de multa por contravenção ao disposto nos artigos 22º nºs 1, 3 e 4 e 70º, nº 3 do citado Código da Estrada, com suspensão da validade da licença de condução por um período de 10 meses (sanção que foi declarada suspensa na sua execução por um período de 2 anos, com excepção da pena acessória), e todos, solidariamente, ao pagamento de uma indemnização por danos materiais e morais no valor de 424.414.00 MOP.
2 - Desta decisão interpuseram recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, os assistentes, o Ministério Público e os réus (ora reclamantes), concluindo estes últimos nas suas alegações - e no que especificamente se refere
à questão objecto do recurso de constitucionalidade cuja reclamação contra o despacho de não admissão ora se julga - o seguinte:
'
1) As partes solicitaram a intervenção do tribunal colectivo ao abrigo do disposto no art. 24º, b), do DL nº 17/92/M, de 2 de Março;
2) Por isso não foi exercida a faculdade conferida pelo art. 531º & único do Código de Processo Penal;
3) Consequentemente a prova produzida na audiência do julgamento não ficou registada;
4) Aquele Decreto-Lei é omisso quanto ao procedimento a ser adoptado pelo tribunal colectivo quando intervém em processo correcional;
5) Esse caso omisso deve ser colmatado mediante o recurso à analogia por força do disposto no & único do Código de Processo Penal;
6) A formulação de quesitos destina-se a habilitar o Tribunal Superior a examinar a legalidade da decisão;
7) A formulação dos quesitos e as suas respostas substituem o registo da prova;
8) A não formulação de quesitos acaba por cercear os direitos da defesa e não permite que esse Tribunal Superior exerça os poderes que lhe confere o art. 55º do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março;
9) Não se descortina qualquer razão de peso que possa justificar a omissão dos quesitos num Processo Correcional nos casos em que na audiência intervém o colectivo;
10) No caso em apreço não foram formulados os quesitos sobre os factos relevantes alegados pelas acusações e defesa e sobre os resultantes da discussão da causa;
11) Assim foi violado o disposto no art. 468º daquele Código;
12) A ausência dessa quesitação acarreta a nulidade do art. 98º, nº 1, do Código de Processo Penal, determinante na anulação do julgamento;
13) O julgamento deve, pois, ser anulado;
(...)'.
3 - O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por decisão de 30 de Setembro de
1997, negou provimento ao recurso interposto pelos réus (ora reclamantes), assumindo, quanto à questão posta no recurso dos réus antes sintetizada, a posição de que o julgamento de crime de homicídio involuntário, feito em tribunal colectivo apenas em função do montante indemnizatório pedido (art. 24º, al.b), do DL nº 17/92/M, de 2 de Março), não obriga à formulação de quesitos.
4 - Não conformados os réus pediram a aclaração do Acórdão, tendo o Tribunal Superior entendido, por decisão de 19 de Novembro de 1997, nada haver a aclarar, indeferindo assim o respectivo pedido.
5 - Ainda inconformados voltaram os mesmos recorrentes aos autos, agora para arguirem a nulidade do Acórdão aclarando, alegando, em síntese, o seguinte:
'1) Solicitaram as partes na primeira instância a intervenção do Tribunal Colectivo ao abrigo do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março;
2) A prova produzida no recurso de audiência de julgamento não foi reduzida a escrito;
3) Finda a produção da prova, não foram formulados os quesitos (art. 486º do Código de Processo Penal de 1929);
4) A não formulação dos quesitos não permitiu que esse Venerando Tribunal exercesse os poderes que lhe confere o art. 55º do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março;
5) Dos autos não constam quaisquer documentos ou outros elementos probatórios que confirmem os factos e suas circunstâncias alegados quer pela defesa, quer pela acusação quer ainda os resultantes da discussão da causa;
6) Esse Venerando Tribunal fundou-se exclusivamente na matéria fáctica inventariada no Acórdão recorrido - do tribunal colectivo -, a qual fez sua, o que lhe era vedado por aquele art. 55º;
7) De várias passagens do acórdão condenatório desse Venerando Tribunal conclui-se inequivocamente que relativamente à interpretação do nº 2 do art. 55º do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março, foi perfilhada a orientação no sentido de as respostas aos quesitos a que o mesmo se reporta serem dispensáveis e poderem ser substituídas por um acórdão do tribunal colectivo subscrito por três juizes, mesmo que não haja o registo da prova e inexistam documentos ou outros elementos probatórios que confirmem os factos e suas circunstância alegados pela defesa, pela acusação e os resultantes da discussão da causa;
8) Por via disso, esse Venerando Tribunal conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento;
9) Está, pois, o acórdão condenatório desses Venerando Tribunal ferido da nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil;
10) O douto Acórdão desse Tribunal Superior violou o disposto nos artigos 55º nº
2 e 668º, nº 1, alínea d), atrás referidos;
11) Deve, assim, esse Venerando Tribunal declarar que o mesmo Acórdão é nulo;
12) As respostas aos quesitos constituem para o Tribunal Superior de Justiça um instrumento de fiscalização da legalidade da actuação do Tribunal Colectivo relativamente à matéria de facto, permitindo mormente o controlo das suas decisões no plano probatório;
13) No uso dos poderes que aquele artigo 55º, nº 2, lhe confere, pode e deve o Tribunal Superior exercer o papel de tribunal de recurso também quanto à matéria de facto;
14) A referida norma, interpretada e aplicada da maneira que ficou referida na conclusão 7ª viola o nº 1 do art. 32º da Constituição da República;
15) Estabelece este preceito o princípio de que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa';
16) Tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido que o direito ao recurso - ou seja, o direito ao duplo grau de jurisdição - cabe nas garantias de defesa asseguradas pelo nº 1 do referido art. 32º;
17) O mencionado art. 55º, nº 2, na interpretação referida na conclusão 7ª não permite um efectivo duplo grau de jurisdição;
18) A referida norma, assim interpretada e aplicada, está ferida de inconstitucionalidade material por violar aquele art. 32º da Constituição da República;
19) Deve, assim, julgar-se inconstitucional a referida norma quando interpretada e aplicada da maneira que ficou atrás referida com todas as consequências legais'.
6 - O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por decisão de 7 de Janeiro de
1998, indeferiu o pedido de declaração de nulidade, argumentando, no que especificamente respeita à questão de constitucionalidade suscitada, da seguinte forma: - 'Quanto à questão da inconstitucionalidade, só agora levantada, também
é de rejeitar o respectivo pedido, não apenas por não respeitar o pressuposto do seu prévio levantamento no decurso do processo, como também por ser jurisprudência sempre sufragada por este Tribunal Superior, e amplamente divulgada, que o art. 55º do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março, não padece do apontado vício'.
7 - Não se conformando com o teor do aresto supra referido os réus interpuseram do mesmo, em 19 de Janeiro de 1998, recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão do Relator do processo no Tribunal Superior de Justiça de Macau não foi admitido com o fundamento em que a questão da constitucionalidade do art.
55º, nº 2, do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março, não tinha sido suscitada durante o processo.
8 - Contra este despacho de não admissão do recurso apresentaram os recorrentes, em 6 de Fevereiro de 1998, a reclamação para o Tribunal Constitucional que agora se aprecia, aduzindo na exposição das razões que a justificam, em síntese, o seguinte:
'I- O Venerando Tribunal Superior de Justiça perfilhou na prática, no seu douto Acórdão Condenatório, o entendimento no sentido de as respostas aos quesitos a que se reporta o nº 2 do art. 55º do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, serem dispensáveis e poderem ser substituídas por um Acórdão do Tribunal Colectivo desde que subscrito por três juizes e isto ainda que não haja registo de prova e inexistam documentos relevantes ou outros elementos probatórios nos autos, impedindo assim um efectivo duplo grau de jurisdição no que concerne à matéria de facto. Ora, não era previsível que o mesmo Tribunal Superior se conformasse com a limitação dos seus poderes de cognição e aceitasse aquele entendimento e consequentemente interpretasse o art. 55º, nº 2, do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, da maneira que ficou referida. Aos recorrentes, que foram assim apanhados de surpresa com as referidas interpretações e aplicação do art. 55º, nº 2, não era exigível razoavelmente que formulassem um prévio juízo de prognose relativo a essa mesma aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da inconstitucionalidade. Consequentemente, só após a prolação do Acórdão Condenatório proferido pelo Tribunal Superior de Justiça é que se ofereceu aos recorrentes, ora reclamantes, a oportunidade de levantar a questão de inconstitucio-nalidade: no requerimento em que se arguiu a nulidade daquele Acórdão Condenatório. Pensam os recorrentes, ora reclamantes, que tem sido este o entendimento perfilhado por esse Venerando Tribunal Constitucional (Ac. 318/89, 329/95,
521/95). Trata-se pois duma situação excepcional em que, não obstante a questão de inconstitucionalidade não ter sido levantada em momento anterior à prolação do Acórdão Condenatório mas posterior, o recurso deve ser admitido. II) - Consultando as cópias dos doutos Acórdãos proferidos pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau não se logrou descobrir um só em que tenha sido abordada a questão da inconstitucionalidade do art. 55º nos termos suscitados pelos ora reclamantes. Afigura-se-nos que a problemática de não formulação dos quesitos pelo Tribunal Colectivo e a permissão da substituição desta formalidade essencial por um Acórdão subscrito por três juizes que integrem aquele - mesmo nos casos em que inexistem outros elementos probatórios - jamais foi colocada anteriormente à consideração do Tribunal Superior de Justiça de Macau. Donde a impossibilidade de o mesmo Tribunal sobre ela se ter pronunciado e muito menos divulgado. Mas se acaso uma decisão dessa natureza e com esse alcance existe, desde já se roga que o Exmº. Juiz Desembargador Relator seja convidado a juntar cópia da mesma.
Como já tivemos ocasião de referir o art. 55º, nº 2, do Decreto-Lei
17/92/M, de 2 de Março, interpretado e aplicado da maneira que ficou referida veio impedir um efectivo duplo grau de jurisdição. Por via disso deixaram de ser asseguradas aos ora reclamantes as necessárias garantias de defesa, com a frontal ofensa do disposto no nº 1 do art. 32º da Constituição da República.
9 - Ao abrigo do disposto no art. 688º do Código de Processo Civil, aplicável ao caso por força do art. 69º da Lei do Tribunal Constitucional, foram os autos à conferência daquele Tribunal superior, que decidiu confirmar na íntegra o despacho reclamado. E fê-lo, em síntese, com base na seguinte argumentação:
Começam os recorrentes por invocar a surpresa da decisão do T.S.J., o que constituiria, desde logo, uma excepção relevante à regra da arguição da inconstitucionalidade durante a pendência da causa contida no art. 280º, nº 4, da C.R.P. e 70º, nº 1, al.b), da Lei nº 28/82. Aceitam, assim, de forma clara e confessada, que a questão em análise não foi levantada no decurso do processo.
Resta, pois, saber, se se verifica ou não a invocada imprevisibilidade da decisão.
Como tem sido ampla e uniformemente decidido pelo Tribunal Constitucional, em consonância com a doutrina sufragada por GHILHERME DA FONSECA e INÊS DOMINGOS, 'a utilização, por parte da decisão, de certa norma ou normas, há-de ser de todo insólita e imprevisível, sobre a qual seria desrazoável e inadequado exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da inconstitucionalidade' (Breviário de Direito Processual Constitucional, 48 e 49). Ora, ainda que este T.S.J. não tenha tirado ainda qualquer decisão que directamente tivesse abordado o ponto específico da dispensabilidade da formulação de quesitos em caso como o dos autos, o certo é que em numerosíssimos arestos analisou e aprofundou o sentido e alcance do preceituado no art. 55º, nº
2, do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, delimitando os princípios definidores e a filosofia que lhe subjaz, sempre o tendo considerado inteiramente conforme à Constituição da República (cfr., entre outros, os Acs. De 22.09.93, Jurisp.
1993, 177, de 01.03.94, Jurisp. 1994, I, 90, de 19.10.94, Jurisp. 1994, II, 786 e de 05.11.97, Jurisp. 1997, II, 1214 e ainda aquele que vem citado pelo M.P. no seu parecer)'.
10 - Já depois de admitida a reclamação pelo tribunal recorrido os assistentes, L. T. e I. K., melhor identificados nos autos, levantaram dúvidas sobre a habilitação como advogado do mandatário dos réus, Dr. S. F., requerendo a realização de diligências de esclarecimento.
11 - Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da improcedência da presente reclamação, designadamente pelos motivos que de seguida se transcrevem: Desde logo o ora reclamante não suscitou durante o processo, isto é, antes da prolação da decisão recorrida, podendo perfeitamente fazê-lo, a questão da constitucionalidade a que se refortava o recurso de constitucionalidade interposto. É que - ao contrário do que sustenta na presente reclamação - a interpretação da norma constante do nº 2 do art. 55º do Decreto-Lei 17/92/M, de
2 de Março, não constitui qualquer decisão surpresa para o recorrente, susceptível de legitimar a excepcional suscitação da questão da sua constitucio-nalidade apenas no requerimento de arguição de nulidades do acórdão proferido: na realidade, não tendo o colectivo estruturado a decisão que proferiu sobre a matéria de facto sob a forma de quesitos (e não competindo a este Tribunal Constitucional interpretar o direito infraconstitucional, em termos de concluir se tal formalidade era ou não legalmente imposta) a interpretação da norma questionada no recurso não podia ser diversa da que realizou o Tribunal Superior de Justiça de Macau - equiparando às respostas aos quesitos o acórdão do colectivo em que se descreve e enuncia a matéria de facto provada em 1ª instância, para o efeito de exercer os poderes que a lei lhe confere para sindicar a decisão de facto das instâncias. Em segundo lugar - e também ao contrário do que pretende o reclamante - parece-nos evidente que a não elaboração de quesitos pelo colectivo, aparecendo a matéria de facto provada descrita em acórdão, em nada preclude a efectividade do princípio do duplo grau de jurisdição ou as garantias de defesa do arguido
(...)'.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação
12-- O recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional - o interposto pelo ora reclamante - pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso. Ora, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal (veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o Tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da sentença). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, o requerimento de arguição de nulidades da decisão não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar a questão de inconstitucionalidade, uma vez que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material da decisão, não sendo, portanto, causa de nulidade da mesma (v., por todos, o Acórdão nº 450/87, in Acórdãos do T.C., 10º vol., pp. 573). Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - seja suscitada depois de proferida a decisão em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo é precisamente a daqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão. É precisamente esta a hipótese que o ora reclamante entende verificar-se nos autos, e que, por isso, justifica, no seu entender, que se considere tempestiva e processualmente adequada a suscitação da questão da constitucionalidade do art. 55º, nº 2, do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, já depois da prolação da decisão que aplicou essa norma com o sentido que o reclamante reputa de inconstitucional. Vejamos pois se é assim. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, por inúmeras vezes, cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão (nesse sentido, entre muitos, os Ac. 479/89 e 489/94, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e na Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pp.
415 e ss.). Ou, dito de outra forma, como referem GHILHERME DA FONSECA e INÊS DOMINGOS, citando nesse sentido ampla jurisprudência deste Tribunal, 'recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e adoptarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos'(Breviário de Direito Processual Constitucional, p. 49). Ora, no caso concreto, e uma vez que o Tribunal Colectivo não estruturou a matéria de facto, porque entendeu que não tinha de fazê-lo, sob a forma de quesitos, era razoavelmente de esperar - se não era mesmo, como refere o Ministério Público junto deste Tribunal no seu parecer, a única interpretação possível - que o Tribunal Superior de Justiça de Macau equiparasse - para efeitos de poder exercer os poderes que a lei lhe confere no que se refere ao controle da decisão da 1ª instância em matéria de facto - às respostas aos quesitos o acórdão do tribunal colectivo em que se descreve a matéria de facto provada em 1ª instância e, nesse medida, interpretasse o art. 55º nº 2 do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, com o sentido que o reclamante reputa de inconstitucional. Nestes termos, de acordo com a jurisprudência antes enunciada, e porque a interpretação que o Tribunal Superior de Justiça de Macau fez do artigo 55º, nº
2, do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, traduz ainda uma das possibilidades interpretativas razoáveis do preceito, era razoavelmente exigível ao ora reclamante que tivesse feito um juízo de prognose relativo à sua aplicação, suscitando logo, nas alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, a questão da inconstitucionalidade daquela interpretação normativa. Não o tendo feito, podendo fazê-lo, não se verificam as razões que justificam o afastamento da regra no sentido de que a questão de inconstitucionalidade só é suscitada durante o processo se o for antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja, antes da prolação da sentença. Não tendo, pois, sido suscitada durante o processo a questão da constitucionalidade da norma em causa, conforme exige a al. b) do nº 1 do art.
70º da lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, dele não se pode conhecer.
13 - Acresce que, no caso, uma outra razão conduz à impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso que o reclamante pretendeu interpor. É que o recurso de constitucionalidade foi interposto não da decisão do Tribunal Superior de Justiça de Macau que perfilhou a orientação no sentido de as respostas aos quesitos seriam dispensáveis e poderiam ser substituídas por um acórdão do tribunal colectivo subscrito por três juizes, mesmo que não haja o registo da prova e inexistam documentos ou outros elementos probatórios que confirmem os factos e suas circunstância alegados pela defesa, pela acusação e os resultantes da discussão da causa, mas da decisão daquele Tribunal que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades, quando foi aquela, e não esta, que aplicou a norma do art. 55º, nº 2, do Decreto-Lei 17/92/M, de 2 de Março, com o sentido que o recorrente reputa de inconstitucional.
14 - Em face do exposto, desnecessário se torna proceder às diligências de esclarecimento sobre a situação do mandatário dos réus, que teriam efeito dilatório. III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta.
Lisboa, 2 de Julho de 1998 José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeia